terça-feira, 7 de novembro de 2017
os objetos
como acreditar em uma xícara? o pão vai na boca, antes, vai no prato. o café vai no coador depois vai na cabeça. tomar o café da tarde significa prestar continência ao café da manhã, significa marcar de chegar atrasado ao início da noite. uma faca corta, mas amacia, a manteiga. a manteiga já foi gordura de porco, o porco morria gritando, hoje, uma pistola de ar é mais rápida do que o piscar de olhos. os olhos do porco nas bolhas de café. o café da manhã no café da tarde como um trilho, nos abrindo. como confiar em uma xícara? diz minha tia. tudo pode desaparecer. uma xícara, de porcelana ou vidro, pode sumir ao ser erguida entre o dedo e os lábios. o café nunca. o café manha diz minha tia. seus dentes são amarelos. está estampado na sua cara e não há vergonha nisso. os objetos, como confiá-los. eles se quebram. desaparecem mas não se vão. assim como os ossos. embaixo do tapete, cravado na sola do pé. de surpresa anos depois entre as plantas do jardim. o café lava o cálcio, o potássio, é diurético. minha tia mexe a xícara muito devagar, coloca mais fatias de pão do que come em cima da mesa. este come com a mão, embalsamando uma ligeira tranquilidade.
sexta-feira, 29 de setembro de 2017
campeã
nosso país não possui desaparecidos disse um homem de nosso país. uma parte das pessoas discordou. um concurso foi feito na qual a pessoal com mais desaparecidos ganharia. uma moça ao meu lado tinha três desaparecidos. o avô, o irmão mais novo e um vizinho. e, se carlinhos não voltar até semana que vem, digo que são quatro. ganhou uma senhora, ao todo tinha, 31 desaparecidos. ela era muito, muito velha e onde um dia respirou as pessoas aqui não ousavam existência. 26 desaparecidos eram do século passado, sendo 11 apenas do início dele. o resto eram sobrinhos, netos e bisnetos. o homem alegou a mulher ser muito velha, indigna de testemunho. a senhora foi condecorada com uma grande cesta de frutas, embora não pudesse usufruí-la. sobravam problemas na sua dentadura.
quarta-feira, 27 de setembro de 2017
estranha sensação
um dia a encontrei. semiárida, granular. posando para as coisas, tocando cada situação com atenção que parecia acobertar uma fuga. se oferecendo de luva para o mundo. dizendo pouco ou quase nada, palavras rasantes e rasteiras.quem sabem, talvez, pode ser. como se estivesse jogada entre os carros, as buzinas tateando altos amperes, o fluxo interrompido com seus cotovelos sujos pelo asfalto. a encontrei como se voltasse de uma viagem obrigada, despachada, saísse de um continente intruso, de um país desconhecido, desaprendesse a falar o próprio idioma, o tempo de comer, de sinalizar um movimento. se tivesse a esquecido ou fosse despejada após um sequestro, não fizesse nota nem do ano, da confusão política recente de nossa cidade, do cigarro agora proibido no bares, dos jogos cancelados pelo governo. a encontrei e a retirei das escadas, da rodoviária, dos lábios de duas pedras, do meio do mato, em cima de uma marquise, a conheci mesmo a puxando pelo braço como quem finge a conhecer de verdade. depois de dois homens insistirem para ela os acompanhar com uma péssima intenção impressa como se escrita no ar, depois de não oferecer resistência, depois de esgotada qualquer espasmo de resistência, agarrei-me no seu braço e disse não, você não vai, a xinguei horrores, por seu desgarro, sua incoerência, o perigo besuntado na expressão em falta, em verdade não a xinguei. a recolhi pela mão, calmamente, como uma corda ao mar a guinchei daquilo, a pus sentada em um café, a dei comida, perguntei seu nome, sua idade, o contato de alguém próximo. não disse. apenas olhava para mim, como uma sonda. uma dessas espaciais. recordei de cassini muda, mas altamente atenta, recolhendo seus sinais em torno de saturno antes de seu voo mortal adentro do planeta. a palma de minha mão atritou como um choque.
a levei para casa.
como algo que encontramos no meio da rua. como um troço. restada. uma coisa. farelo. deixada e não mais pertencente a algo ou alguém.
preparei um banho, fiz comida, ajudei a colocar roupas limpas e a ofereci minha cama.
no outro dia conversamos sobre plantas. a planta mais antiga do mundo se chama Silene. Microlinia era uma planta extinta até um belo dia não ser mais. tomamos café, ela riu de um comercial bobo na televisão. fui trabalhar, voltei. não disse seu nome. apenas abriu a geladeira, fritou um ovo. comeu só o centro, o amarelinho, e dormiu. eu via alguém com medo. alguém desaprendido. com esforço faria a memória das coisas retornarem. dizia não ter força, dizia não ser boa, dizia não ter certeza, pedia desculpas sem motivo. permaneceu na cama por dias, como uma conha, ficou por duas ou três semanas lá em casa e depois foi embora de vez.
um dia me procurou a noite. deitou em cima de mim, agarrou-se a minha barriga. cheirava os meus braços rastreando algo perdido ou irreconhecível. em seguida soltou um berro como uma criatura portadora do último respiro, ruminante como uma orca, contorcido como um peixe, debateu-se no meu corpo pequeno e chorou. chorava pelos cabelos, pelas orelhas, chorava com os calcanhares despencando nem lágrima, num cheiro salgado, de guardado, um cheiro que dá até sede. acordei com ela dormida no meu ombro, como um cobertor recolhido em si mesma e ao tomar banho notei meu corpo estar roxo. repleto de pequenos e grandes hematomas da noite passada, de sua atroz transformação em um mamífero marítimo. fui para a galeria, onde era meu trabalho, com o corpo doendo, uma curva do ônibus quase me levou junto, movia as pernas mas esquecia seus recentes detalhes, e a força delas era interrompida sem me avisar e quase caía em passos que antes tendiam a ser tão simples.
parecia estar melhor. lembro de chegar e a casa estar arrumada, aquela casa com que tinha muito pouco e quase nada de ligação, lembro de seus cabelos parecerem soltos de verdade, eles iam e vinham, ela estava se mexendo, subindo e descendo do quarto a sala, fazendo comida, falando sem pedir permissão ou com medo de ser inútil em alguma espontânea naturalidade. me disse seu nome, falou o que fazia, pelo menos o pouco que se lembrava, tudo parecia sem importância e ela achava ser este o motivo do esquecimento. recordo de pensar como ser possível esta pessoa em minha frente construir casas, essa pessoa tão desesperada por plantas, tão frágil, pelo menos agora como uma, esta menina que me conta estudar arquitetura, ter vindo do noroeste, ser criada entre os bois, gostar mais de goiaba do que chocolate. ou não. não era importante acreditar tanto no que dizia. o importante era ela insistir em dizer. mas a medida que conversávamos havia também uma estranha sensação de minha parte de sentir uma pequena angústia a medida que novas informações de sua vida vinham a mim, como se desqualifica-se a realidade, nossa relação naquela casa, como se algo fosse sendo perdido. eu gostava dela existir, dela não ter ido embora com aqueles homens, a tragédia possível da qual nunca me perdoaria. também gostava de não sabê-la.
o trabalho me exigia muito tempo fora de casa. estava produzindo uma mostra de uma artista colombiana, uma amiga minha de muitos anos atrás, de outra vida, de outra promessa, só vinha a casa para dormir e comer, o que fazia o apartamento ser toda dela por estes momentos. estava melhor, é claro, assumindo seu direito de sorrir só por desaforo, de ter vontade, e apesar de sentir que nossa inexistente amizade estava sendo desfeita, eu estava feliz.
via esta melhora de maneira límpida até o dia em que de novo ela me achou no sofá da sala, de novo me deu um coice como um animal, mas agora de forma mais violenta, trancando meu quadril nas almofadas, pesando o corpo contra minha possibilidade de respirar levemente, com muita muita força como um bicho na secura de uma mudança de estação onde tudo se acaba e o que sobra não cabe no estômago. havia pouca luz vindo da rua, com o pouco dela, enxerguei suas coxas presas no meu corpo como uma garra, seu rosto desfigurado com os sons ilegíveis berrados pela boca, suas coxas firmes, vermelhas, duras, em silêncio tentei acalmá-la, mas ela não correspondia. com uma calma vinda do susto, só esperei tudo passar, enquanto ela mordia-me a nuca, o ante-braço, embaixo dos seios, enterrando os dentes de escavadeira, de broca, de perícia, especiando-me em pedaços, me dividindo mas me completando na sua boca. lentamente foi se assossegando, dormindo sobre meus ombros e ao levantar de manhã não é possível se desfazer de nenhum detalhe do momento que meu sangue seco, que nos unia como cola, me exigia certo molejo para desgrudar de seu rosto sem acordá-la.
a deixei lá, emboscada em meu sofá, meu sangue, minhas almofadas, e os motivos inacessíveis que eram os dela. a água escorria nos ferimentos e a dor que antes pude usar para destroçar meu corpo de qualquer sensação mais emotiva agora era apenas dor. dor carnívora, monstruosa por retalhar, rasgar a pele ferida, por poder ser sentida no corpo todo simultaneamente. coloquei bicarbonato de sódio para limpar as feridas, arranjei esparadrapos, meio sem pensar fiz tudo muito rápido, como se fosse uma rotina diária, como se fosse como trocar o absorvente enxurrado de sangue e pitadas de endométrio, uma norma automática como escovar os dentes. peguei o carro, comprei dois cafés, fui ao aeroporto, esperei Raji minha artista e amiga, sair do portão de desembarque, esqueci completamente de meu estado quando confundi seu vestido colorido e borbulhante com seu sorriso e levada por estes dois tecidos a abracei forte, em um abraço no qual coube eu ela e aquela mulher que ainda dormia em minha casa, me dando uma presença inescapável, disparando uma dor mais forte ainda a partir dos ferimentos. eram poças, tiros, buracos expostos em frente de Raji e me senti vulnerável como a pouco não sentia em frente a alguém. enquanto ela falava sem parar sobre sua recente ida ao méxico, sua ancestralidade indiana melhor entendida, sua recente separação, suas novas ideias para a montagem do espaço expositivo da galeria, notei algo úmido, como a carícia de um molusco, perto do meu umbigo, uma língua solta a salivar. olhei para baixo da direção do carro, minhas pernas, olhei para a barriga, lá estava uma mancha vermelha começando a surgir em minha blusa. a mantive ocupada com perguntas e mais perguntas para que não me desperdiçasse compenetração em minha situação, e depois, na galeria, coloquei um velho blusão por cima de tudo e suei, suei como uma porca o dia todo.
cheguei no corredor do meu prédio, sentei no chão ao lado da porta. fiquei bons minutos ali tentando sistematizar algumas palavras soltas, me colocar em um local que faça sentido. o suor e sangue juntos tem um cheiro engraçado porque afasta viciando. tudo passava pela minha cabeça como um túnel, apenas informações muito rápidas , não conseguia tocar de verdade e tocar de verdade seria se importar, dar a mínima, levar a sério. não era possível dar a devida preocupação, devida euforia para o que ocorria, o que ocorria agora era meu corpo caduco, caduco vermelhando, dolorido, com marcas de dente de uma menina. um campo de mina terrestre. decidi que sentiria as palavras mais corretas de serem ditas na hora de entrar em casa e as coisas seriam tratadas de maneira natural.
cheguei em casa e lá estava ela. me abraçou, me tocou com as palmas completas, escorregando da testa as bochechas seus dedos. me agradeceu. sentamos na mesa e me contou como estava melhor, como se sentia outra pessoa. era tão absurdo imaginar agora mas houve dias que não viveu em memória ou em plena capacidade, apenas consentiu, empinada pelo vento. não sabia direito qual caminho havia a trazido para ter chego aqui mas disse ser aqui onde voltou a si. falava e falava sem pausa como minha amiga colombiana, e eu ouvia. abriu a geladeira pegou um chá gelado de erca cidreira com laranja, entortou as sobrancelhas e me contou o que descobriu.
então me contou uma história triste. triste triste. história que eu não lembro pois o que eu lembro é apenas o que pensei na hora, o que imaginei. pensei ter se lembrado de quando havia um homem, eles estavam juntos, ele a engravidou. que o homem parecia feliz, e ela estava mais feliz por ter um filho do que qualquer coisa, então o bebe se foi e ela descobriu que o homem dava há dias antiabortivo, escondido na em cada refeição que faziam juntos. ela teve de ir para o hospital, depois voltou a faculdade mas não tinha ânimo para nada. ou poderia ser outra coisa. poderia ter sido expulsa da casa dos pais por ter pego barriga, ter levado uma surra e perdido o bebê, ou sem bebê algum, expulsa de casa por não ser o que os pais esperavam que ela fosse. ou apenas foi atacada por alguém que achava conhecer, depois de uma festa, no banheiro acadêmico, no carro de um amigo, deitada na sua cama recebendo as primeiras pistas que o sol estava nascendo. poderia ser isso, nada disso, ou tudo. o que importa era a raiva que abaixava as têmporas, esquadriava o peito, um engano, uma decepção, vinda de uma confiança traída que cegou todas as facas, limou as torções dos parafusos, fez até mesmo as coisas serem menos confiáveis e aos poucos foi a paralisando.
ela sentiu vergonha do que me confidenciara, vergonha de ser roubada assim, desrespeitada, enganada, de estar enfraquecida. vergonha de chorar estando com a consciência no máximo sinal. de não bater, de não responder, de não socar, mesmo estando com os músculos entorpecidos na força máxima. pela minha experiência alguém que estava assim como ela, vivendo uma sétima encarnação de um tipo de pedra, desandada, retirante de si, pausada, poderia sentir ou pensar saber qualquer coisa. este é um estágio onde dos que chegam na gastura mais desgastante, a ponto de tudo retroceder, e ser difícil distinguir acontecimentos falsos ou reais porque tudo foi levado, contaminado, rompido, até o passado primeiro. as coisas aconteceram e não aconteceram com ela, era isto que eu achava, mas sua presença ali era o que fazia as coisas serem certas e inegáveis.
devagar muito devagar me curvei sobre seus ombros, coloquei o queixo sobre seus cabelos. me permiti colocar os braços nos seus braços pois é isso que me ensinaram ser o normal a fazer para ajudar os outros seres humanos, milimetricamente, como uma receita médica, à risca a pressionei medindo o nível deste encontro. eu repetia tudo bem bem bem baixinho, bem baixinho mesmo, como uma ciranda, de novo e de novo, até que eu mesma caí em minha armadilha e me perdi ali, saí de mim e quando retornei ela estava de pé, eu ainda tudo bem tudo bem, como pega na mentira mas não era mentira, era apenas um lugar que não sabia onde para nós duas entrarmos apenas. me olhou por um tempo e buscou com as mãos meu rosto, no que automaticamente pensei ser a lembrança daquele ataque da noite anterior, mas ao invés disso, delicadamente juntou meu olhar e me beijou.
me beijou na boca. se deteve com cautela pelos meridianos do rosto como um novo mapeamento. um recomeço na promessa da lucidez
ela tirava minha blusa, enquanto eu inerte a via beijar-me de olhos fechados, aos poucos, oferecendo pequenos extratos de doçura, muito distante do cuidado das outras noites. abriu os olhos, abriu a blusa, abriu, então se deparou com aquela cena - o meu peito nu. soltou um grito, ficou preocupada. não lembrava de nada, de nada dos nossos pequenos encontros. eu não tinha coragem de dizê-la como antes não tinha tido. parecia que simplesmente não merecia. perguntou se doía e eu assenti. trouxe alguns remédios, desfez os curativos e os melhorou. aquela estranha sensação de seus dedos rolando sobre as marcas de seus próprios dentes, com horror. aos poucos senti algo nela despertando, algum conhecimento entre meu corpo e ela sendo indiretamente trocado, ela ia aceitando o que havia tinha mesmo ocorrido sem eu ao menos dizer nada. não me importo, eu disse, é verdade, não me importo, não me interessa, está tudo bem. é só pele, superfície. esta nem era toda a verdade. talvez até gostasse, talvez até precisasse, talvez até fosse essa minha forma de me caber, de me roçar no mundo, de perseguir meus fugitivos com gana. tive sonhos estranhos, mas nada como isso, não era você, gaguejou incrédula mais por não lembrar, agora que estava tão clara das coisas, do que pelo que fez.
mesmo assim fomos para a cama, e eu acossada com meus pedaços, me recolhi. nos deitamos juntas como antigas conhecidas, como um segredo dividido em duas partes que precisa de ambas para ser legível, antigas amigas, amantes, qualquer coisa. extremamente conscientes o que não fazia nada ser mais fácil mas também não menos natural. tirou a roupa, depois me ajudou a me despir, e ainda com os olhos inchados, vagando como uma rede, borrão vermelho no vento conjunto desvairado, me beijou. por mais sutil que fosse o movimento dos seus braços, suas pernas, seu quadril, mais brandos que fosse sua língua, sua boca, sua mão, seus seios, o que de todo não eram, mesmo assim meu corpo doía. exclamava, inchado, perfurado, habitado, qualquer titubeio, maior ou menor, era o mesmo, o pouco era muito. enquanto se movia levava junto minhas partes, meus pedaços, meus poços, meus buracos, por instantes, nossos. tudo antes de ser algo era antes dor, difundindo pelo corpo, meu corpo sem centro, meu corpo que era um duplo, dublê. minha armadura ferida, ensaiando o início de um levante, no que era ferozmente dolorido e além de tudo extremamente prazeroso.
