quarta-feira, 22 de março de 2017

a festa

Este foi um costume surgido em um distrito de Santa Fé, na argentina. Uma vez por ano era organizada uma grande festa no clube central da cidade. Discos de Piazzola e Roberto Carlos, Violeta Parra e Marie Anderson. Muita polenta cozida, milho boliviano, chimarrão, cachaça e cidra de mel para agradar os convidados de todos os lados do continente sul-americano. O povoado da cidade não entrava, ficava do lado de fora só olhando a casa vazia. Ou não. Vazia ou talvez. Vazia mas por a vida ser nossa não. Todos na lista de convidados estavam mortos. Uns, sabiam-se mais ou menos: tinha sido jogados de aviões militares lá por 71, outros metralhados nas barrigas ao levar os filhos para a escola , alguns nem sabiam-se ao certo em qual país se foram – boatos de que não havia este tipo de fronteira naquela época – chilenos, brasileiros, argentinos, paraguaios, que entre suas andanças desapareceram. Simples assim. Era uma lista gorda, com mais de 300 nomes. Uma tentativa desesperada mas com a pretensão de um alcaçuz, de colocar todos eles juntos no mesmo lugar. Todos eles próximos. Os sul-americanos. Todos eles vivos ou não mas presentes. Todos eles comemorando, felizes, em uma festa, como se não tivessem perdido a batalha, porque em verdade nada foi em vão, o Hernandéz, a Cássia, o Léon, O Timeiro, a Sylvia e mais tantos outros. Do lado de fora Miriam diz a mãe acho que posso vê-los, sim posso sim, riem muito, dançam como se tivessem sidos surdos por décadas, se abraçam como fitas dupla-face, em simultâneo todos. Sua mãe se emociona e segura a filha no colo. Esta é coisa sobre os desaparecidos, disse alguém a um telejornal, em um dia que passei pela tv. Os desparecidos estão em todos os lugares. Enquanto não descansam precisam saber que nós também não. Mas que há música ainda, e comida tanta. Alguns moradores ficam madrugada adentro enfeitando os olhos com as janelas do clube. Imaginam ou veem o que ocorre, ou que querem. Choram juntos e separados. Noutro dia vão limpar o salão. A comida, misteriosamente, sempre em parte comida. O resto levam para as creches. Nunca é tempo do desperdício, ainda mais agora. Tudo é tempo. E precisamos de cada pedaço um tudo.

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