na rua da praia, no número 146, terceiro piso há um andar
inteiro com documentos sobre os desaparecidos. há um andar inteiro para os
desaparecidos. dos desaparecidos. há inclusive roupas. objetos. canivetes.
carteiras.charutos. caixas de fósforo. bilhetes com telefones. manchas de
bebida em coletes. pulseiras de sementes. livretos de ortega y gasset.
anotações das próximas leituras de ortega y gasset. a viagem ao maranhão onde
as sementes foram encontradas ao lado da cabine telefônica que ficava ao lado
de nada. o pisco chileno que o amigo australiano trouxe quando tombaram da
prova de cálculo III. o fósforo comprado não para o cigarro mas para ajudar o
menino que demorava quatro horas para voltar do centro até sua casa. o canivete
não só para a luta mano a mano a sobrevivência no cerrado ou na mata atlântica
mas onde o nome do avô estava escrito comprovando a imanência de certas coisas.
não só objetos. também ossadas. mais 10 ossadas de desconhecidos constam neste
prédio. algumas quase completas, com crânio, rádio, tíbias. outras com o
desfalque suficiente. mais de dez corpos de desconhecidos estão guardados no
terceiro andar da rua principal desta cidade, uma rua que leva ao porto, ao
rio, ao mar, ao mar internacional. antes de chegar a elas há homens armados,
soldados que colocam e retiram a bandeira nacional todo dia que finda. podemos
tirar algumas conclusões: os desaparecidos, aqueles nunca achados, estão
guardados no terceiro andar deste prédio. portanto um desaparecido é também
alguém separado de seu próprio corpo. um desaparecido não é um corpo, senão
estaríamos resolvidos. ou, ainda, há uma opção que prefiro: o andar deste prédio
está desaparecido, o prédio está desaparecido, a rua de cidade está
completamente desaparecida. por isso não nos deixam chegar perto. por isso as
armas. ver algo desaparecido é algo extremamente perigoso para eles. mentir
para eles é uma questão primeiro de arquitetura e geografia.
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