a levei para casa.
como algo que encontramos no meio da rua. como um troço. restada. uma coisa. farelo. deixada e não mais pertencente a algo ou alguém.
preparei um banho, fiz comida, ajudei a colocar roupas limpas e a ofereci minha cama.
no outro dia conversamos sobre plantas. a planta mais antiga do mundo se chama Silene. Microlinia era uma planta extinta até um belo dia não ser mais. tomamos café, ela riu de um comercial bobo na televisão. fui trabalhar, voltei. não disse seu nome. apenas abriu a geladeira, fritou um ovo. comeu só o centro, o amarelinho, e dormiu. eu via alguém com medo. alguém desaprendido. com esforço faria a memória das coisas retornarem. dizia não ter força, dizia não ser boa, dizia não ter certeza, pedia desculpas sem motivo. permaneceu na cama por dias, como uma conha, ficou por duas ou três semanas lá em casa e depois foi embora de vez.
um dia me procurou a noite. deitou em cima de mim, agarrou-se a minha barriga. cheirava os meus braços rastreando algo perdido ou irreconhecível. em seguida soltou um berro como uma criatura portadora do último respiro, ruminante como uma orca, contorcido como um peixe, debateu-se no meu corpo pequeno e chorou. chorava pelos cabelos, pelas orelhas, chorava com os calcanhares despencando nem lágrima, num cheiro salgado, de guardado, um cheiro que dá até sede. acordei com ela dormida no meu ombro, como um cobertor recolhido em si mesma e ao tomar banho notei meu corpo estar roxo. repleto de pequenos e grandes hematomas da noite passada, de sua atroz transformação em um mamífero marítimo. fui para a galeria, onde era meu trabalho, com o corpo doendo, uma curva do ônibus quase me levou junto, movia as pernas mas esquecia seus recentes detalhes, e a força delas era interrompida sem me avisar e quase caía em passos que antes tendiam a ser tão simples.
parecia estar melhor. lembro de chegar e a casa estar arrumada, aquela casa com que tinha muito pouco e quase nada de ligação, lembro de seus cabelos parecerem soltos de verdade, eles iam e vinham, ela estava se mexendo, subindo e descendo do quarto a sala, fazendo comida, falando sem pedir permissão ou com medo de ser inútil em alguma espontânea naturalidade. me disse seu nome, falou o que fazia, pelo menos o pouco que se lembrava, tudo parecia sem importância e ela achava ser este o motivo do esquecimento. recordo de pensar como ser possível esta pessoa em minha frente construir casas, essa pessoa tão desesperada por plantas, tão frágil, pelo menos agora como uma, esta menina que me conta estudar arquitetura, ter vindo do noroeste, ser criada entre os bois, gostar mais de goiaba do que chocolate. ou não. não era importante acreditar tanto no que dizia. o importante era ela insistir em dizer. mas a medida que conversávamos havia também uma estranha sensação de minha parte de sentir uma pequena angústia a medida que novas informações de sua vida vinham a mim, como se desqualifica-se a realidade, nossa relação naquela casa, como se algo fosse sendo perdido. eu gostava dela existir, dela não ter ido embora com aqueles homens, a tragédia possível da qual nunca me perdoaria. também gostava de não sabê-la.
o trabalho me exigia muito tempo fora de casa. estava produzindo uma mostra de uma artista colombiana, uma amiga minha de muitos anos atrás, de outra vida, de outra promessa, só vinha a casa para dormir e comer, o que fazia o apartamento ser toda dela por estes momentos. estava melhor, é claro, assumindo seu direito de sorrir só por desaforo, de ter vontade, e apesar de sentir que nossa inexistente amizade estava sendo desfeita, eu estava feliz.
via esta melhora de maneira límpida até o dia em que de novo ela me achou no sofá da sala, de novo me deu um coice como um animal, mas agora de forma mais violenta, trancando meu quadril nas almofadas, pesando o corpo contra minha possibilidade de respirar levemente, com muita muita força como um bicho na secura de uma mudança de estação onde tudo se acaba e o que sobra não cabe no estômago. havia pouca luz vindo da rua, com o pouco dela, enxerguei suas coxas presas no meu corpo como uma garra, seu rosto desfigurado com os sons ilegíveis berrados pela boca, suas coxas firmes, vermelhas, duras, em silêncio tentei acalmá-la, mas ela não correspondia. com uma calma vinda do susto, só esperei tudo passar, enquanto ela mordia-me a nuca, o ante-braço, embaixo dos seios, enterrando os dentes de escavadeira, de broca, de perícia, especiando-me em pedaços, me dividindo mas me completando na sua boca. lentamente foi se assossegando, dormindo sobre meus ombros e ao levantar de manhã não é possível se desfazer de nenhum detalhe do momento que meu sangue seco, que nos unia como cola, me exigia certo molejo para desgrudar de seu rosto sem acordá-la.
a deixei lá, emboscada em meu sofá, meu sangue, minhas almofadas, e os motivos inacessíveis que eram os dela. a água escorria nos ferimentos e a dor que antes pude usar para destroçar meu corpo de qualquer sensação mais emotiva agora era apenas dor. dor carnívora, monstruosa por retalhar, rasgar a pele ferida, por poder ser sentida no corpo todo simultaneamente. coloquei bicarbonato de sódio para limpar as feridas, arranjei esparadrapos, meio sem pensar fiz tudo muito rápido, como se fosse uma rotina diária, como se fosse como trocar o absorvente enxurrado de sangue e pitadas de endométrio, uma norma automática como escovar os dentes. peguei o carro, comprei dois cafés, fui ao aeroporto, esperei Raji minha artista e amiga, sair do portão de desembarque, esqueci completamente de meu estado quando confundi seu vestido colorido e borbulhante com seu sorriso e levada por estes dois tecidos a abracei forte, em um abraço no qual coube eu ela e aquela mulher que ainda dormia em minha casa, me dando uma presença inescapável, disparando uma dor mais forte ainda a partir dos ferimentos. eram poças, tiros, buracos expostos em frente de Raji e me senti vulnerável como a pouco não sentia em frente a alguém. enquanto ela falava sem parar sobre sua recente ida ao méxico, sua ancestralidade indiana melhor entendida, sua recente separação, suas novas ideias para a montagem do espaço expositivo da galeria, notei algo úmido, como a carícia de um molusco, perto do meu umbigo, uma língua solta a salivar. olhei para baixo da direção do carro, minhas pernas, olhei para a barriga, lá estava uma mancha vermelha começando a surgir em minha blusa. a mantive ocupada com perguntas e mais perguntas para que não me desperdiçasse compenetração em minha situação, e depois, na galeria, coloquei um velho blusão por cima de tudo e suei, suei como uma porca o dia todo.
cheguei no corredor do meu prédio, sentei no chão ao lado da porta. fiquei bons minutos ali tentando sistematizar algumas palavras soltas, me colocar em um local que faça sentido. o suor e sangue juntos tem um cheiro engraçado porque afasta viciando. tudo passava pela minha cabeça como um túnel, apenas informações muito rápidas , não conseguia tocar de verdade e tocar de verdade seria se importar, dar a mínima, levar a sério. não era possível dar a devida preocupação, devida euforia para o que ocorria, o que ocorria agora era meu corpo caduco, caduco vermelhando, dolorido, com marcas de dente de uma menina. um campo de mina terrestre. decidi que sentiria as palavras mais corretas de serem ditas na hora de entrar em casa e as coisas seriam tratadas de maneira natural.
cheguei em casa e lá estava ela. me abraçou, me tocou com as palmas completas, escorregando da testa as bochechas seus dedos. me agradeceu. sentamos na mesa e me contou como estava melhor, como se sentia outra pessoa. era tão absurdo imaginar agora mas houve dias que não viveu em memória ou em plena capacidade, apenas consentiu, empinada pelo vento. não sabia direito qual caminho havia a trazido para ter chego aqui mas disse ser aqui onde voltou a si. falava e falava sem pausa como minha amiga colombiana, e eu ouvia. abriu a geladeira pegou um chá gelado de erca cidreira com laranja, entortou as sobrancelhas e me contou o que descobriu.
então me contou uma história triste. triste triste. história que eu não lembro pois o que eu lembro é apenas o que pensei na hora, o que imaginei. pensei ter se lembrado de quando havia um homem, eles estavam juntos, ele a engravidou. que o homem parecia feliz, e ela estava mais feliz por ter um filho do que qualquer coisa, então o bebe se foi e ela descobriu que o homem dava há dias antiabortivo, escondido na em cada refeição que faziam juntos. ela teve de ir para o hospital, depois voltou a faculdade mas não tinha ânimo para nada. ou poderia ser outra coisa. poderia ter sido expulsa da casa dos pais por ter pego barriga, ter levado uma surra e perdido o bebê, ou sem bebê algum, expulsa de casa por não ser o que os pais esperavam que ela fosse. ou apenas foi atacada por alguém que achava conhecer, depois de uma festa, no banheiro acadêmico, no carro de um amigo, deitada na sua cama recebendo as primeiras pistas que o sol estava nascendo. poderia ser isso, nada disso, ou tudo. o que importa era a raiva que abaixava as têmporas, esquadriava o peito, um engano, uma decepção, vinda de uma confiança traída que cegou todas as facas, limou as torções dos parafusos, fez até mesmo as coisas serem menos confiáveis e aos poucos foi a paralisando.
ela sentiu vergonha do que me confidenciara, vergonha de ser roubada assim, desrespeitada, enganada, de estar enfraquecida. vergonha de chorar estando com a consciência no máximo sinal. de não bater, de não responder, de não socar, mesmo estando com os músculos entorpecidos na força máxima. pela minha experiência alguém que estava assim como ela, vivendo uma sétima encarnação de um tipo de pedra, desandada, retirante de si, pausada, poderia sentir ou pensar saber qualquer coisa. este é um estágio onde dos que chegam na gastura mais desgastante, a ponto de tudo retroceder, e ser difícil distinguir acontecimentos falsos ou reais porque tudo foi levado, contaminado, rompido, até o passado primeiro. as coisas aconteceram e não aconteceram com ela, era isto que eu achava, mas sua presença ali era o que fazia as coisas serem certas e inegáveis.
devagar muito devagar me curvei sobre seus ombros, coloquei o queixo sobre seus cabelos. me permiti colocar os braços nos seus braços pois é isso que me ensinaram ser o normal a fazer para ajudar os outros seres humanos, milimetricamente, como uma receita médica, à risca a pressionei medindo o nível deste encontro. eu repetia tudo bem bem bem baixinho, bem baixinho mesmo, como uma ciranda, de novo e de novo, até que eu mesma caí em minha armadilha e me perdi ali, saí de mim e quando retornei ela estava de pé, eu ainda tudo bem tudo bem, como pega na mentira mas não era mentira, era apenas um lugar que não sabia onde para nós duas entrarmos apenas. me olhou por um tempo e buscou com as mãos meu rosto, no que automaticamente pensei ser a lembrança daquele ataque da noite anterior, mas ao invés disso, delicadamente juntou meu olhar e me beijou.
me beijou na boca. se deteve com cautela pelos meridianos do rosto como um novo mapeamento. um recomeço na promessa da lucidez
ela tirava minha blusa, enquanto eu inerte a via beijar-me de olhos fechados, aos poucos, oferecendo pequenos extratos de doçura, muito distante do cuidado das outras noites. abriu os olhos, abriu a blusa, abriu, então se deparou com aquela cena - o meu peito nu. soltou um grito, ficou preocupada. não lembrava de nada, de nada dos nossos pequenos encontros. eu não tinha coragem de dizê-la como antes não tinha tido. parecia que simplesmente não merecia. perguntou se doía e eu assenti. trouxe alguns remédios, desfez os curativos e os melhorou. aquela estranha sensação de seus dedos rolando sobre as marcas de seus próprios dentes, com horror. aos poucos senti algo nela despertando, algum conhecimento entre meu corpo e ela sendo indiretamente trocado, ela ia aceitando o que havia tinha mesmo ocorrido sem eu ao menos dizer nada. não me importo, eu disse, é verdade, não me importo, não me interessa, está tudo bem. é só pele, superfície. esta nem era toda a verdade. talvez até gostasse, talvez até precisasse, talvez até fosse essa minha forma de me caber, de me roçar no mundo, de perseguir meus fugitivos com gana. tive sonhos estranhos, mas nada como isso, não era você, gaguejou incrédula mais por não lembrar, agora que estava tão clara das coisas, do que pelo que fez.
mesmo assim fomos para a cama, e eu acossada com meus pedaços, me recolhi. nos deitamos juntas como antigas conhecidas, como um segredo dividido em duas partes que precisa de ambas para ser legível, antigas amigas, amantes, qualquer coisa. extremamente conscientes o que não fazia nada ser mais fácil mas também não menos natural. tirou a roupa, depois me ajudou a me despir, e ainda com os olhos inchados, vagando como uma rede, borrão vermelho no vento conjunto desvairado, me beijou. por mais sutil que fosse o movimento dos seus braços, suas pernas, seu quadril, mais brandos que fosse sua língua, sua boca, sua mão, seus seios, o que de todo não eram, mesmo assim meu corpo doía. exclamava, inchado, perfurado, habitado, qualquer titubeio, maior ou menor, era o mesmo, o pouco era muito. enquanto se movia levava junto minhas partes, meus pedaços, meus poços, meus buracos, por instantes, nossos. tudo antes de ser algo era antes dor, difundindo pelo corpo, meu corpo sem centro, meu corpo que era um duplo, dublê. minha armadura ferida, ensaiando o início de um levante, no que era ferozmente dolorido e além de tudo extremamente prazeroso.
rua Rojas
um homem tentou denunciar aos jornais o desaparecimento de uma casa. a casa fora vista em dois diferentes locais antes de desaparecer completamente. a casa habitava a rua Rojas e só a terra marrom ficou. as fotografias e palavras dos vizinhos são as provas. o homem tem medo de ir a polícia, o homem sabe o que acontece com uma casa nesses dias. os jornais não acreditam. quem faria isto, teria este trabalho, no beliscar da luz do dia? o homem dorme embaixo de uma marquise e olha constantemente para os lados.
solidão
a escritora fora a tv não para falar nada em especial mas para ser a escritora portanto como ela é a escritora ficou quieta. a escritora ficou quieta até que a plateia, um conjunto de quatro pessoas de maior prestígio e júblio e carrochinhas, a fizeram uma pergunta. a pergunta era sobre solidão. a escritora disse neste país não há como ninguém ou nada ficarem apenas sozinhos. ninguém está sozinho neste país mesmo em seu próprio quarto pois este quarto também fica neste país e este país sendo o país que é também é um país de desaparecidos. embaixo do seu piso ou sobre o céu de seus telhados. um desaparecido. enterrado no chão ou jogado do ar em eterno repite. um desaparecido quando desaparece é um desaparecido em todo lugar que um dia apareceu. portanto estar sozinho neste país está absolutamente proibido. depois ela olhou para a parede e falou algo que o microfone não captou e o enquadramento da câmera não mostrou mas tudo indica estar lá.
segunda-feira, 7 de agosto de 2017
três hipóteses
na rua da praia, no número 146, terceiro piso há um andar
inteiro com documentos sobre os desaparecidos. há um andar inteiro para os
desaparecidos. dos desaparecidos. há inclusive roupas. objetos. canivetes.
carteiras.charutos. caixas de fósforo. bilhetes com telefones. manchas de
bebida em coletes. pulseiras de sementes. livretos de ortega y gasset.
anotações das próximas leituras de ortega y gasset. a viagem ao maranhão onde
as sementes foram encontradas ao lado da cabine telefônica que ficava ao lado
de nada. o pisco chileno que o amigo australiano trouxe quando tombaram da
prova de cálculo III. o fósforo comprado não para o cigarro mas para ajudar o
menino que demorava quatro horas para voltar do centro até sua casa. o canivete
não só para a luta mano a mano a sobrevivência no cerrado ou na mata atlântica
mas onde o nome do avô estava escrito comprovando a imanência de certas coisas.
não só objetos. também ossadas. mais 10 ossadas de desconhecidos constam neste
prédio. algumas quase completas, com crânio, rádio, tíbias. outras com o
desfalque suficiente. mais de dez corpos de desconhecidos estão guardados no
terceiro andar da rua principal desta cidade, uma rua que leva ao porto, ao
rio, ao mar, ao mar internacional. antes de chegar a elas há homens armados,
soldados que colocam e retiram a bandeira nacional todo dia que finda. podemos
tirar algumas conclusões: os desaparecidos, aqueles nunca achados, estão
guardados no terceiro andar deste prédio. portanto um desaparecido é também
alguém separado de seu próprio corpo. um desaparecido não é um corpo, senão
estaríamos resolvidos. ou, ainda, há uma opção que prefiro: o andar deste prédio
está desaparecido, o prédio está desaparecido, a rua de cidade está
completamente desaparecida. por isso não nos deixam chegar perto. por isso as
armas. ver algo desaparecido é algo extremamente perigoso para eles. mentir
para eles é uma questão primeiro de arquitetura e geografia.
barrigonas
As duas grávidas. Ao mesmo tempo. Saíam escondidas das freiras, iam catar bergamotas no terreno ao lado. Gostavam de nadar em Jacaú. Colocavam o barrigão para cima, pareado com o sol, deixavam eles sozinhos como montanhas ou cascas de tartaruga tudo menos um pedaço vivo. Debaixo da água se olhavam mergulhadas até que uma lembrasse de respirar. Eram muito parecidas. Os cabelos mais para o escuro, a altura nivelada. Confundiam empregadas, usavam mesmas roupas, davam susto aos desavisados, ao ponto da madre superior desconfiar terem as duas um idioma próprio.
