segunda-feira, 7 de agosto de 2017

três hipóteses

na rua da praia, no número 146, terceiro piso há um andar inteiro com documentos sobre os desaparecidos. há um andar inteiro para os desaparecidos. dos desaparecidos. há inclusive roupas. objetos. canivetes. carteiras.charutos. caixas de fósforo. bilhetes com telefones. manchas de bebida em coletes. pulseiras de sementes. livretos de ortega y gasset. anotações das próximas leituras de ortega y gasset. a viagem ao maranhão onde as sementes foram encontradas ao lado da cabine telefônica que ficava ao lado de nada. o pisco chileno que o amigo australiano trouxe quando tombaram da prova de cálculo III. o fósforo comprado não para o cigarro mas para ajudar o menino que demorava quatro horas para voltar do centro até sua casa. o canivete não só para a luta mano a mano a sobrevivência no cerrado ou na mata atlântica mas onde o nome do avô estava escrito comprovando a imanência de certas coisas. não só objetos. também ossadas. mais 10 ossadas de desconhecidos constam neste prédio. algumas quase completas, com crânio, rádio, tíbias. outras com o desfalque suficiente. mais de dez corpos de desconhecidos estão guardados no terceiro andar da rua principal desta cidade, uma rua que leva ao porto, ao rio, ao mar, ao mar internacional. antes de chegar a elas há homens armados, soldados que colocam e retiram a bandeira nacional todo dia que finda. podemos tirar algumas conclusões: os desaparecidos, aqueles nunca achados, estão guardados no terceiro andar deste prédio. portanto um desaparecido é também alguém separado de seu próprio corpo. um desaparecido não é um corpo, senão estaríamos resolvidos. ou, ainda, há uma opção que prefiro: o andar deste prédio está desaparecido, o prédio está desaparecido, a rua de cidade está completamente desaparecida. por isso não nos deixam chegar perto. por isso as armas. ver algo desaparecido é algo extremamente perigoso para eles. mentir para eles é uma questão primeiro de arquitetura e geografia.

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