domingo, 5 de março de 2017

no bar Salineiro tem coisas

a história é um local perigoso. disse e foi embora. se falava da vendinha portuguesa que se chamava mil e uma noites, se falava da relação novelesca mas já esquecida de joana com isabel, se falava de nosso país e os índios mortos dentro de um fruto de cacau, mortos depois de em parte nos adestrarem a fruta amazônica, que pasmem, hoje é doce para o ocidente, os mesmos índios mortos hoje de novo por um madeireiro  imortal, se falavam da primeira missa em porto seguro onde a cruz no pescoço entortou nossas costas para sempre e é difícil dormir a noite, se falava de nosso governador que já fora preso, já fora a morte para alguém, se falava do verdadeiro motivo pelo qual os peruanos originários carregam tantas cores em suas vestimentas, de uma foto esquecida no casaco de couro, de uma carta contrabandeada de dentro da prisão feminina que só levava uma receita de peru de natal, se falava que as fronteiras ao sul de nosso país são na verdade apenas só um fonema de difícil pronúncia, de um amor seu requentado durante ao sono a atrapalhar o deciframento dos semáforos quando de dia, eu não sei. eu sei que foi embora.

você sabe, alguém que não cumprimenta na ida ou na volta, sabe-se, não é necessariamente alguém que não cuida do outro. pode ser apenas alguém que viu demais. ele disse e foi embora. mas todo dia ele está aqui. o observo. pede uma cachaça, quando entra, o bar que é um navio quando ele entra, afunda para um dos lados e tudo despenca. você sabe, ele não é daqui. ele é alguém que não temos como saber se fala a verdade porque ninguém o conheceu antes de nós. outro dia sentou em minha mesa. é você que se chama Aurélio? Eu disse, também. Eu o perguntei as horas. São sempre as vezes, me disse. chorou. Porque houve um dia, fugiam de um tal de Matias, por dentro da mata atlântica, e nesse dia tinha chovido por dias iguais e as cachoeiras obedeceram se enchendo de água e a terra escorregando o que não era terra. porque matias era um homem que respeitava a sim mesmo, porque matias achava que um homem é mais homem com uma arma em punho, fugiam do dono da terra verde adentro. ele pausa a história. você sabe: tem duas coisas que estamos sempre perdendo: o dia anterior e a ereção. mas no meu caso eu acrescento josé augusto. quando já era uma distância considerável e as pedras grandes pareciam salvá-lo, josé augusto mais lerdo em princípio e em realidade era um alvo para matias, que atira e erra mas acerta do outro lado do morro, o que faz josé augusto rir, o que muito tem a ver com tropeçar, e despenca de cima da cachoeira como uma boia murcha em supergravidade, entre as pedras, de cabeça na água verde do segundo andar do rio. ele diz: nunca mais vi josé augusto até três anos depois em quito, enquanto cortava milho, e revendia, em um casebre em meio da estrada. a história é um lugar perigoso disse a pontou para a garrafa. a cachaça pode ser feita de qualquer coisa, mas plantamos cana. sou eu nessas situações e sorrio na medida que não exagero, no fundo sei o que diz, sei que é outra coisa, sei que com o tempo as palavras de alguns homens não significam mais o mesmo e eles tem que usar outras e outras, até se gastarem e jogá-las fora como cartas marcadas do truco.

todo dia ele vem ao bar Salineiro, onde trabalho. em alguns dele pede minha presença quando o salão está murcho. então me conta como perdeu e achou josé augusto mais uma vez. tem duas coisas que sempre perdemos: o dia anterior, a ereção, e no meio caso josé augusto.

uma vez em que trabalhava em uma fazenda de cocos, era inverno, mas como era o estado de alagoas, apenas era. um dia vira um homem, era josé augusto, fugindo de um tipo troncudo, disse josé, e deu um soco no homem, disse augusto, ele virou e o deu esconderijo em sua casa por algumas semanas. sempre sem querer. em qualquer lugar do mundo. quando uma vez em uma pensão em são caetano, chamou pelo gerente eis que surge: josé augusto. dois anos depois em brasília, em meio a marcha das margaridas, um homem, muito parecido com ele, josé augusto: aparentemente apaixonado, aparentemente luminoso, embaixo do chapéu de palha que dividia com uma mulher. quando a maré era tiro e bala tiro e bala lá por volta de 2014, estava em tocantins, assistindo a tv junto a um camioneiro que o dava carona, disse para o caminhoneiro: aquele tornozelo na televisão, aquele sangue que o cobre, aquele é meu amigo josé augusto gritando com o policial, sendo eu o que o vejo, sei que hoje não morre. passam-se anos, junta-se anos. de um jeito ou de outro há uma certeza que sem querer o encontrará. e o continente será de novo um pequeno carrossel.

nós sabemos a verdade. nós sabemos que no fundo ele é josé augusto. tem pessoas que sofrem muito, que vivem muito mais do que uma, ou cinco pessoas. todas as vezes ele mesmo josé augusto. imaginamos se houveram outros ou outras. nos preocupamos. existe duas coisas que perdemos jamais: o gosto pela feijoada de alguém que já se foi e a capacidade de estarmos sozinhos. poderia ter dito mas não disse. a história é um local perigoso, aprendo e me aquieto.

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