Quando todas meninas iam dormir, no grande quarto principal com seus segundos corações abrindo-lhes as botoaduras, uma procurava a cama da outra. Embaixo do lençol conversavam dentro dos túneis dos ouvidos até pegarem no sono. Se questionavam até que tamanho poderia crescer um coelho, quanto tempo durou a mais velha uva verde solta na natureza, quantas pessoas eram necessárias para construir um aparelho de televisão ou quantas palavras falariam até pararem um dia de falar. Qualquer coisa que fosse um lugar e não um tempo. Qualquer coisa que fosse delas e de mais ninguém. Enroscavam-se uma na outra, o que era difícil porque as barrigas, muito grandes já, talvez sete meses ou oito, acalmavam a intimidade. Por isso, invertiam-se para dormir uma nas pernas da outra, como algo sem fim ou começo, e pegavam o sono assim.
Se uma de repente parecia estar triste, o que era raro, a outra cantava uma canção que inventava na hora, depois se esquecia, e elas riam juntas do que não mais volta. Ou então, tascavam-se beijos brandos pelo pescoço, devagar, como quem forja um mapa, uma trilha, e como o povos antigos pedem com licença a mata para perambular. Os beijos finos e acurados, um ritmo meditativo, eram uma outra coisa como uma permissão para não pensar em nada, ou talvez, lembrar seu próprio corpo pode falar por si, assim como, um arrepio ergue-se soberano.
Ao irem tomar banho com outras meninas, ou passavam mal e vomitavam no banheiro, estes eram os momentos que lembravam ter um barriga, por tanto, algo nela, o que não sabiam direito pois não pensavam no assunto. Sabiam o que viam: a pele a se esfolar pelos lados, a silhueta a desfazer as medidas melódicas, o peso ganho, a dificuldade de correr, jogar bola, limpar as paredes da instituição. Mas eram crianças e tudo muda a todo instante quando tudo recém já se foi e alem do mais passavam por aquilo juntas. Juntas além daquelas outras vinte meninas que com elas se embrenhavam nos corredores, choravam achatadas por trás de móveis, liam muito ou nada, algumas por serem analfabetas outro por raiva, desapareciam apenas em uma noite desigual. Mas disto também não designavam muita atenção. Tinham uma a outra e este conjunto era inquebrável pois o exterior parecia mais como um reflexo.
As barrigonas cada vez maiores eram postas uma de frente a outra. Eu terei uma casa, pois aqui dentro eu guardo um castelo diz a outra. Pois a barriga é minha e digo que dentro dela terei um exército e este exército marchará para o seu castelo. E se te dizer que teu exército são cópias minhas e não tuas? Milhares de você aqui dentro, diz a outra! Eu gosto. Especialmente se souberem fazer um belo doce de leite, pudim ou bolo de fubá. As histórias eram contadas durante o dia inteiro, as tarefas, as rotinas de higiene. As histórias eram caminhos de alargar o dia, para que lá de longe, parecesse grande e gordo como elas. Tem vezes, em um lapso de realidade, chegavam mais perto das pistas sólidas. Terei quatro filhos e eles casarão com as suas filhas e teremos uma família. Mas nós já somos uma família. Então lembravam como um caco de vidro sobrevivente a alguma limpeza descuidada, o antes, o vir para cá agulhando a pele, um pedaço tão pequeno e tão afiado, e abraçavam-se odiando as barrigas mais que tudo por chegarem antes delas no peito da outra.
Odiavam as barrigas mas odiavam juntas e por isso não era tanto um problema. Ao mesmo tempo, não havia como ignorá-las. Se a criança chutava os pequenos corpos não tinham muita força para conter sua ressaca no resto da carne. Se a criança se mexia acordavam e se enroscavam mais forte os quatro como partes do mesmo tentáculo. Mas ali continuava a noite mal dormida, o coice, em algum lugar repetindo-se. Quando eram levadas ao médicos pelas freiras para serem examinadas, um pano era posto para que não vissem o monitor ou qualquer resultado visual. Só o que viam era o rosto da outra, atrás da mesma cortina de hospital, enquanto um graveto gelado saracoteava suas barrigas em busca de ouro ou qualquer metal.
Sabiam o que tinha acontecido uma a outra. Sabiam por pensamento dedutivo e porque houve historias antes delas. Quando o irmão de uma pulou na outra, veio correndo da oficina do tio não acreditando que os gritos seriam do gato recém salvo do abandono, não acreditando seu irmão não cumprir a palavra. Quando chegou havia sangue pela sala e o gato vivo e calmo deixavam manchas vermelhas na casa. As manchas, O gato, o meu gato em nossa casa. A culpa será minha imaginou até no outro dia ao visitar a amiga notar algo diferente. Embora não falasse nada, mancava e tinha alguns arranhões. Brincaram aquele dia, e quando ele começava a insinuar seu fim, fez-lhe um sanduíche de mortadela, e abraçou a amiga muito forte até chorar sobre seu cabelos o que o silêncio da outra não conseguia.
A dor, uma vez, mais que uma, tanto várias, sentira e deixara de sentir em pouco para ser muito. Foram mais de quatro vezes que homens chegaram e foram embora, falaram coisas parecidas, fizeram similares, em uma repetição onde tudo se perde, ao ponto de entender ser deste modo as direções das coisas. Mas ver a outra assim, irremediada, desfilada, feita de partilhas, teve vontade genuína de não se conter.
As palavras e as histórias elas também precisam de um descanso precisam ser postas de lado para se refazerem, olharem-se no espelho, notar suas próprias rugas. Quando elas se vão, quando o dia será pesado, de faxina e conversa com desconhecidos, pessoas de fora que vez e outra vem olhar as crianças, tentam conquistar a calma com bolhas e mais bolhas. Fazem bolhas com os lábios e para que não estourem eles trocam-se de bocas, beijam-se devagarzinho, cuidando de suas próprias criaturas, instantaneamente suas mentes são lidas e nada pode ser escondido.
As freiras também tem seus segredos, suas fontes milagrosas ou interrompidas. Em um dia, escondidas no quarto de uma a procurar algo que tivesse botões, um celular, um telefone, qualquer mágica que falassem com os dedos, encontraram duas próximas demais. Desfilava-se uma na outra como leoas, tateando uma armadilha, o melhor lugar para uma mordida eficiente. O barulho alto dos gemidos da savana desfalcou ao som dos pés durante a fuga e tiveram a impressão de ser aquilo muito distante e de impossível comparação com que sentiam, mas ainda presente, em uma insinuação ilegível ainda a elas.
Mais tarde, fazem o que fazem. Como imaginar o dia que suas barrigas se abrirão. Ao mesmo tempo, se seduzem a acreditar. No mesmo minuto! Primeiro eu. Uma dará o nome do filho da outra. Depois viajará por anos e quando retornar trocarão de filhos. Se a vida assim as quiser longe, mudarão de filhos durante boa parte dela, de modo que eles nunca saibam quem será sua verdadeira mãe. Ou se ficarem juntas, inventarão histórias. Inverterão seus nomes, os deixarão confusos, mesclarão memórias, primeiros passos e primeiras palavras, até que todos se sintam muito próximos um do outro.
Aramaram uma brincadeira nova. Quando o irmão chegasse, tropeçaria da escada. A brincadeira seria um acidente depois de ser uma brincadeira. Pensava até mesmo em culpar o gato. A amiga parecia não entender completamente, ou apenas não se permitir. O irmão chegou, no fio esticado em frente a escada, titubeou mas não caiu. A irmã então o empurrou com toda a força por outros cedida. As crianças falham em tentar matá-o e este cai mas apenas desmaia. Ainda há uma segunda opção. Uma faca escondida ali perto de propósito. Elas estão se olhando, a irmã ousa pegar a faca mas sangue está migrando da cabeça ao chão afora. O sangue de novo. E de novo acredita que as coisas são como são, acredita no acidente, no tropeço e nada nunca aconteceu nem este dia nem o dia que a amiga foi encontrada nesta casa. O irmão sobrevive. As coisas são o que os homens fazem com as coisas – ouviu dizerem um dia. Dias depois, engravida. O pai a chama de puta e a expulsa de casa.
Não tem raiva do irmão. Não como antes. Agora estão sozinhas, só elas, naquele lugar. Fazem tudo juntas, se aproximam como se o braço de uma fosse apelido do braço de outra. Se chamam pelos olhos. Não tem vergonha da nudez ou do choro, muito menos dos corpos desengonçados, das feridas, das estrias que os beijos tentam remendar ou apenas botar para dormir como um animal nômade no corpo. Aqui puderam crescer juntas. Ou não crescerem nunca ao mesmo tempo.
Aqui descobriram saber muito bem o que querem. Quando o tempo for limite não deixaram que toquem em seus filhos. Não deixarão que nenhum casal as leve para longe deste orfanato ou de volta a sua fazenda. Antes de tudo isto irão embora e terão sua própria casa, com seus filhos, sua própria vida. Isto não precisa estar nas histórias que contam de jeito exausto a cada fio de minuto. Não precisa ser traduzido. É um instinto compartilhado. Bolhas. Elas sabem, saber é onde ninguém vigia, lá dentro. Possuem olhos nos pés, agarradas uma na outra. Além do mais são quatro agora.
Quando todas meninas iam dormir, no grande quarto principal com seus segundos corações abrindo-lhes as botoaduras, uma procurava a cama da outra. Embaixo do lençol conversavam dentro dos túneis dos ouvidos até pegarem no sono. Se questionavam até que tamanho poderia crescer um coelho, quanto tempo durou a mais velha uva verde solta na natureza, quantas pessoas eram necessárias para construir um aparelho de televisão ou quantas palavras falariam até pararem um dia de falar. Qualquer coisa que fosse um lugar e não um tempo. Qualquer coisa que fosse delas e de mais ninguém. Enroscavam-se uma na outra, o que era difícil porque as barrigas, muito grandes já, talvez sete meses ou oito, acalmavam a intimidade. Por isso, invertiam-se para dormir uma nas pernas da outra, como algo sem fim ou começo, e pegavam o sono assim.
Se uma de repente parecia estar triste, o que era raro, a outra cantava uma canção que inventava na hora, depois se esquecia, e elas riam juntas do que não mais volta. Ou então, tascavam-se beijos brandos pelo pescoço, devagar, como quem forja um mapa, uma trilha, e como o povos antigos pedem com licença a mata para perambular. Os beijos finos e acurados, um ritmo meditativo, eram uma outra coisa como uma permissão para não pensar em nada, ou talvez, lembrar seu próprio corpo pode falar por si, assim como, um arrepio ergue-se soberano.
Ao irem tomar banho com outras meninas, ou passavam mal e vomitavam no banheiro, estes eram os momentos que lembravam ter um barriga, por tanto, algo nela, o que não sabiam direito pois não pensavam no assunto. Sabiam o que viam: a pele a se esfolar pelos lados, a silhueta a desfazer as medidas melódicas, o peso ganho, a dificuldade de correr, jogar bola, limpar as paredes da instituição. Mas eram crianças e tudo muda a todo instante quando tudo recém já se foi e alem do mais passavam por aquilo juntas. Juntas além daquelas outras vinte meninas que com elas se embrenhavam nos corredores, choravam achatadas por trás de móveis, liam muito ou nada, algumas por serem analfabetas outro por raiva, desapareciam apenas em uma noite desigual. Mas disto também não designavam muita atenção. Tinham uma a outra e este conjunto era inquebrável pois o exterior parecia mais como um reflexo.
As barrigonas cada vez maiores eram postas uma de frente a outra. Eu terei uma casa, pois aqui dentro eu guardo um castelo diz a outra. Pois a barriga é minha e digo que dentro dela terei um exército e este exército marchará para o seu castelo. E se te dizer que teu exército são cópias minhas e não tuas? Milhares de você aqui dentro, diz a outra! Eu gosto. Especialmente se souberem fazer um belo doce de leite, pudim ou bolo de fubá. As histórias eram contadas durante o dia inteiro, as tarefas, as rotinas de higiene. As histórias eram caminhos de alargar o dia, para que lá de longe, parecesse grande e gordo como elas. Tem vezes, em um lapso de realidade, chegavam mais perto das pistas sólidas. Terei quatro filhos e eles casarão com as suas filhas e teremos uma família. Mas nós já somos uma família. Então lembravam como um caco de vidro sobrevivente a alguma limpeza descuidada, o antes, o vir para cá agulhando a pele, um pedaço tão pequeno e tão afiado, e abraçavam-se odiando as barrigas mais que tudo por chegarem antes delas no peito da outra.
Odiavam as barrigas mas odiavam juntas e por isso não era tanto um problema. Ao mesmo tempo, não havia como ignorá-las. Se a criança chutava os pequenos corpos não tinham muita força para conter sua ressaca no resto da carne. Se a criança se mexia acordavam e se enroscavam mais forte os quatro como partes do mesmo tentáculo. Mas ali continuava a noite mal dormida, o coice, em algum lugar repetindo-se. Quando eram levadas ao médicos pelas freiras para serem examinadas, um pano era posto para que não vissem o monitor ou qualquer resultado visual. Só o que viam era o rosto da outra, atrás da mesma cortina de hospital, enquanto um graveto gelado saracoteava suas barrigas em busca de ouro ou qualquer metal.
Sabiam o que tinha acontecido uma a outra. Sabiam por pensamento dedutivo e porque houve historias antes delas. Quando o irmão de uma pulou na outra, veio correndo da oficina do tio não acreditando que os gritos seriam do gato recém salvo do abandono, não acreditando seu irmão não cumprir a palavra. Quando chegou havia sangue pela sala e o gato vivo e calmo deixavam manchas vermelhas na casa. As manchas, O gato, o meu gato em nossa casa. A culpa será minha imaginou até no outro dia ao visitar a amiga notar algo diferente. Embora não falasse nada, mancava e tinha alguns arranhões. Brincaram aquele dia, e quando ele começava a insinuar seu fim, fez-lhe um sanduíche de mortadela, e abraçou a amiga muito forte até chorar sobre seu cabelos o que o silêncio da outra não conseguia.
A dor, uma vez, mais que uma, tanto várias, sentira e deixara de sentir em pouco para ser muito. Foram mais de quatro vezes que homens chegaram e foram embora, falaram coisas parecidas, fizeram similares, em uma repetição onde tudo se perde, ao ponto de entender ser deste modo as direções das coisas. Mas ver a outra assim, irremediada, desfilada, feita de partilhas, teve vontade genuína de não se conter.
As palavras e as histórias elas também precisam de um descanso precisam ser postas de lado para se refazerem, olharem-se no espelho, notar suas próprias rugas. Quando elas se vão, quando o dia será pesado, de faxina e conversa com desconhecidos, pessoas de fora que vez e outra vem olhar as crianças, tentam conquistar a calma com bolhas e mais bolhas. Fazem bolhas com os lábios e para que não estourem eles trocam-se de bocas, beijam-se devagarzinho, cuidando de suas próprias criaturas, instantaneamente suas mentes são lidas e nada pode ser escondido.
As freiras também tem seus segredos, suas fontes milagrosas ou interrompidas. Em um dia, escondidas no quarto de uma a procurar algo que tivesse botões, um celular, um telefone, qualquer mágica que falassem com os dedos, encontraram duas próximas demais. Desfilava-se uma na outra como leoas, tateando uma armadilha, o melhor lugar para uma mordida eficiente. O barulho alto dos gemidos da savana desfalcou ao som dos pés durante a fuga e tiveram a impressão de ser aquilo muito distante e de impossível comparação com que sentiam, mas ainda presente, em uma insinuação ilegível ainda a elas.
Mais tarde, fazem o que fazem. Como imaginar o dia que suas barrigas se abrirão. Ao mesmo tempo, se seduzem a acreditar. No mesmo minuto! Primeiro eu. Uma dará o nome do filho da outra. Depois viajará por anos e quando retornar trocarão de filhos. Se a vida assim as quiser longe, mudarão de filhos durante boa parte dela, de modo que eles nunca saibam quem será sua verdadeira mãe. Ou se ficarem juntas, inventarão histórias. Inverterão seus nomes, os deixarão confusos, mesclarão memórias, primeiros passos e primeiras palavras, até que todos se sintam muito próximos um do outro.
Aramaram uma brincadeira nova. Quando o irmão chegasse, tropeçaria da escada. A brincadeira seria um acidente depois de ser uma brincadeira. Pensava até mesmo em culpar o gato. A amiga parecia não entender completamente, ou apenas não se permitir. O irmão chegou, no fio esticado em frente a escada, titubeou mas não caiu. A irmã então o empurrou com toda a força por outros cedida. As crianças falham em tentar matá-o e este cai mas apenas desmaia. Ainda há uma segunda opção. Uma faca escondida ali perto de propósito. Elas estão se olhando, a irmã ousa pegar a faca mas sangue está migrando da cabeça ao chão afora. O sangue de novo. E de novo acredita que as coisas são como são, acredita no acidente, no tropeço e nada nunca aconteceu nem este dia nem o dia que a amiga foi encontrada nesta casa. O irmão sobrevive. As coisas são o que os homens fazem com as coisas – ouviu dizerem um dia. Dias depois, engravida. O pai a chama de puta e a expulsa de casa.
Não tem raiva do irmão. Não como antes. Agora estão sozinhas, só elas, naquele lugar. Fazem tudo juntas, se aproximam como se o braço de uma fosse apelido do braço de outra. Se chamam pelos olhos. Não tem vergonha da nudez ou do choro, muito menos dos corpos desengonçados, das feridas, das estrias que os beijos tentam remendar ou apenas botar para dormir como um animal nômade no corpo. Aqui puderam crescer juntas. Ou não crescerem nunca ao mesmo tempo.
Aqui descobriram saber muito bem o que querem. Quando o tempo for limite não deixaram que toquem em seus filhos. Não deixarão que nenhum casal as leve para longe deste orfanato ou de volta a sua fazenda. Antes de tudo isto irão embora e terão sua própria casa, com seus filhos, sua própria vida. Isto não precisa estar nas histórias que contam de jeito exausto a cada fio de minuto. Não precisa ser traduzido. É um instinto compartilhado. Bolhas. Elas sabem, saber é onde ninguém vigia, lá dentro. Possuem olhos nos pés, agarradas uma na outra. Além do mais são quatro agora.
segunda-feira, 31 de julho de 2017
Lorna Munõtopo: formas de repetir e de desformar
Apesar de já estar no quarto livro publicado a escritora
adverte: é a estreia dentro da estreia, tudo de novo
Tudo de novo tem um conceito divergente para escritora
paraguaia-brasileira. “É a minha arquibancada. É onde termino de pensar uma coisa
de fora para que ela vire uma coisa de dentro. É minha loja de penhores
particular: obsessão valiosa pela repetição tao terrível que nos faz alérgico
até mesmo ao caos”, me conta Lorna de dentro de sua rede, na cidade de Cuiabá. Lorna
ri nos momentos ambíguos, ambíguos pois ela os ri e então já são um momento
além do passageiro, e entardece o maxilar quando se menos espera. No começo de
nossa entrevista ela apontava fornecia pistas falsas como o cigarro retira do
da embalagem, porém, não fumado. O ventilador parado que pediu que fosse posto
na sala. O convite para fechar a janela, embora, não houvesse um pingo de vento.
“Tudo que existe não é algo que teve início ou fim. Tudo que
existe é algo que desiste. E assim se perpetua. É pura reprise mas não é disto
que quero falar”. Lorna recentemente fora convidada para o Festival de
Literatura da América Central, na Guatemala, onde comentou com jovens
escritores seu mais recente livro: Argumentos
da fuligem e da seca, onde volta ao tema recorrente de algumas de suas
obras, tais como a incestuosa relação entre a luta campesina e as missões
católicas. A publicação anterior O
Sangue-bom não lava o asfalto reuniu relatos de B.O.s e processos que correm na Justiça de Mato
Grosso, principalmente, relativo a crimes feitos por policiais na fronteira
entre Paraguai e Brasil. Com um ritmo coloquial e rápido, “como uma corrente de
ar que sabe de sua missão de trazer os grãos de minerais do deserto do Sahaara para a América amazônica” alguns leitores se dizem consternados, e até mesmo, enjoados
com as vozes ligeiras e cenários em giro. Quando pergunto a ela sobre o que
realmente este livro é sobre Lorna corta pedaços de rapadura, olha para uma
foto na parede de um mar aberto, e responde: “Este livro é sobre o primeiro
viking que chegou ao leste do canadá. O primeiro Chinês que chegou ao norte do
brasil. Ao primeiro polonésio que chegou em Rapa Nui. Este livro com certeza
não é sobre o primeiro português que chegou na costa brasileira. Eu gostaria de
fazer as pessoas gostarem de geometria sem a utilizar no processo. Eu gostaria
de fazer convites e não encontros. Eu gostaria que as pessoas trocassem os
dedos e tocassem as mãos. Eu gostaria que a geometria salvassem a roda de girar
sempre para o mesmo lado. Mas infelizmente não dá. Então eu escrevo. Eu escrevo
pelas cucunhas”.
A ciclicidade é um tema complicado para o escritor. Não para Lorna. O tom
circular da narrativa, que invoca recomeços da mesma ação, sem término ou
começo, com várias versões que não nos avisam se são a oficial ou não é uma
marca de Lorna. “Cansei de ver as pessoas morrerem sempre da mesma forma. A
mesma forma mata as pessoas antes. Porque tira a história, porque tira o nome
da pessoa. E reduz tudo. O bom seria ter outro jeito. Serem várias as
histórias. A história não pode ficar na mão do assassino”. Tenente Assis, o
advogado Gusmão Absid, o grupo Sidônica, a construtora Edgmann and Buddys. Os
assassinos de Lorna são tão maléficos ainda mais por isso: combinam suas
narrativas e na mesmice tudo é desimportante. Pois a mesmice é o dia in vitro.
Contudo, lembra Lorna, “o que me interessa é o que escapa,
onde se erra pois a palavra não chega. Porque a palavra meu camarada é a lei. A
lei é o holograma dos religiosos. E aí é onde não estamos”. Em A quem se
interessar, aceito mais um bocado, outro livro da escritora, o que não
falta é a manina pelo levante. “Nele eu imaginei o seguinte: quem sabe é você”.
A história, que em tese seria sobre duas meninas que saiem da cidade para
construir uma escola em uma cidade conservadora, propõe o máximo de um
experimentalismo que eu defenderia como o do não lugar. Uma hora Marine é
Catulo, o mercador da cidade. Noutra ele conta a vida de Marine por Leopolda.
Em algum momento Leopolda e Marine viram Pancho, o chefe de uma milícia que
presta segurança as cabeças de bois dos fazendeiros. Noutra Marine nunca
existiu e Lepolda foi um sonho. A escrita engana. “O texto é sempre algo a
mando de alguém. A escrita é reta, linear. Isto me entristece, pois, não é a
verdade. A verdade é que Pacho e Catulo estão vivos há mais de 5000 anos ou
muitos a mais e isto é terrivelmente desastroso. Enquanto isto, as mulheres são
o futuro”.
A escritora de 66
anos nos garante: a palavra é o último recurso, não deve ser respeitada no
primeiro bote, na sua medida de alfaiataria. "Eu diria: desconfie de tudo que gramatica (sic). Quando duas pessoas desconfiam temos uma conversa". Dizer vem de diccere, do latim, também com raiz no digitare, os dedos, sim, os dedos. “Eu gostaria que as pessoas
tocassem as mãos”, recordo as palavras da narradora. No inglês, Spell, antes era soletrar um
encantamento. Em Lorna, se retorna os antigos sentidos não porque voltaram mas
porque nunca se foram.
terça-feira, 13 de junho de 2017
o beijo
Você segura a minha mão como um navio pesqueiro, uma rede assustada e ágil, bem na hora que o ator principal tropeça no palco e retoma o fôlego. Eu rio, eu preciso de minhas duas mãos para rir, aquela que está com você sua como um peixe que debate-se.
A peça acaba, os atores vão pra frente do palco, você me larga levanta e aplaude e eu ergo meu pequeno peixe soluçante, o esfrego nos olhos, o dou de beber para que viva pouco tanto a mais, o uso para arrumar os cabelos. Mais tarde você diz que adoro o meu cheiro e eu sorrio criminosa de minha pequena verdade.
Você diz que está feliz, você está feliz por me conhecer.
Em lembro que isto é um restaurante e peço qualquer tipo de fritura porque já temos essa intimidade de comer com as mãos. Você identifica as lajotas, os pequenos tijolos, dá um murro neles, chega mais perto. Eu retraio. Você pode ser assustador quando sabe o que quer porque na maior parte do tempo parece que não sabe.
Eu falo de Baudrilliard, eu tento falar do seu trabalho, da sua dissertação. Eu não sei bem o que estou fazendo aqui e não decidi como quero gostar de você. Normalmente faço isso quando durmo mais de 12 horas, e lá pela tantas, em uma banca de jornal ou em um avião maria-fumaça a redigir no ar, escolho e entendo alguns papéis.
Mas você não quer saber e bagunça o meu cabelo.
Ok, talvez você seja o tipo da pessoa que faz isso. Eu penso que posso lidar com isso, uma pessoa que faz isso e vá embora.
Você diz que está feliz mas que é uma pena.
Eu retrocedo meus cavalos e silencio a artilharia. Eu penso em todos os jogos que venci por não saber as regras direito. Eu penso sobre ser figurinista e como nunca poderei de fato ser figurinista, que eu sempre erro a forma na ocasião. Algo que você vai dizer pode suar injusto, você é muito poderoso neste momento.
Você diz que tudo bem, e pede para que eu entenda. Você gosta de mim. E não sabe porque. Mas tem algo que preciso saber. Você vai morrer em breve, provavelmente em um acidente de trânsito, provavelmente indo para cachoeirinha visitar as tias, provavelmente você diz, mas na verdade arrisca até mesmo uma hora.
Você ri e logo percebo que essa é sua maneira de ser desesperado e essa é a pior maneira para qualquer coisa porque faz alguém perder os olhos quando te ouve. E só se concentrar em pequenas alucinações.
Eu digo que isto é besteira. Que você é louco. Eu te xingo porque essa é minha nova maneira de mostrar que me importo.
Você diz que tudo bem. Que não tem problema. Você sabe que é jovem mas se sente satisfeito. Sente que fez tudo que queria, que tratou bem aqueles que amava, que amou o suficiente.
Eu pergunto como você sabe disso.
Você pede uma cerveja. Espera uma menina de longos cabelos e com a cabeça levemente raspada a trazer para começar a falar.
Eu gostaria que a menina senta-se aqui também. Eu gostaria de ser duas, ou tentar ser duas, para compreender o que você realmente queria dizer.
Você bebe metade do copo. Diz apenas que sabe. Não é espirituoso, nem religioso. Não é um médium nem nada parecido. Só sabe disso. E tudo bem saber. Você levanta um pouco a voz e em seu rosto há uma paisagem completa. Você usa cada espçinho do seu rosto para tentar me convencer em aceitar um absurdo, a praticamente herda-lo. Então diz que me contou porque na queria me vê triste ou mal, porque achou mais justo me avisar. Porque de algum modo se importa comigo.
Você fala da sua morte como alguns homens falam de uma harley davison. Os detalhes do motor, as cilindradas, o ascendimento. A faísca. Você aceitou fácil esta idéia e por isso e pelo resto há poderes no mundo cedidos apenas a você.
Por uns segundos te olho em silêncio. Você todo cheio de si, no controle de suas ações, dono de sua morte. Eu te odeio um pouco neste momento, o que você sabe, o que você não sabe que você sabe. E mais ainda: a sua loucura absurda de saber que sabe de coisas assim.
Você é maluco eu te digo.
Nesse dia vamos para seu apartamento. Ficamos lendo, vendo fotos antigas que você num surto de nostalgia decidiu me oferecer como um modo de acelerar nosso conhecimento um do outro, neste pequeno tempo que segundo você nos resta.
Você dorme no sofá e eu durmo em sua cama.
Na semana seguinte nos vemos sem querer na faculdade. Você desmarca todos os encontros. Eu sei que você não está bem. Você não sabe. Um dia nos fechamos sem querer, temos o mesmo orientador de pesquisa. Na sala é constrangedor olhar para você, o orientador, e aquela pequena loucura que você me contou há dias atrás.
A pequena loucura é um musgo preto pendurado no teto que sempre pinga quando alguém resolve falar.
Depois de meia semana você morre.
Você estava indo para o supermercado para seu pai que não andava se sentindo bem.
Você pegou o retorno errado. Mas depois pegou o certo.
O carro da frente mudou de pista.
Foi como um beijo.
As mandíbulas, no encontro forçado, se quebraram e retorceram. O rosto tremeu, os dentes quebraram.
A línguas ficaram entre os parachoques, ainda, uma dentro da boca de outra.
O motorista do carro da frente também morreu, vocês morreram juntos ao mesmo tempo, e isto os mantinha muito próximo no mundo.
Foi rápido, indolor. Mas seu corpo se perdeu dentro da boca de metal. Os bancos, o aço, a ferrugem do sangue.
Eu não vi no jornal. Eu não lembrei do dia que você tinha me dito. Eu te invejei por ser sábio ou maluco o suficiente. Por ser suficiente para alguma coisa.
Então fui pra aula e alguns colegas contaram para mim. Perguntaram se eu te conhecia. Se eu te conhecia, céus.
Você está morto, mas não realmente.
Eu ouço sua risada quando escovo os dentes ou tento ler um anúncio no outdoor por puro tédio. Eu sinto você rindo como outro outro relógio. Um outro dia. Um outro lugar.
Era por isso eu você estava tão tranqüilo eu penso.
A peça acaba, os atores vão pra frente do palco, você me larga levanta e aplaude e eu ergo meu pequeno peixe soluçante, o esfrego nos olhos, o dou de beber para que viva pouco tanto a mais, o uso para arrumar os cabelos. Mais tarde você diz que adoro o meu cheiro e eu sorrio criminosa de minha pequena verdade.
Você diz que está feliz, você está feliz por me conhecer.
Em lembro que isto é um restaurante e peço qualquer tipo de fritura porque já temos essa intimidade de comer com as mãos. Você identifica as lajotas, os pequenos tijolos, dá um murro neles, chega mais perto. Eu retraio. Você pode ser assustador quando sabe o que quer porque na maior parte do tempo parece que não sabe.
Eu falo de Baudrilliard, eu tento falar do seu trabalho, da sua dissertação. Eu não sei bem o que estou fazendo aqui e não decidi como quero gostar de você. Normalmente faço isso quando durmo mais de 12 horas, e lá pela tantas, em uma banca de jornal ou em um avião maria-fumaça a redigir no ar, escolho e entendo alguns papéis.
Mas você não quer saber e bagunça o meu cabelo.
Ok, talvez você seja o tipo da pessoa que faz isso. Eu penso que posso lidar com isso, uma pessoa que faz isso e vá embora.
Você diz que está feliz mas que é uma pena.
Eu retrocedo meus cavalos e silencio a artilharia. Eu penso em todos os jogos que venci por não saber as regras direito. Eu penso sobre ser figurinista e como nunca poderei de fato ser figurinista, que eu sempre erro a forma na ocasião. Algo que você vai dizer pode suar injusto, você é muito poderoso neste momento.
Você diz que tudo bem, e pede para que eu entenda. Você gosta de mim. E não sabe porque. Mas tem algo que preciso saber. Você vai morrer em breve, provavelmente em um acidente de trânsito, provavelmente indo para cachoeirinha visitar as tias, provavelmente você diz, mas na verdade arrisca até mesmo uma hora.
Você ri e logo percebo que essa é sua maneira de ser desesperado e essa é a pior maneira para qualquer coisa porque faz alguém perder os olhos quando te ouve. E só se concentrar em pequenas alucinações.
Eu digo que isto é besteira. Que você é louco. Eu te xingo porque essa é minha nova maneira de mostrar que me importo.
Você diz que tudo bem. Que não tem problema. Você sabe que é jovem mas se sente satisfeito. Sente que fez tudo que queria, que tratou bem aqueles que amava, que amou o suficiente.
Eu pergunto como você sabe disso.
Você pede uma cerveja. Espera uma menina de longos cabelos e com a cabeça levemente raspada a trazer para começar a falar.
Eu gostaria que a menina senta-se aqui também. Eu gostaria de ser duas, ou tentar ser duas, para compreender o que você realmente queria dizer.
Você bebe metade do copo. Diz apenas que sabe. Não é espirituoso, nem religioso. Não é um médium nem nada parecido. Só sabe disso. E tudo bem saber. Você levanta um pouco a voz e em seu rosto há uma paisagem completa. Você usa cada espçinho do seu rosto para tentar me convencer em aceitar um absurdo, a praticamente herda-lo. Então diz que me contou porque na queria me vê triste ou mal, porque achou mais justo me avisar. Porque de algum modo se importa comigo.
Você fala da sua morte como alguns homens falam de uma harley davison. Os detalhes do motor, as cilindradas, o ascendimento. A faísca. Você aceitou fácil esta idéia e por isso e pelo resto há poderes no mundo cedidos apenas a você.
Por uns segundos te olho em silêncio. Você todo cheio de si, no controle de suas ações, dono de sua morte. Eu te odeio um pouco neste momento, o que você sabe, o que você não sabe que você sabe. E mais ainda: a sua loucura absurda de saber que sabe de coisas assim.
Você é maluco eu te digo.
Nesse dia vamos para seu apartamento. Ficamos lendo, vendo fotos antigas que você num surto de nostalgia decidiu me oferecer como um modo de acelerar nosso conhecimento um do outro, neste pequeno tempo que segundo você nos resta.
Você dorme no sofá e eu durmo em sua cama.
Na semana seguinte nos vemos sem querer na faculdade. Você desmarca todos os encontros. Eu sei que você não está bem. Você não sabe. Um dia nos fechamos sem querer, temos o mesmo orientador de pesquisa. Na sala é constrangedor olhar para você, o orientador, e aquela pequena loucura que você me contou há dias atrás.
A pequena loucura é um musgo preto pendurado no teto que sempre pinga quando alguém resolve falar.
Depois de meia semana você morre.
Você estava indo para o supermercado para seu pai que não andava se sentindo bem.
Você pegou o retorno errado. Mas depois pegou o certo.
O carro da frente mudou de pista.
Foi como um beijo.
As mandíbulas, no encontro forçado, se quebraram e retorceram. O rosto tremeu, os dentes quebraram.
A línguas ficaram entre os parachoques, ainda, uma dentro da boca de outra.
O motorista do carro da frente também morreu, vocês morreram juntos ao mesmo tempo, e isto os mantinha muito próximo no mundo.
Foi rápido, indolor. Mas seu corpo se perdeu dentro da boca de metal. Os bancos, o aço, a ferrugem do sangue.
Eu não vi no jornal. Eu não lembrei do dia que você tinha me dito. Eu te invejei por ser sábio ou maluco o suficiente. Por ser suficiente para alguma coisa.
Então fui pra aula e alguns colegas contaram para mim. Perguntaram se eu te conhecia. Se eu te conhecia, céus.
Você está morto, mas não realmente.
Eu ouço sua risada quando escovo os dentes ou tento ler um anúncio no outdoor por puro tédio. Eu sinto você rindo como outro outro relógio. Um outro dia. Um outro lugar.
Era por isso eu você estava tão tranqüilo eu penso.
terça-feira, 11 de abril de 2017
5 quase lácias (parte II)
VI
uma palavra já foi usada também para reter um vazamento. ele era pequeno ou era grande-se e pensava-se pequeno. no início funcionou. depois, de improvável, a cola da palavra não se desmanchou, pior. virou já uma outra palavra. quando tentaram consertar, quando enfim, lembraram onde estava o vazamento do prédio inteirinho, não conseguiram a convencer a sair de lá. é muito complicado ganhar uma discussão com alguém (no caso algo) se não consegue-se nem ao menos o pronunciar direito.
VII
há muitos e muitos anos, antes do nosso país sequer pensar em vir ao mundo, existiu em outro continente um evento muito curioso. o que ocorreu é que havia uma grande cidade, mas um belo dia, em uma discussão na praça, no bar, no puteiro, ou nos três, ninguém sabia mais o que era uma cidade e chegou-se a conclusão que poderia ser qualquer coisa. várias pessoas resolveram então ter uma própria cidade, dentro desta falta de sentido. as cidades novas e velhas se reuniam nesta grande feira. vendia-se estátuas de bronze, tulipas, pedras vulcânicas (boas para massagem), peles de marsupiais (gigantes nessa época), absolutamente tudo. em um setor específico fazia-se um comércio muito singular e se você passa-se pelas banquinhas não veria quase nada, mas se, visse com os olhos, veria muita conversa sendo trocada, e talvez entenderia, ali negociava-se, vendia e se revendia, palavras. pessoas comuns, havia também, outros comerciantes ou agricultores, uns buscavam uma nova palavra, como por exemplo para sua nova cidade, rua, ou um filho que julgava muito especial, outros, nas mudanças de ares geopolíticas, gostariam de garantir pertencer para sempre, para suas cidades, palavras que julgavam empáticas, belas, elegantes, dignas do representar de sua personalidade ou do verde de suas ruas. havia um terceiro tipo (sempre há, é claro), aqueles que cansados de uma certa tipologia apenas pagavam para mudá-la, por tédio, esporte, ou desejo de poder e grandiosidade. por exemplo há a palavra anedota, que um dia significou novidade, e por uma briga familiar, uma humor de um alcoólatra, ou até mesmo vingança, dizem ter sido convertida à mando para o que hoje é. ou a palavra assassino que antes da negociata nesta ou outra feira, era apenas usada para denunciar aqueles que gostavam de haxixi, uma bebida alcoólica vinda da maconha, e que fora comprada ou roubada, por aqueles que não eram árabes, de onde antes pertenciam esta palavra. há boatos de que essa feira possa existir até hoje.
VIII
um vez uma pessoa muito importante mas ao mesmo tempo com auto-estima muito baixa leu uma carta que veio do outro lado do mundo. nesta época na verdade não havia cartas. papeis, nem mesmo, tábuas de argila. mas sim um mensageiro que andava de um reino a outro carregando uma mensagem e no seu destino a destilava cuidadosamente em voz alta. certa vez o mensageiro estava gripado e quando esta pessoa foi ouvir a tal carta, não entendeu uma das palavras. fora mandado então, depois de algum tempo, uma mensagem em resposta, e na dúvida, na vergonha de não entender e talvez comprovar-se burro e desletrado, esta pessoa colocou a tal palavra também em sua mensagem. os dois reinos então ficaram muito próximos, ninguém sabe até hoje porque, mas hoje fazem parte do mesmo país.
IX
havia uma senhora que sempre saía de casa com uma palavra dentro da mão. é que ela cuidava muito dessa palavra. não, não era uma senha. nem o nome de um médio ou uma erva milagrosa. ela sentia que a palavra era multiuso, portanto estava segura, poderia sim virar um degrau ou um salva-vidas a qualquer momento. havia uma variedade muito grande na morfologia da palavra. poderia ser usada em qualquer situação. era como um amuleto. quando retornava para casa, às vezes tinha que fazer compressas na mão, mergulha-las em folhas de maracujá. a senhora tinha atrite. palavra aliás que não gostava, é claro.
X
uma vez um menino saiu por aí oferecendo uma palavra. todo dia por alguns anos. batia na porta das pessoas oferecendo a palavra. quando uma garota o achava simpático ele ao invés de usar as suas palavras não. usava esta palavra. ele tentava oferecer a palavra para o máximo de lugares possíveis, até mesmo, food trucks de cachorro quente ou até para o cães levados a passear no parque. o plano do menino era simples: quanto mais oferecesse a palavra mais ela cresceria, maior assim, ele seria. o menino só se embrulhou em uma questão. guardava a palavra no bolso da calça, e não na bolsa da camisa, ou até dentro do peito, como a maioria. na hora de tirá-la, caiam diversas outras coisas, algumas pessoas pessoas se assustavam, outras, por ele não a olhar mais nos olhos desconfiavam. não se sabe o que ocorreu com o menino. mas a palavra continua aí.
uma palavra já foi usada também para reter um vazamento. ele era pequeno ou era grande-se e pensava-se pequeno. no início funcionou. depois, de improvável, a cola da palavra não se desmanchou, pior. virou já uma outra palavra. quando tentaram consertar, quando enfim, lembraram onde estava o vazamento do prédio inteirinho, não conseguiram a convencer a sair de lá. é muito complicado ganhar uma discussão com alguém (no caso algo) se não consegue-se nem ao menos o pronunciar direito.
VII
há muitos e muitos anos, antes do nosso país sequer pensar em vir ao mundo, existiu em outro continente um evento muito curioso. o que ocorreu é que havia uma grande cidade, mas um belo dia, em uma discussão na praça, no bar, no puteiro, ou nos três, ninguém sabia mais o que era uma cidade e chegou-se a conclusão que poderia ser qualquer coisa. várias pessoas resolveram então ter uma própria cidade, dentro desta falta de sentido. as cidades novas e velhas se reuniam nesta grande feira. vendia-se estátuas de bronze, tulipas, pedras vulcânicas (boas para massagem), peles de marsupiais (gigantes nessa época), absolutamente tudo. em um setor específico fazia-se um comércio muito singular e se você passa-se pelas banquinhas não veria quase nada, mas se, visse com os olhos, veria muita conversa sendo trocada, e talvez entenderia, ali negociava-se, vendia e se revendia, palavras. pessoas comuns, havia também, outros comerciantes ou agricultores, uns buscavam uma nova palavra, como por exemplo para sua nova cidade, rua, ou um filho que julgava muito especial, outros, nas mudanças de ares geopolíticas, gostariam de garantir pertencer para sempre, para suas cidades, palavras que julgavam empáticas, belas, elegantes, dignas do representar de sua personalidade ou do verde de suas ruas. havia um terceiro tipo (sempre há, é claro), aqueles que cansados de uma certa tipologia apenas pagavam para mudá-la, por tédio, esporte, ou desejo de poder e grandiosidade. por exemplo há a palavra anedota, que um dia significou novidade, e por uma briga familiar, uma humor de um alcoólatra, ou até mesmo vingança, dizem ter sido convertida à mando para o que hoje é. ou a palavra assassino que antes da negociata nesta ou outra feira, era apenas usada para denunciar aqueles que gostavam de haxixi, uma bebida alcoólica vinda da maconha, e que fora comprada ou roubada, por aqueles que não eram árabes, de onde antes pertenciam esta palavra. há boatos de que essa feira possa existir até hoje.
VIII
um vez uma pessoa muito importante mas ao mesmo tempo com auto-estima muito baixa leu uma carta que veio do outro lado do mundo. nesta época na verdade não havia cartas. papeis, nem mesmo, tábuas de argila. mas sim um mensageiro que andava de um reino a outro carregando uma mensagem e no seu destino a destilava cuidadosamente em voz alta. certa vez o mensageiro estava gripado e quando esta pessoa foi ouvir a tal carta, não entendeu uma das palavras. fora mandado então, depois de algum tempo, uma mensagem em resposta, e na dúvida, na vergonha de não entender e talvez comprovar-se burro e desletrado, esta pessoa colocou a tal palavra também em sua mensagem. os dois reinos então ficaram muito próximos, ninguém sabe até hoje porque, mas hoje fazem parte do mesmo país.
IX
havia uma senhora que sempre saía de casa com uma palavra dentro da mão. é que ela cuidava muito dessa palavra. não, não era uma senha. nem o nome de um médio ou uma erva milagrosa. ela sentia que a palavra era multiuso, portanto estava segura, poderia sim virar um degrau ou um salva-vidas a qualquer momento. havia uma variedade muito grande na morfologia da palavra. poderia ser usada em qualquer situação. era como um amuleto. quando retornava para casa, às vezes tinha que fazer compressas na mão, mergulha-las em folhas de maracujá. a senhora tinha atrite. palavra aliás que não gostava, é claro.
X
uma vez um menino saiu por aí oferecendo uma palavra. todo dia por alguns anos. batia na porta das pessoas oferecendo a palavra. quando uma garota o achava simpático ele ao invés de usar as suas palavras não. usava esta palavra. ele tentava oferecer a palavra para o máximo de lugares possíveis, até mesmo, food trucks de cachorro quente ou até para o cães levados a passear no parque. o plano do menino era simples: quanto mais oferecesse a palavra mais ela cresceria, maior assim, ele seria. o menino só se embrulhou em uma questão. guardava a palavra no bolso da calça, e não na bolsa da camisa, ou até dentro do peito, como a maioria. na hora de tirá-la, caiam diversas outras coisas, algumas pessoas pessoas se assustavam, outras, por ele não a olhar mais nos olhos desconfiavam. não se sabe o que ocorreu com o menino. mas a palavra continua aí.
uma cidade desaparece
houve uma cidade que desapareceu. um dia estava, no outro não. você pode pensar como se desaparece uma cidade. se uma cidade são várias. não é como um avião. as casas e as ruas podem retrocederem até virarem matou ou deserto. eis uma pergunta. ou como o império inca se vão as pessoas, ficam as construções como pensamentos petrificados? ou o local apenas some do tempo como um buraco negro que cansa da brincadeira de jogo do sério? eis a centésima primeira pergunta. pois essa cidade apenas não está lá. tudo que havia não está. contudo, existem rumores. uma outra cidade a milhas e milhas de distância, não seria exagero dizer outro lugar do planeta, desapareceu com essa cidade. nós sabemos que desaparecer aqui é um jeito menos franco e mais belo de dizer que a esperança usou seu último traje de gala. a cidade foi morta diz o rumor. a cidade que não gostava muito da outra pelo que viam os ouvidos por milênios e o sonho virtual por dias. falam até mesmo que não fora algo repentino. o governo dessa cidade inclusive fez um concurso onde foram analisadas as melhores ideias de desaparecimento. por meio de uma votação a população também pode escolher o melhor enredo, a melhor história oficial a ser usada para explicar o porque disso. tempestades solares, doenças cromossômicas, nuances extraterrenos. placas tectônicas. prêmios foram concebidos. e claro, plebiscitos. era uma cidade muito democrática. o que a cidade que não desapareceu não contava era simples. a cidade ficou famosa, e apesar das explicações, a vida dentro da vida das pessoas tende e muito a ouvir o mistério: este segredo coletivo que muitos guardam e poucos compreendem sozinhos. a cidade que desapareceu virou objeto de culto, de adoração, e hoje milhares de fiéis aguardam a sua volta.
um rio que fala quando some
Nesta região no centro de nosso país muitas pessoas desapareceram. Desapareceram no mesmo ano. Talvez empilhadas na mesma hora. (Difícil saber o tempo dos desaparecidos, os desaparecidos os levam com eles). A região é cortada por um grande rio que na língua dos originários significa lugar onde se retorna. ( Embora lugar nessa língua também seja o nome de um pássaro). Ninguém sabe disto, porque ninguém os ouve. As pessoas contam que elas desapareceram, mas se várias pessoas desapareceram no mesmo local, o que isto quer dizer? Os originários sabem. Eles estão lá desde o início de tudo. Falam com as moscas, que, trazem notícias das copas das árvores. Foram eles que nos contaram. Uma ou duas vezes por ano o rio pisca. Simplesmente pisca. Como se fosse uma falha, um tilt. Em fração de segundos toda a água do rio some, como se fosse ele mesmo o desaparecido, como se fizesse jus a toda aquela gente. Neste momento, embora minúsculo, os corpos dessas pessoas podem ser vistos no que seria o fundo do rio, alguns ainda segurando suas armas, outros em pedaços, mas ambos visivelmente aparecidos. Talvez não mortos mas. Constantemente assassinados. Os originários dizem que não cabem a eles tratarem disto, embora, se preocupem. Afirmam que pode se tratar de uma ameaça por parte do rio, e aquele, a quem o rio responde. O rio esta bravo. Contam. Pode sumir para sempre. O povoado usa suas águas, para a sede, o alimento, a diversão, a higiene, com muito respeito aos inquilinos que lá foram acamados. Enquanto isso, é difícil convencer nosso país a visitar o centro de nosso país. Enquanto há água nas torneiras sempre é futuro.
segunda-feira, 10 de abril de 2017
em volta das cabeças
tiara, ele (você nunca usaria) disse. disse: que eu não estava lá. porque eu nunca usaria uma. o que? tiara. tivemos conversas sobre isso um dia. no meio de outro cacho de dias que conversamos sobre tudo, éramos íntimos a tal ponto, inclusive isto. esta coisa de falar dos objetos. como quem os acarinha para ver se acordam outras utilidades. convencer uma faca a ser outra coisa. isto. tiaras. mas fui. estava lá. vi o menino uruguaio fazendo seus malabares como se fossem o retrato de sua língua tentando falar as vogais brasileiras. a última hora de um conhecido, escolhido para beber chimarrão entre os amigos e tocar sua flauta. eu estava lá. a jussara, a lídia, o joaquim, o enzo, a agnes. também estavam e para provar isto vou dizer: bizarramente com a calça da mesma cor, um azul bebê, cor que pouca gente usa hoje em dia, menos eles, por coincidência todos no mesmo dia. vi nosso ex-colega escalar um morrinho de grama e simplesmente chorar. para que todos vissem. como uma bandeira. imune a vergonha ou fazendo da vergonha algo que desimuniza seus inimigos. nós o vento. a faculdade, fechando. nossos futuros uma rachadura no ovo. misterioso, o cozinheiro. um binóculo que caiba nesse cadeado, por buda! o governo acabando com nossa faculdade, nossa porque pública, nossa porque cenário das redes de olhares, dos cabelos perdidos, dos sonhos quando já em casa, em nossas camas. o governo assim. jogando os fósforos não tão acesos mas acesos, descartando em nossa universidade, até que tudo exploda e vá às favas. não tínhamos muito o que fazer naquelas tardes. tinham-se acabado, cancelado, as aulas. eu recém chegada do Peru, depois de uma tentativa de desvirar alguém que andava de costas (não deu certo, o outro lado, fazia seta para trás também). eu sei que ele não gostou disso. o meu amigo. o que não me viu. meu amigo. agora desempregado. há algumas horas atrás o umbigo de meu avião roçou seu duro casco nessa cidade. ele disse: vamos amanhã. eu disse. vamos. pra mim era um tanto mais sobre salvar nossa passado, antes que qualquer coisa. nossos quatro ou seis anos, para sempre miniatura em um dos corredores de nossa querida universidade nacional. para ele era sobre o futuro, principalmente ele. confundia o rosto com o campus. se expressam juntos. a boca, era o restaurante popular. os ouvidos a biblioteca (com quatro andares, pois são vários os caminhos da audição). eu sei. tanto é que fui. o procurei. sentei sozinha, um tanto afastada, direta na ex-grama, terra, puro marrom de mini planetas. úmido. longe dos nossos amigos. longe do último dia de meu conhecido, onde uma e outra vez, descansei os olhos em sua barba durante a argumentação gaga de um palestrante ou bêbado ou ambos. vi meu amigo, virei bigorna por dentro. virei rumo. me aproximei e ele me olhava, consideravelmente perto agora, e ele me olhava, mais menos longe e me olhava até que parou de olhar. era como se estivesse vendo tudo que não coubesse em meu contorno. não me reconheceu. simples assim. no outro dia conversamos pelo computador. tiaras, ele ainda insistiu. você não foi. você nunca usaria tiaras. já conversamos sobre isso. eu sei que está chateado. é lá onde guardamos toda a memória do mundo. você me confundiu comigo mesmo. está tudo bem. são múltiplos os andares.
sexta-feira, 7 de abril de 2017
(inserir palavra aqui)
O tio do meu tio acha que quando alguém desaparece, para fazer jus, alguma palavra tem que desaparecer também. Foi ousado. Como meu tio ensinou meu tio a dirigir e, passavam muitas noites tentando salvar a vida de um fusca velho, a palavra escolhida foi motor. Toda vez que alguém fala qual é o problema de uma máquina não da para entender direito. A combustão estão prejudicada porque o __ está velho. Esse é um exemplo. Mesmo quando alguém diz no sentido metafórico assim a soja é o da agropecuária é assim que ela chega nos seus ouvidos. Não da para se compreender. Quando alguém desaparece as frases são menos frases e mais algo perto do não entendimento. Apesar disso meu tio ainda tem a oficina, e anda por ai com seu fusca - só quando não chove.
terça-feira, 4 de abril de 2017
questões sobre desaparecidos
Os desaparecidos vão para outro lugar?
Quantos desaparecidos fazem um país?
Se um ou outro desaparecido vira desaparecido ao mesmo tempo nós os chamamos de desaparecidos ou já é outra palavra?
Um desaparecido por desaparecer automaticamente tem filiação com todas as pessoas?
Quanto tempo dura um desaparecido ou um desaparecido é todo o tempo de duração?
Os desaparecidos tem uma línguas que só eles falam?
Eles vão para um lugar diferente?
Como saber que se quando estamos falando quem na verdade está falando é um desaparecido?
Os desaparecidos fazem não existirem países no mundo?
Se um desaparecido desaparece em meio a fronteiras de quem é o desaparecido?
Várias pessoas podem ter o mesmo desaparecido?
Um desaparecido sempre é um número que pode aumentar?
O desaparecido é uma forma de morrer duas vezes ou de viver duas vezes mais?
O que define um desaparecido é não saber onde ele está ou se ele está vivo? Ou se está morto?
Se essa pessoa desaparecida não simplesmente desaparece mas um indivíduo em particular desaparece com ela isso nos faz o que desta pessoa?
Pode-se herdar desaparecidos?
Os desaparecidos, mesmo depois de anos, devemos esquecer seus celular por exemplo?
Só porque alguém esta desaparecido isto quer dizer que não podemos conversar com esta pessoa?
Um desaparecido pode por exemplo ainda possuir coisas como uma casa, um livro?
Quando alguém desaparece como saber se sempre botar a cadeira a mais ou a menos, todo dia como saber?
Um desaparecido pode virar todos os desaparecidos de um país?
Se alguém desapareceu digamos em um rio, podemos dizer que o rio desapareceu também? Ou que ele é menos aparente?
Pode só uma parte de alguém desaparecer? Ex.1. um braço. Ex.2. Uma memória de um corte no braço em uma situação terrível, correntes, eletricidades. Etc. ex.2. uma parte da perna?
Quando muitas pessoas que uma pessoa conhece desaparecem ela mesma pode se considerar desaparecida? Talvez não hoje mas no futuro?
Quando um país desaparece com alguém isso significa que até as pessoas não vivas podem desaparecer? Por exemplo. Até as pessoas que ainda estão quase dentro da barriga de suas mães?
Desaparecer é morrer em espiral?
Desaparecer é morrer em várias pessoas?
Quando morremos não sabemos para onde vamos. Dizem.
Mas quando não estamos mais vivos, isto quer dizer que ficamos?
Desaparecer é ficar em todos os lugares? É dizer que todos os lugares não são seguros?
Como surge um desaparecido?
Uma pessoa que desapareceu há 40 anos, e uma há 2 anos, podem ter tudo em comum inclusive será que elas se encontram em algum ponto?
Desaparecer alguém é a forma com que pessoas pobres de retórica e espírito tem de ganhar uma história confundindo o fim?
Desaparecer é um soco que não cessa?
Um desaparecido pode, lá, do centro de sua desaparição, mudar nossas vidas por completo?
Quantos desaparecidos fazem um país?
Se um ou outro desaparecido vira desaparecido ao mesmo tempo nós os chamamos de desaparecidos ou já é outra palavra?
Um desaparecido por desaparecer automaticamente tem filiação com todas as pessoas?
Quanto tempo dura um desaparecido ou um desaparecido é todo o tempo de duração?
Os desaparecidos tem uma línguas que só eles falam?
Eles vão para um lugar diferente?
Como saber que se quando estamos falando quem na verdade está falando é um desaparecido?
Os desaparecidos fazem não existirem países no mundo?
Se um desaparecido desaparece em meio a fronteiras de quem é o desaparecido?
Várias pessoas podem ter o mesmo desaparecido?
Um desaparecido sempre é um número que pode aumentar?
O desaparecido é uma forma de morrer duas vezes ou de viver duas vezes mais?
O que define um desaparecido é não saber onde ele está ou se ele está vivo? Ou se está morto?
Se essa pessoa desaparecida não simplesmente desaparece mas um indivíduo em particular desaparece com ela isso nos faz o que desta pessoa?
Pode-se herdar desaparecidos?
Os desaparecidos, mesmo depois de anos, devemos esquecer seus celular por exemplo?
Só porque alguém esta desaparecido isto quer dizer que não podemos conversar com esta pessoa?
Um desaparecido pode por exemplo ainda possuir coisas como uma casa, um livro?
Quando alguém desaparece como saber se sempre botar a cadeira a mais ou a menos, todo dia como saber?
Um desaparecido pode virar todos os desaparecidos de um país?
Se alguém desapareceu digamos em um rio, podemos dizer que o rio desapareceu também? Ou que ele é menos aparente?
Pode só uma parte de alguém desaparecer? Ex.1. um braço. Ex.2. Uma memória de um corte no braço em uma situação terrível, correntes, eletricidades. Etc. ex.2. uma parte da perna?
Quando muitas pessoas que uma pessoa conhece desaparecem ela mesma pode se considerar desaparecida? Talvez não hoje mas no futuro?
Quando um país desaparece com alguém isso significa que até as pessoas não vivas podem desaparecer? Por exemplo. Até as pessoas que ainda estão quase dentro da barriga de suas mães?
Desaparecer é morrer em espiral?
Desaparecer é morrer em várias pessoas?
Quando morremos não sabemos para onde vamos. Dizem.
Mas quando não estamos mais vivos, isto quer dizer que ficamos?
Desaparecer é ficar em todos os lugares? É dizer que todos os lugares não são seguros?
Como surge um desaparecido?
Se a algumas pessoas não interessam mais os
desaparecidos porque não dizer onde eles estão para que deixem de ser desaparecidos
logo?
Uma pessoa que desapareceu há 40 anos atrás, e que foi achada recentemente, nos atualiza o calendário para trás?Uma pessoa que desapareceu há 40 anos, e uma há 2 anos, podem ter tudo em comum inclusive será que elas se encontram em algum ponto?
Desaparecer alguém é a forma com que pessoas pobres de retórica e espírito tem de ganhar uma história confundindo o fim?
Desaparecer é um soco que não cessa?
Um desaparecido pode, lá, do centro de sua desaparição, mudar nossas vidas por completo?
comer com os olhos
Imagine isto. Uma pessoa com habilidades além do comum em computação. Imagine isto. Esta pessoa tem o hobbie. Esta pessoa é um homem ou uma mulher. Não importa. Não muda nada. Esta pessoa consegue burlar servidores com a mesma habilidade que você tem de pegar no sono durante o trabalho. Durante a aula. Inclusive durante as aulas nas quais o professor é você. (você deveria dormir mais sabia? Já ouviu falar em erva cidreira? Não funciona é claro, mas todos nós deveríamos acreditar em alguma coisa). Imagine que esta pessoa criou seu próprio jogo de computador com cinco anos de idade, mas hoje nem gosta tanto de jogos, portanto a idade desta pessoa também não importa. Teve um dia na vida dessa pessoa que ela acessou os e-mails de Frances Hollande só para treinar o francês e de fato compreendeu mais do que achava que compreenderia o que fez gostar menos da Frankia em geral, mas ei, o fato é, esta pessoa fez isto facilmente, seria como alguém ler correspondências no correio apenas com visão raio-x, seria como, visitar o museu de madrugada sem acionar nenhum alarme, entrar dentro de um pesadelo de alguém e descobrir todas as vezes que você aparece seguido de um grito. Imagine isto. Todos os dias essa pessoa gasta muito tempo do dia em frente a um computador como quem olha o mar-aberto, e tudo é possível, pois o buraco de minhoca já foi domesticado ao ponto de ser possível viajar para qualquer canto do cosmos. Esta pessoa poderia ser rica, andar de avião de graça, pedir pizzas sem pagar, ou depor mais uma falsa democracia. Mas ao invés disso ela só faz coisas típicas da própria pessoa que ela é. Coisas como isto: quando chega perto da hora da janta essa pessoa gosta de hackear alguém, alguém que não conhece de verdade, apenas pela internet. Ela entra nos cookies, no celular, nas conversas de bate-papo com os amigos ou a família com o único intuito de saber o que eles irão cozinhar, qual vai ser a comida antes de dormir. Às vezes demora um pouco para descobrir, não é algo que você pode simplesmente perguntar, precisa ser indicado ou dito. Às vezes, pela fatura do cartão de débito dá para saber se essa pessoa comprou por exemplo, talharim, molho missô, ovos, já sabe-se que ela fará, ou tentará fazer, um lámen, pelo que já sabe-se dessa pessoa, por exemplo, a pessoa é fã de boo-joo. Outras vezes alguém só manda uma mensagem dizendo que vai fazer um frango frito e assim é mais fácil. Quando sente-se como vontade de ousar, aprender algo completamente novo, gosta de entrar no computador de alguém lá do outro lado do planeta, achado a esmo, Mali ou Malvinas, e aprender um prato novo que nem sabe o nome. Imagine isto. Essa pessoa, e sua noite, ambas passadas assim. Cozinhando em simultâneo com alguém, um solteiro, uma família, uma reunião de amigos, os vendo pela câmera cortarem as cebolas, fazerem o próprio molho branco, eles lá, e essa pessoa em sua própria cozinha, preparando a comida juntos. Imagine que esta pessoa isto é algo que a acalma e só. Não é porque sente-se sozinha, embora esta pessoa tenha poucos acompanhantes. Imagine que esta pessoa gosta do fato apenas e simplesmente de aprender receitas novas, e muito mais daquela frase que diz, a comida ela aproxima as pessoas.
a amiga de uma amiga minha era vinte e quatro horas
Amiga de uma amiga minha foi colega de faculdade de uma menina que fazia isso. Ao vivo. Vinte e quatro horinhas. Ela tinha de fazer streaming de absolutamente tudo, absolutamente parava nunquinha, patavina nenhuma, era pela celular a transmissão. Na hora de dormir, pegar o ônibus, tomar banho, ir ao cinema. Não precisava o tempo todo aparecer diante a câmera, mas bastava estar ligada, no mesmo local onde ela estava. Seu cliente, ou seus clientes – não sabemos -, tinham o desejo do alcance interrupto, da espiada contínua, mesmo que, a câmera não mostrasse nada mas tivesse lá – ligada. Talvez assim melhor ainda. A amiga da minha amiga fazia a disciplina de teorias culturalistas com ela. Sempre chegava atrasada, com o celular mirando aos alunos, solenes ouvintes. Não intimidava-se por ser vista como interpelação. Sentava-se na primeira fileira, colocava o celular apoiado na parede ou em um livro, e falava muito em Margareth Mead sempre que podia, teve uma fez, fato curioso, citou até mesmo um trecho de suas cartas quando alguém falara que o bebedouro do primeiro andar tinha parado de funcionar, algo sem nenhuma ligação aparente. Era muito participativa e volta e outra arranjava briga com um menino robusto da outra ala da sala, o tipo de pessoa que interrompia os presentes falando desculpa interromper para em seguida interromper completamente, e estes presentes eram quase sempre mulheres. Quando ela chegava, absolutamente segura de si, algumas, ou talvez todas, ou só minha amiga por tabela, sentiam uma sensação estranha de não saber onde se está, da sala estar cheia, irrespirável talvez, ou vazia. A câmera ligada dizia que alguém mais havia ali, quem, impossível de saber, onde, complicado demais. Tudo que era dito poderia nunca mais ser desdito, gravado, editado, armazenado na biblioteca de um desconhecido, por isso parecia que todo mundo lá era outra coisa, uma pessoa que nem sabiam-se. O celular era uma criatura muito pequena que funcionava tal como o Aleph, como um pequeno buraco negro, uma falha geológica, uma descostura por onde vazavam as vozes e as realidades mantenedoras de sua sanidade. O estranho aparelho era o binóculo do voeyer e o voeyer poderia ser todos, todos aqueles patifes que uma mulher já teve em sua vida de raspão ou beliscão. Mesmo assim ninguém nunca reclamou. A professora era um tipo de gente muito da pavirada, estava ciente dos novos tempos, das novas tecnologias, e sabia: a faculdade era cara e o dinheiro no mundo escasso. Os outros alunos deviam se sentir de alguma forma importantes pois era visível como mudavam com o celular ligado vasculhando toda a sala. Um dia a menina não apareceu, a aula terminou mais cedo e as discussões foram rasas, e logo depois, no fim do semestre, a amiga da minha amiga deu de cara com ela no café da faculdade. Com a câmera transmitindo um pão de queijo meio comido, perguntou quem era o destinatário do vídeo e essa menina disse que não sabia, mas que pagava muito bem, tanto que podia passar os dias inteiros estudando e lendo Margaret Mead, inclusive as cartas, sim inclusive elas, e as destinadas para Ruth Benedict? Sim inclusive elas, você já parou para pensar que poderia ser Mead que está este tempo todo observando? A menina ficou séria e não voltou a terminar o pão de queijo creio eu, era só o piada, mas isso a fez pensar em outras coisas. Sempre imaginou que seria um homem desses, um homem tarado, um fetiche e só. Nada além disso.
sexta-feira, 31 de março de 2017
uma menina, um menino, um menino na avenida brasil
uma menina vai a escola. uma menina na escola leva uma bala na cabeça. essa agora é a historia dos últimos momentos de vida da menina. o corpo da menina cai, no meio da educação física. a menina já está em outro lugar. os parentes e vizinhos da menina fazem um protesto em frente a escola. a escola fica em uma avenida chamada avenida brasil. as pessoas que moram no mesmo bairro que a menina fecham a avenida. elas estão bravas e os carros não podem mais andar. elas gritam justiça. os carros se desesperam. quando uma pessoa está em um carro, não é mais uma pessoa talvez. uma pessoa tentaria atropelar alguém que perdeu alguém? bandidos aproveitam os carros não sendo carros em sua função, porque, parados. bandidos roubam os motoristas, um a um, na avenida brasil. enquanto as pessoas gritam, os carros estacionam, pessoas levam coisas de outras pessoas, alguém que viu um pouco de quase tudo divide com a internet um video. no video dois policiais matam dois meninos ao lado da mesma escola. eles chegam bem pertinho de um, bem mesmo, mais do que os bandidos chegaram dos motoristas que furtaram. e atiram com o fuzil. a distância queima-roupa faz o corpo saltar para longe do chão, como se tivesse vida por 2 segundos, como se o movimento inverte-se a lógica da bala, um blefe de vida, mas o menino não está mais lá, é um corpo que pipoca, assim como o cinema, o policial deve gostar muito de cinema alguém deve ter pensado. calmamente no mesmo vídeo o mesmo policial mata o outro menino talvez já morto no chão. o policial não acredita na morte e talvez por isso mate tudo duas, três vezes, ou gosta tanto que, tenta repetir o gesto prazeroso, alguém pensa. os policiais então vão embora e deixam os ex-meninos ali, como se dormissem cansados depois de um jogo de futebol, sem saber que do outro lado do muro da escola, uma menina também deixou-se ir da mesma forma, e essa é a coisa com a morte, ela é incontrolável, tem vontade própria, nem o policial sabe e aliás muito menos ele. uma bala por exemplo pode ser só uma e ter só um endereço mas ela pode matar nenhuma ou várias pessoas ou matar por muito tempo ou pouco e quando ela é lançada ela é da morte pois não há diferença entre o fim e o desejo do fim. mas o policial não tem nada ou quase pouco ou nem mesmo ele mesmo e por isso pode achar que a tem pensa outra pessoa. depois do vídeo descobre-se que os policiais estavam lá para coibir roubos naquela região, o policiais não citaram números, mas disseram a palavra muitos na esperança que o plural pesassem na cabeça dos ouvintes. os policiais tem um jeito estranho de lidar com roubo. ainda é roubo se é para sempre e sem volta? é noite e a avenida brasil continua parada. os moradores, os motoristas, os bandidos, os policiais, os ex-meninos. as balas soltas como animais de caça pelos policiais horas antes continuam se movimentando pelos ares, mas os moradores gritam alto e por hora elas não se atrevem.
31.03.2017
31.03.2017
segunda-feira, 27 de março de 2017
vários tantos
Uns diziam: seu tio era gay. Outros diziam: seu tio era um ótimo orador. Seu tio era advogado. Seu tio era cantor. Seu tio comunista. Outros falavam: o irmão de sua mãe como se isto garantisse uma distância segura de mim e o perigoso ele. Quando uma pessoa some ela pode virar várias pessoas? Existem tantos tios quanto caminhos para a insônia. Cada dia o teatro com meus tios, ganha um nov, já passam de 300 as cadeiras. Se há tantos tios eu sou muitos sobrinhos? Pode-se herdar coisas de alguém morto antes de você vivo? Meu tio é sempre diversas coisas mas nunca dizem as pessoas que ele não é alguma coisa. Seu tio era terrorista. Seu tio era péssimo em lidar com plantas. Seu tio era voluntário em um abrigo de cães. Seu tio tinha uma admiração incompreensível pela Hungria. Seu tio colecionava porcelanas de manteigueira. Seu tio morreu pelo MR-8. Seu tio era ótimo em gamão. Seu tio. O outro filho de seu avô e de sua avó era péssimo pescador. Às vezes no natal alguém bebe um tanto, ou não, apenas esquece-se pelo orgânico de nossa tipificação, alguém lembra, alguém fala dele no presente, fulano é tão bom cozinheiro, fulano é especialista em direito, ele saberia. Então outra pessoa no outro lado da sala, enrubesce. Como se agora meu tio estivesse ali, de pé, junto com ele a fuga, os tiros, as perseguições, em torno de mim e de meus primos, e nós no meio de tudo isso, um perigo que nunca foi embora porque nós existimos.
domingo, 26 de março de 2017
companheiros
Ao leste há um país muito parecido com o nosso. Nossa floresta e nosso deserto vazam um encima do outro como um belo bolo de mármore. As fronteiras são dois braços se roçando, os pelos arrepiados dão destinos ao vento. Contudo, não falamos a mesma língua. Não comemos as mesmas coisas. Não falamos um dos outros nas pousadas ou telejornais. Não trocamos bilhetinhos de amor, telefonemas, receitas, feitiços, frutas curandeiras. Não trocamos em gritos, como alguns vizinhos irritados, ou olhares, como os que definem a existência de uma grade. Nunca, nem se quer, nos juntamos na guerra. Na bebida exagerada ou naquele desejo humano e meteórico de contar segredos aos desconhecidos. Mas eu minto. Houve uma vez. Uma e única vez. Nossos governos caíram em derrocadas, os dois juntos, exatamente ao mesmo tempo. Os que assumiram no lugar não queriam um país. Mas sim um estrado. Uma dispensa de desmanches. Os que assumiram se juntaram, e no trabalho conjunto mataram e sumiram, e mataram e sumiram, com as pessoas tanto do lado de cá como do lado de lá. Hoje tudo voltou como era. Ainda sim imaginamos. Em algum lugar, enterrados embaixo da terra, talvez no mesmo buraco. No mesmo recife de coral. As pessoas do nosso país, e as do outro. Estão juntas.
30 000 de novo
Há um país. Não falam muito dele. E quando falam falam errado. Mas eu boto o ouvido o ouvido na borda do continente, nas américas os telefones são assim, nosso povo, nossa telepatia pela borda, e recebo notícias de lá. Neste país quando alguém some, desaparece, quando alguém falta a aula por dias e a diretora chama os pais, quando alguém some da casa, do emprego, do empréstimo do banco, da internet, do locatário, da reunião de família. Da intervenção dos amigos. Quando alguém era mas não com certeza. Escapuliu. Não aparece. Quando alguém desaparece neste país dizem que quem sumiu foram 30.000 pessoas. Mesmo que este alguém seja uma pessoa só. 30 000 pessoas desapareceram hoje na província de Coalapatzu. 30 0000 no centro comercial San José de la Cuerva. No rio Aldomascor. Esta poderia ser uma lei, mas não é. É só algo que as pessoas se acostumaram em fazer pois é preciso estar atento. Nunca ninguém conseguiu definir ou reconhecer o que é um fim. Nunca se sabe se a história está começando ou se na verdade nunca havia acabado. É preciso estar atento.
quinta-feira, 23 de março de 2017
lavagem
em toda entrevista ela dizia a mesma coisa. todo dia ele acordava e lavava a calçada hoje a calçada está suja com o sangue dele. os repórteres tentavam mudar de assunto. todo dia ele acordava - tinha filhos? - e lavava a calçada - que horas eram? - hoje a calçada - você viu algo? está suja com o sangue - usava drogas? - dele. o sujo era um vermelho tão vivo. os cameramans pisando nesse vivo. ninguém a dava uma resposta. como se limpa isto quanto tempo a chuva leva para escorrer este cimento porque isto não aparece na previsão do tempo. por que no programa matinal da emissora ninguém ensina como remover a marca de um corpo na rua, especialmente, depois da ambulância não chegar a tanto tempo, e tudo voltar a ser resíduos? como contar aquilo a uma criança? ninguém fez a pergunta necessária. a que ela precisava responder. este é meu terceiro morto e o ano não termina. a morte custa dinheiro, limpar custa, arrumar. eu quero que vocês se lixem ela pensa, enquanto joga pela janela aberta um saco de carne decomposta dentro da van da reportagem quando eles partem de novo.
quarta-feira, 22 de março de 2017
ninguém sabe
Ninguém sabe direito o que é um desaparecido. Então um
desaparecido pode porque não ser qualquer coisa. O olho do sagui, a coruja pela
manhã traindo seu próprio hábito. A sombra deformada de uma figueira no
Ibirapuera. O cão que dorme com seu dono embaixo da marquise, a pomba que
atropela alunos dentro da universidade. Foi o que me disseram. Quando era
criança. Não disseram exatamente. Ninguém teve coragem de dizer as palavras
Edgar vivo. Edgar morto. Mas eu deduzi. Qualquer coisa. Os espíritos da
floresta da cidade das duas que destruímos. Até hoje quando vejo um animal em
meio as ruas, aparecendo nos sentidos, um quero-quero que não devia, uma arara
fugida do cativeiro clandestino, eu digo tio? tio!, eu digo: tio. Sei não fazer
sentido mas é um bom jeito de tentar familiaridade com todas as coisas.
há muito tempo atrás logo ali
Quando eu contei a minha avó que faria faculdade de comunicação ela me disse que não fazia bem a saúde. Eu disse: mas vó. Eu tomo café sem açúcar. Mas vó troco facilmente as drogas por uma boa amizade chave mestra. Era não nada disso que ela queria dizer. Há muito tempo atrás logo ali, disse e apontou para um velho calendário parado em 1967, toda palavra era perigosa. Houve um episódio, ela disse, pense, na rua da praia com a caldas junior, no tempo em que havia um jornal da manhã e um da tarde, dois dias a cada um, um presidente foge, há boatos de cidades inteiras sitiadas, os militares querem ocupar as ruas e serem estátuas ao mesmo tempo. Depois do baque, do pânico, do medo, alguns jornalistas simplesmente jogaram suas máquinas de escrever do terceiro andar da redação, algumas caindo e machucando os pedestres. Houve outros, ainda não acostumados, os jornalistas ainda jornalistas, engoliram as máquinas para dentro das próprias barrigas, pesadas, forçosas de entrar, caras as olivettes, tiravam as notícias pela boca como quem devolve a madrugada em uma latrina de um bar. Não se engane é muito perigoso, me disse minha avó. Eu imaginei os dedos indo fundos ali perto dos próprios umbigos, catando-se as letras, datilografando pelo tato, ou será que faziam eles, uns nos outros por ser mais fácil? Tranquilizei minha avó hoje em dia nós não usamos mais máquinas, mas estes pequenos aparelhos vovó, veja, menor do que algumas bocas, entrem fácil. E fingi não alcançar uma metáfora ruim e descarada, e entendi o mundo dos péssimos jornalistas.
a festa
Este foi um costume surgido em um distrito de Santa Fé, na argentina. Uma vez por ano era organizada uma grande festa no clube central da cidade. Discos de Piazzola e Roberto Carlos, Violeta Parra e Marie Anderson. Muita polenta cozida, milho boliviano, chimarrão, cachaça e cidra de mel para agradar os convidados de todos os lados do continente sul-americano. O povoado da cidade não entrava, ficava do lado de fora só olhando a casa vazia. Ou não. Vazia ou talvez. Vazia mas por a vida ser nossa não. Todos na lista de convidados estavam mortos. Uns, sabiam-se mais ou menos: tinha sido jogados de aviões militares lá por 71, outros metralhados nas barrigas ao levar os filhos para a escola , alguns nem sabiam-se ao certo em qual país se foram – boatos de que não havia este tipo de fronteira naquela época – chilenos, brasileiros, argentinos, paraguaios, que entre suas andanças desapareceram. Simples assim. Era uma lista gorda, com mais de 300 nomes. Uma tentativa desesperada mas com a pretensão de um alcaçuz, de colocar todos eles juntos no mesmo lugar. Todos eles próximos. Os sul-americanos. Todos eles vivos ou não mas presentes. Todos eles comemorando, felizes, em uma festa, como se não tivessem perdido a batalha, porque em verdade nada foi em vão, o Hernandéz, a Cássia, o Léon, O Timeiro, a Sylvia e mais tantos outros. Do lado de fora Miriam diz a mãe acho que posso vê-los, sim posso sim, riem muito, dançam como se tivessem sidos surdos por décadas, se abraçam como fitas dupla-face, em simultâneo todos. Sua mãe se emociona e segura a filha no colo. Esta é coisa sobre os desaparecidos, disse alguém a um telejornal, em um dia que passei pela tv. Os desparecidos estão em todos os lugares. Enquanto não descansam precisam saber que nós também não. Mas que há música ainda, e comida tanta. Alguns moradores ficam madrugada adentro enfeitando os olhos com as janelas do clube. Imaginam ou veem o que ocorre, ou que querem. Choram juntos e separados. Noutro dia vão limpar o salão. A comida, misteriosamente, sempre em parte comida. O resto levam para as creches. Nunca é tempo do desperdício, ainda mais agora. Tudo é tempo. E precisamos de cada pedaço um tudo.
segunda-feira, 6 de março de 2017
5 quase lácias
I
um dia houve no mundo um homem que confiou em uma palavra até o final. no seu significado até o final. mesmo sabendo que o sentido de uma palavra é algo muito particular. até o final. este homem usava a palavra como um facão sem cabo. para começar uma briga e para terminá-la. e eram muitas. dizem que quando velho se recolheu em uma cabana no interior do estado. falava sozinho. as pessoas o povoado viraram a cara, não entendiam. já as crianças o adoravam. iam muito a sua casa, levavam comida e jogavam xadrez.
II
um dia houve no mundo uma mulher que jurava que sua palavra existia até o final. a palavra era baupuca. baupuca é a situação onde uma pessoa se encontra na qual ela saiu vencedora mas as pessoas não a tratam bem por isso mas pelo fato de acharem que possui pouco tempo de vida. a mulher levou a palavra para uma audição na academia das letras. foi constatado por meio de votação que a palavra poderia existir, embora fosse uma antecipação de algo que talvez ainda não existisse, mas que caso adentrasse a ordem dos dicionários deveria ter a grafia corretamente escrita com a letra L ao invés da letra U. a mulher discordou tanto que quando girou a cabeça os pés foram juntos. alguém disse: esta mulher está tendo um paratiquieto. mas o presidente da academia, um tipo figurão, disse que não, que era impossível, pois esta palavra não existia. enquanto uns gritavam, outros arranhavam as mesas de madeira antiga, a mulher foi embora.
a mulher então sentou-se no fio da calçada. ao lado dela notou um senhor que poderia ou não morar ali na rua mesmo, embaixo de uma marquise. ela disse como quem sussurra (que é a definição daquilo que escapa com nossa autoridade) tudo isso por causa da baupuca. baupuca? disse o homem. verdade. sei como é. a mulher então ficou bem menos triste que antes mas não o suficientemente alegre, o fato é que a palavra esta ainda não foi inventada.
III
uma vez uma criança recebeu uma palavra via o sono. ela não contou para ninguém. estava em uma missão. uma missão secreta. ela tentou enfiar as palavras em todos os lugares para ver se ela pegava. para ver se ela encaixava. ela dizia: mãe porque meu lanche hoje está tão uclivo? mas a mãe só disse: não reclame. a verdade é que fora passada a ela a palavra, mas o significado ainda era um mistério a ser descoberto, por isso o plano de jogá-lo no mundo feito isca de anzol. na sala de aula, durante a contação de histórias, fez um comentário: sobre a história nem boa nem ruim: só sei que faltou uclivo. uma criança riu, outra chorou, o que a confundiu ainda mais. no fim do dia, exausta, deitou no sofá enquanto comia os restos de bolinho de chuva do final de semana. não cabia à ela salvar o mundo dos adultos. a veio a mente o caso de uclivo não ser a palavra real de sua missão mas apenas uma palavra para palavras temporárias. uma palavra para palavras que ainda não chegaram. eu uclivo, tu uclivas. vós uclivais. conjulgou-a como verbo várias vezes até pegar no sono.
IV
uma vez uma pessoa tentou se vingar do mundo. ela pegou uma palavra que todo mundo
adorava e deu um cheiro para ela que todo mundo detestava. digamos. era uma palavra como. digamos. a palavra doce. bombas de cheiro explodiam na cidade. o homem dizia a imprensa: eis o nome disso é. como imaginou o homem o nome não foi mais forte que o cheiro o bastante para fazer o cheiro ser agradável só porque a palavra era agradável. mas esqueceu-se o homem que uma boa palavra é muito mais que uma palavra só. guloseimas voltou rapidamente a moda.
V
uma vez um homem usou uma palavra para tentar ganhar uma eleição. a cidade era muito pobre, então ele inventou esta palavra: clâmula. ele a repetia em todo discurso, imaginando que seu eleitorado, por ser pobre, era burro, por ser burro confiava em alguém que conhecia palavras selvagens e que o mundo era maior por causa daquele que a fala. mas as pessoas eram inteligentes. usaram a mesma palavra quando o expulsaram do palanque. da cidade. ao contrário do que se pensava, a palavra não foi banida. virou um tipo palavra-estátua. para servir de exemplo. para nunca esquecer diziam os moradores. uma palavra corre o tempo, uma palavra pode guarda-costas do tempo. uma palavra pode ser adestrada, pode tudo, quando a palavra é nossa.
um dia houve no mundo um homem que confiou em uma palavra até o final. no seu significado até o final. mesmo sabendo que o sentido de uma palavra é algo muito particular. até o final. este homem usava a palavra como um facão sem cabo. para começar uma briga e para terminá-la. e eram muitas. dizem que quando velho se recolheu em uma cabana no interior do estado. falava sozinho. as pessoas o povoado viraram a cara, não entendiam. já as crianças o adoravam. iam muito a sua casa, levavam comida e jogavam xadrez.
II
um dia houve no mundo uma mulher que jurava que sua palavra existia até o final. a palavra era baupuca. baupuca é a situação onde uma pessoa se encontra na qual ela saiu vencedora mas as pessoas não a tratam bem por isso mas pelo fato de acharem que possui pouco tempo de vida. a mulher levou a palavra para uma audição na academia das letras. foi constatado por meio de votação que a palavra poderia existir, embora fosse uma antecipação de algo que talvez ainda não existisse, mas que caso adentrasse a ordem dos dicionários deveria ter a grafia corretamente escrita com a letra L ao invés da letra U. a mulher discordou tanto que quando girou a cabeça os pés foram juntos. alguém disse: esta mulher está tendo um paratiquieto. mas o presidente da academia, um tipo figurão, disse que não, que era impossível, pois esta palavra não existia. enquanto uns gritavam, outros arranhavam as mesas de madeira antiga, a mulher foi embora.
a mulher então sentou-se no fio da calçada. ao lado dela notou um senhor que poderia ou não morar ali na rua mesmo, embaixo de uma marquise. ela disse como quem sussurra (que é a definição daquilo que escapa com nossa autoridade) tudo isso por causa da baupuca. baupuca? disse o homem. verdade. sei como é. a mulher então ficou bem menos triste que antes mas não o suficientemente alegre, o fato é que a palavra esta ainda não foi inventada.
III
uma vez uma criança recebeu uma palavra via o sono. ela não contou para ninguém. estava em uma missão. uma missão secreta. ela tentou enfiar as palavras em todos os lugares para ver se ela pegava. para ver se ela encaixava. ela dizia: mãe porque meu lanche hoje está tão uclivo? mas a mãe só disse: não reclame. a verdade é que fora passada a ela a palavra, mas o significado ainda era um mistério a ser descoberto, por isso o plano de jogá-lo no mundo feito isca de anzol. na sala de aula, durante a contação de histórias, fez um comentário: sobre a história nem boa nem ruim: só sei que faltou uclivo. uma criança riu, outra chorou, o que a confundiu ainda mais. no fim do dia, exausta, deitou no sofá enquanto comia os restos de bolinho de chuva do final de semana. não cabia à ela salvar o mundo dos adultos. a veio a mente o caso de uclivo não ser a palavra real de sua missão mas apenas uma palavra para palavras temporárias. uma palavra para palavras que ainda não chegaram. eu uclivo, tu uclivas. vós uclivais. conjulgou-a como verbo várias vezes até pegar no sono.
IV
uma vez uma pessoa tentou se vingar do mundo. ela pegou uma palavra que todo mundo
adorava e deu um cheiro para ela que todo mundo detestava. digamos. era uma palavra como. digamos. a palavra doce. bombas de cheiro explodiam na cidade. o homem dizia a imprensa: eis o nome disso é. como imaginou o homem o nome não foi mais forte que o cheiro o bastante para fazer o cheiro ser agradável só porque a palavra era agradável. mas esqueceu-se o homem que uma boa palavra é muito mais que uma palavra só. guloseimas voltou rapidamente a moda.
V
uma vez um homem usou uma palavra para tentar ganhar uma eleição. a cidade era muito pobre, então ele inventou esta palavra: clâmula. ele a repetia em todo discurso, imaginando que seu eleitorado, por ser pobre, era burro, por ser burro confiava em alguém que conhecia palavras selvagens e que o mundo era maior por causa daquele que a fala. mas as pessoas eram inteligentes. usaram a mesma palavra quando o expulsaram do palanque. da cidade. ao contrário do que se pensava, a palavra não foi banida. virou um tipo palavra-estátua. para servir de exemplo. para nunca esquecer diziam os moradores. uma palavra corre o tempo, uma palavra pode guarda-costas do tempo. uma palavra pode ser adestrada, pode tudo, quando a palavra é nossa.
domingo, 5 de março de 2017
no bar Salineiro tem coisas
a história é um local perigoso. disse e foi embora. se falava da vendinha portuguesa que se chamava mil e uma noites, se falava da relação novelesca mas já esquecida de joana com isabel, se falava de nosso país e os índios mortos dentro de um fruto de cacau, mortos depois de em parte nos adestrarem a fruta amazônica, que pasmem, hoje é doce para o ocidente, os mesmos índios mortos hoje de novo por um madeireiro imortal, se falavam da primeira missa em porto seguro onde a cruz no pescoço entortou nossas costas para sempre e é difícil dormir a noite, se falava de nosso governador que já fora preso, já fora a morte para alguém, se falava do verdadeiro motivo pelo qual os peruanos originários carregam tantas cores em suas vestimentas, de uma foto esquecida no casaco de couro, de uma carta contrabandeada de dentro da prisão feminina que só levava uma receita de peru de natal, se falava que as fronteiras ao sul de nosso país são na verdade apenas só um fonema de difícil pronúncia, de um amor seu requentado durante ao sono a atrapalhar o deciframento dos semáforos quando de dia, eu não sei. eu sei que foi embora.
você sabe, alguém que não cumprimenta na ida ou na volta, sabe-se, não é necessariamente alguém que não cuida do outro. pode ser apenas alguém que viu demais. ele disse e foi embora. mas todo dia ele está aqui. o observo. pede uma cachaça, quando entra, o bar que é um navio quando ele entra, afunda para um dos lados e tudo despenca. você sabe, ele não é daqui. ele é alguém que não temos como saber se fala a verdade porque ninguém o conheceu antes de nós. outro dia sentou em minha mesa. é você que se chama Aurélio? Eu disse, também. Eu o perguntei as horas. São sempre as vezes, me disse. chorou. Porque houve um dia, fugiam de um tal de Matias, por dentro da mata atlântica, e nesse dia tinha chovido por dias iguais e as cachoeiras obedeceram se enchendo de água e a terra escorregando o que não era terra. porque matias era um homem que respeitava a sim mesmo, porque matias achava que um homem é mais homem com uma arma em punho, fugiam do dono da terra verde adentro. ele pausa a história. você sabe: tem duas coisas que estamos sempre perdendo: o dia anterior e a ereção. mas no meu caso eu acrescento josé augusto. quando já era uma distância considerável e as pedras grandes pareciam salvá-lo, josé augusto mais lerdo em princípio e em realidade era um alvo para matias, que atira e erra mas acerta do outro lado do morro, o que faz josé augusto rir, o que muito tem a ver com tropeçar, e despenca de cima da cachoeira como uma boia murcha em supergravidade, entre as pedras, de cabeça na água verde do segundo andar do rio. ele diz: nunca mais vi josé augusto até três anos depois em quito, enquanto cortava milho, e revendia, em um casebre em meio da estrada. a história é um lugar perigoso disse a pontou para a garrafa. a cachaça pode ser feita de qualquer coisa, mas plantamos cana. sou eu nessas situações e sorrio na medida que não exagero, no fundo sei o que diz, sei que é outra coisa, sei que com o tempo as palavras de alguns homens não significam mais o mesmo e eles tem que usar outras e outras, até se gastarem e jogá-las fora como cartas marcadas do truco.
todo dia ele vem ao bar Salineiro, onde trabalho. em alguns dele pede minha presença quando o salão está murcho. então me conta como perdeu e achou josé augusto mais uma vez. tem duas coisas que sempre perdemos: o dia anterior, a ereção, e no meio caso josé augusto.
uma vez em que trabalhava em uma fazenda de cocos, era inverno, mas como era o estado de alagoas, apenas era. um dia vira um homem, era josé augusto, fugindo de um tipo troncudo, disse josé, e deu um soco no homem, disse augusto, ele virou e o deu esconderijo em sua casa por algumas semanas. sempre sem querer. em qualquer lugar do mundo. quando uma vez em uma pensão em são caetano, chamou pelo gerente eis que surge: josé augusto. dois anos depois em brasília, em meio a marcha das margaridas, um homem, muito parecido com ele, josé augusto: aparentemente apaixonado, aparentemente luminoso, embaixo do chapéu de palha que dividia com uma mulher. quando a maré era tiro e bala tiro e bala lá por volta de 2014, estava em tocantins, assistindo a tv junto a um camioneiro que o dava carona, disse para o caminhoneiro: aquele tornozelo na televisão, aquele sangue que o cobre, aquele é meu amigo josé augusto gritando com o policial, sendo eu o que o vejo, sei que hoje não morre. passam-se anos, junta-se anos. de um jeito ou de outro há uma certeza que sem querer o encontrará. e o continente será de novo um pequeno carrossel.
nós sabemos a verdade. nós sabemos que no fundo ele é josé augusto. tem pessoas que sofrem muito, que vivem muito mais do que uma, ou cinco pessoas. todas as vezes ele mesmo josé augusto. imaginamos se houveram outros ou outras. nos preocupamos. existe duas coisas que perdemos jamais: o gosto pela feijoada de alguém que já se foi e a capacidade de estarmos sozinhos. poderia ter dito mas não disse. a história é um local perigoso, aprendo e me aquieto.
você sabe, alguém que não cumprimenta na ida ou na volta, sabe-se, não é necessariamente alguém que não cuida do outro. pode ser apenas alguém que viu demais. ele disse e foi embora. mas todo dia ele está aqui. o observo. pede uma cachaça, quando entra, o bar que é um navio quando ele entra, afunda para um dos lados e tudo despenca. você sabe, ele não é daqui. ele é alguém que não temos como saber se fala a verdade porque ninguém o conheceu antes de nós. outro dia sentou em minha mesa. é você que se chama Aurélio? Eu disse, também. Eu o perguntei as horas. São sempre as vezes, me disse. chorou. Porque houve um dia, fugiam de um tal de Matias, por dentro da mata atlântica, e nesse dia tinha chovido por dias iguais e as cachoeiras obedeceram se enchendo de água e a terra escorregando o que não era terra. porque matias era um homem que respeitava a sim mesmo, porque matias achava que um homem é mais homem com uma arma em punho, fugiam do dono da terra verde adentro. ele pausa a história. você sabe: tem duas coisas que estamos sempre perdendo: o dia anterior e a ereção. mas no meu caso eu acrescento josé augusto. quando já era uma distância considerável e as pedras grandes pareciam salvá-lo, josé augusto mais lerdo em princípio e em realidade era um alvo para matias, que atira e erra mas acerta do outro lado do morro, o que faz josé augusto rir, o que muito tem a ver com tropeçar, e despenca de cima da cachoeira como uma boia murcha em supergravidade, entre as pedras, de cabeça na água verde do segundo andar do rio. ele diz: nunca mais vi josé augusto até três anos depois em quito, enquanto cortava milho, e revendia, em um casebre em meio da estrada. a história é um lugar perigoso disse a pontou para a garrafa. a cachaça pode ser feita de qualquer coisa, mas plantamos cana. sou eu nessas situações e sorrio na medida que não exagero, no fundo sei o que diz, sei que é outra coisa, sei que com o tempo as palavras de alguns homens não significam mais o mesmo e eles tem que usar outras e outras, até se gastarem e jogá-las fora como cartas marcadas do truco.
todo dia ele vem ao bar Salineiro, onde trabalho. em alguns dele pede minha presença quando o salão está murcho. então me conta como perdeu e achou josé augusto mais uma vez. tem duas coisas que sempre perdemos: o dia anterior, a ereção, e no meio caso josé augusto.
uma vez em que trabalhava em uma fazenda de cocos, era inverno, mas como era o estado de alagoas, apenas era. um dia vira um homem, era josé augusto, fugindo de um tipo troncudo, disse josé, e deu um soco no homem, disse augusto, ele virou e o deu esconderijo em sua casa por algumas semanas. sempre sem querer. em qualquer lugar do mundo. quando uma vez em uma pensão em são caetano, chamou pelo gerente eis que surge: josé augusto. dois anos depois em brasília, em meio a marcha das margaridas, um homem, muito parecido com ele, josé augusto: aparentemente apaixonado, aparentemente luminoso, embaixo do chapéu de palha que dividia com uma mulher. quando a maré era tiro e bala tiro e bala lá por volta de 2014, estava em tocantins, assistindo a tv junto a um camioneiro que o dava carona, disse para o caminhoneiro: aquele tornozelo na televisão, aquele sangue que o cobre, aquele é meu amigo josé augusto gritando com o policial, sendo eu o que o vejo, sei que hoje não morre. passam-se anos, junta-se anos. de um jeito ou de outro há uma certeza que sem querer o encontrará. e o continente será de novo um pequeno carrossel.
nós sabemos a verdade. nós sabemos que no fundo ele é josé augusto. tem pessoas que sofrem muito, que vivem muito mais do que uma, ou cinco pessoas. todas as vezes ele mesmo josé augusto. imaginamos se houveram outros ou outras. nos preocupamos. existe duas coisas que perdemos jamais: o gosto pela feijoada de alguém que já se foi e a capacidade de estarmos sozinhos. poderia ter dito mas não disse. a história é um local perigoso, aprendo e me aquieto.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2017
viva a alteridade
na ilhabela, numa casinha com argila, pedras, madeira. ponto turístico mas também perdiâncias e morcegos. deixara a cidade havia, espere. quatro semanas. quem sabe trabalhar, quem sabe poder escrever sem diferenciar um do outro. trabalhava sobre uma mesa de mogno espanhol. traduzia italianos, estônios, e mais recentemente, búlgaros. sua família era de rio branco, libanesa. mas a alteridade, eis uma dádiva voraz. a família é nossa primeira grande errata. rabisco. foi errando o sobrenome nos documentos que se mudou para campos do jordão, para o dormitório da faculdade de letras, para esta casinha feita de argilas, pedras, e madeira. tinha acertado com a editora este livreto. era de uma poeta italiana, de origem turca, quase morta nos campos de extermínio por dormir com suas patroas, ou roubar açúcar, não se sabe ao certo. apenas que gostava de açúcar e das mulheres. e escrevia poemas. não se sabe ao bem ao certo, se eram sobre um, sobre outro, ou além. porque a mulher se chamava vera tivera uma pequena dificuldade. porque sua mãe se chamava vera e não sabia ao certo porque sumira um belo dia, pelo ódio a família ou o amor por outras coisas. o açúcar ou as mulheres. argila, pedras e madeira. ruindo. pela manhãzinha, misturava hibisco com raspas de laranja do céu, e um pedaço de alfarroba. olhava os manuscritos da mulher. olhava a janela. era o mar que chamava sua atenção. era o ato de ignorar todo o mar. sogno de la pittura. parava. um livro inteiro, uma alucinação, a vida de uma pintura, seus sonhos, seus desejos, enquanto presa em um museu. ualida? mama? mãe? era tanta a identificação e a não. não tinha coragem. deixava os papéis intactos, em cima de uma pilha e sumia, enquanto trovava em uma rede. um dia pegou no sono. de manhã, antes da alfarroba, antes do ritual - quando os cavalos se alfabetizam a selvageria - retornou para sua mesa. batera nela. era mogno mesmo. havia uma nova pilha de folhas, neles, cinco poemas traduzidos direto do italiano. a letra era bela, firme, mas não sua. no dia seguinte eles já eram quinze. como um susto era um tempo parado, dormia até tarde, assustada, acordava-se, e lia o português fresquinho, como um pão cheirando afora do forno. os lia, se emocionava, tão belos. não contara para ninguém. ao invés disso, decidiu sair com daniel à noite, o jardineiro da quadra. enquanto bebia em uma taverna, a casa trabalhava. alguém. o livro estava pronto. o título trabalharam juntos. ela escrevera uma sugestão. mas no outro dia, a frase estava corrigida em cima da mesa. ela riu, comum novo arrepio batucando entre as extremidades da cintura. disse baixinho: obrigada. a casa continuou intacta. argila, pedras, madeira. depois deste, houve uma penca deles, dos textos traduzidos. ela dormia, e a casa trabalhava, a casa tinha um ótimo vocabulário. mas não gostava de palpites. caso fosse, uma xícara, ops, quebrada na cozinha. mas que humor! nem ligava, tomava muito sol, banho de mar, que no caso não é banho, apenas um estar na água. não parou para pensar do que se tratava. um homem, uma mulher? nem tão mortos, nem tão vivos? o meio de tudo? ou vários deles, depois da vida, ficamos, uníssunos? eis um erro de caligrafia. um dos mentais, o erro buscado. viva o erro! a conquista. viva ao mar daniel. era um mistério como trabalhava tão rápido e tinha tanto tempo para treinar o frescobol. os tradutores trabalhavam no mistério, os tradutores tem um garfo especial para lidar com o tempo, enganasse quem escava a terra com uma pá dizia, depois de umas doses de conhaque. argila, pedra, madeira. viva a alteridade.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2017
da impureza inútil de ser sincero
eu queria dizer este é um poema sobre sexo. acordar a três passos deir embora, beijar como quem corre para longe, perto como quem foge. a sensação de ficar em cima de alguém ficando em baixo, vice-versa, desafio do grito uníssono, não é só uma a linha de chegada, um novo batismo quando raspaste o seu nome aqui. loteria. eu queria dizer este é um poema sobre a pornografia, dois homens se tocando enquanto um terceiro é tocado pelo nada, sozinho, respira pelas mãos com as mesmas mãos que agarra a comida, que deixa escapar um número de telefone, os três homens gozando. mas não posso. porque embora inacessível a mim e a outros este é um poema sobre o amor seja lá o que isto queira ser, um poema sobre sua independência, este é um poema sobre você portanto seu cabelo, seus dedos portanto o destino romenno de sua pele, a cair aos poucos, muito num mesmo local, eu não sei o que isto tem a ver comigo, eu queria que este fosse um poema sobre o anterior ao tempo, aos primeiros símios, cerceamentos, o rio jordão, a normandia, a palavra antes dita dos tapajós
talvez um dia este seja um poema sobre dois cavalos selvagens
meio sem saber se ir é retornar
ainda com as esporar mas soltos esse tipo de coisa e só.
2014
talvez um dia este seja um poema sobre dois cavalos selvagens
meio sem saber se ir é retornar
ainda com as esporar mas soltos esse tipo de coisa e só.
2014
segunda-feira, 23 de janeiro de 2017
o cara
uma vez o amigo do meu amigo conheceu esse cara. o cara tinha uma casa que era um andar. na geladeira do cara o cara guardava uma planta. uma planta na geladeira. mas essa não é a história. o amigo do meu amigo conheceu primeiro a foto do cara na internet, depois o apartamento do cara, depois o cachorro do cara. eles transaram e depois o cara colocou uma música do ed sheep no sistema de som, botou bem alto, até as pinturas até ameaçaram cair e parecia que a sala tava gargalhando por isso. o cara disse você vai comer comigo agora. o cara cozinhou berinjela, fez uma salada com um pepino e cenoura. o cara contou uma história, de que seu avô veio da moldávia, e por isso o dedão direito do cara não tem sensibilidade. “meu avô perdeu o dedo, não numa mina, mas ao se descuidar com a enxada, talvez pensando no navio”. “meu avô tinha medo de água” disse o cara. o cara falou isso, disse meu amigo, porque o clima ficou esquisito depois de uma grande lambida de silêncio. o cara pensou que algo estava errado, tipo, o cara poderia ter outro cara, e o tempo do outro cara chegar estava acabando, ou o cara poderia ter gravado os dois caras fazendo sexo há dez minutos atrás em cima do tapete. mas o cara então fez uma voz diferente e meu amigo pensou algo do tipo como ele escondeu também essa voz?será que ele tem outras? será que se transarmos de novo será com essa voz e não a outra?, e dai meu amigo colocou a língua no penúltimo dente debaixo e descobriu um pequeno cabelinho preso, meu amigo culpou o cabelinho pelo mal estar e logo esqueceu. os dois jantaram e meu amigo foi embora. meu amigo e o cara transaram mais uma três vezes e nunca mais se falaram ou tiveram amigos em comum. então um dia meu amigo conheceu um cara que conhecia esse cara. parece que o cara tava muito gordo, e com um problema muito sério, disse o outro cara. então foi aí que meu amigo descobriu que o cara era viciado não em outros caras, não em sexo, mas sim de pegar caras, fazer sexo, mais especificamente, colocando comida dentro do cu dos cara e depois comendo ela logo em seguida. o cara gostava de comer a comida que tava dentro do cara junto com o cara, resumiu o cara amigo do meu amigo. mas ele não fez muito caso, com esse cara esperava, só ergueu as sobrancelhas como um airbag em uma propaganda, e depois de me contar, ele disse pra mim “tenho até hoje o cabelinho do cara, é tipo uma coleção de selo, só que são pedaços de caras, cabelos no caso”. depois meu amigo terminou seu cappuchino e postou a foto dele quando estava cheio na internet. Nunca mais falamos do cara.
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