um dia a encontrei. semiárida, granular. posando para as coisas, tocando cada situação com atenção que parecia acobertar uma fuga. se oferecendo de luva para o mundo. dizendo pouco ou quase nada, palavras rasantes e rasteiras.quem sabem, talvez, pode ser. como se estivesse jogada entre os carros, as buzinas tateando altos amperes, o fluxo interrompido com seus cotovelos sujos pelo asfalto. a encontrei como se voltasse de uma viagem obrigada, despachada, saísse de um continente intruso, de um país desconhecido, desaprendesse a falar o próprio idioma, o tempo de comer, de sinalizar um movimento. se tivesse a esquecido ou fosse despejada após um sequestro, não fizesse nota nem do ano, da confusão política recente de nossa cidade, do cigarro agora proibido no bares, dos jogos cancelados pelo governo. a encontrei e a retirei das escadas, da rodoviária, dos lábios de duas pedras, do meio do mato, em cima de uma marquise, a conheci mesmo a puxando pelo braço como quem finge a conhecer de verdade. depois de dois homens insistirem para ela os acompanhar com uma péssima intenção impressa como se escrita no ar, depois de não oferecer resistência, depois de esgotada qualquer espasmo de resistência, agarrei-me no seu braço e disse não, você não vai, a xinguei horrores, por seu desgarro, sua incoerência, o perigo besuntado na expressão em falta, em verdade não a xinguei. a recolhi pela mão, calmamente, como uma corda ao mar a guinchei daquilo, a pus sentada em um café, a dei comida, perguntei seu nome, sua idade, o contato de alguém próximo. não disse. apenas olhava para mim, como uma sonda. uma dessas espaciais. recordei de cassini muda, mas altamente atenta, recolhendo seus sinais em torno de saturno antes de seu voo mortal adentro do planeta. a palma de minha mão atritou como um choque.
a levei para casa.
como algo que encontramos no meio da rua. como um troço. restada. uma coisa. farelo. deixada e não mais pertencente a algo ou alguém.
preparei um banho, fiz comida, ajudei a colocar roupas limpas e a ofereci minha cama.
no outro dia conversamos sobre plantas. a planta mais antiga do mundo se chama Silene. Microlinia era uma planta extinta até um belo dia não ser mais. tomamos café, ela riu de um comercial bobo na televisão. fui trabalhar, voltei. não disse seu nome. apenas abriu a geladeira, fritou um ovo. comeu só o centro, o amarelinho, e dormiu. eu via alguém com medo. alguém desaprendido. com esforço faria a memória das coisas retornarem. dizia não ter força, dizia não ser boa, dizia não ter certeza, pedia desculpas sem motivo. permaneceu na cama por dias, como uma conha, ficou por duas ou três semanas lá em casa e depois foi embora de vez.
um dia me procurou a noite. deitou em cima de mim, agarrou-se a minha barriga. cheirava os meus braços rastreando algo perdido ou irreconhecível. em seguida soltou um berro como uma criatura portadora do último respiro, ruminante como uma orca, contorcido como um peixe, debateu-se no meu corpo pequeno e chorou. chorava pelos cabelos, pelas orelhas, chorava com os calcanhares despencando nem lágrima, num cheiro salgado, de guardado, um cheiro que dá até sede. acordei com ela dormida no meu ombro, como um cobertor recolhido em si mesma e ao tomar banho notei meu corpo estar roxo. repleto de pequenos e grandes hematomas da noite passada, de sua atroz transformação em um mamífero marítimo. fui para a galeria, onde era meu trabalho, com o corpo doendo, uma curva do ônibus quase me levou junto, movia as pernas mas esquecia seus recentes detalhes, e a força delas era interrompida sem me avisar e quase caía em passos que antes tendiam a ser tão simples.
parecia estar melhor. lembro de chegar e a casa estar arrumada, aquela casa com que tinha muito pouco e quase nada de ligação, lembro de seus cabelos parecerem soltos de verdade, eles iam e vinham, ela estava se mexendo, subindo e descendo do quarto a sala, fazendo comida, falando sem pedir permissão ou com medo de ser inútil em alguma espontânea naturalidade. me disse seu nome, falou o que fazia, pelo menos o pouco que se lembrava, tudo parecia sem importância e ela achava ser este o motivo do esquecimento. recordo de pensar como ser possível esta pessoa em minha frente construir casas, essa pessoa tão desesperada por plantas, tão frágil, pelo menos agora como uma, esta menina que me conta estudar arquitetura, ter vindo do noroeste, ser criada entre os bois, gostar mais de goiaba do que chocolate. ou não. não era importante acreditar tanto no que dizia. o importante era ela insistir em dizer. mas a medida que conversávamos havia também uma estranha sensação de minha parte de sentir uma pequena angústia a medida que novas informações de sua vida vinham a mim, como se desqualifica-se a realidade, nossa relação naquela casa, como se algo fosse sendo perdido. eu gostava dela existir, dela não ter ido embora com aqueles homens, a tragédia possível da qual nunca me perdoaria. também gostava de não sabê-la.
o trabalho me exigia muito tempo fora de casa. estava produzindo uma mostra de uma artista colombiana, uma amiga minha de muitos anos atrás, de outra vida, de outra promessa, só vinha a casa para dormir e comer, o que fazia o apartamento ser toda dela por estes momentos. estava melhor, é claro, assumindo seu direito de sorrir só por desaforo, de ter vontade, e apesar de sentir que nossa inexistente amizade estava sendo desfeita, eu estava feliz.
via esta melhora de maneira límpida até o dia em que de novo ela me achou no sofá da sala, de novo me deu um coice como um animal, mas agora de forma mais violenta, trancando meu quadril nas almofadas, pesando o corpo contra minha possibilidade de respirar levemente, com muita muita força como um bicho na secura de uma mudança de estação onde tudo se acaba e o que sobra não cabe no estômago. havia pouca luz vindo da rua, com o pouco dela, enxerguei suas coxas presas no meu corpo como uma garra, seu rosto desfigurado com os sons ilegíveis berrados pela boca, suas coxas firmes, vermelhas, duras, em silêncio tentei acalmá-la, mas ela não correspondia. com uma calma vinda do susto, só esperei tudo passar, enquanto ela mordia-me a nuca, o ante-braço, embaixo dos seios, enterrando os dentes de escavadeira, de broca, de perícia, especiando-me em pedaços, me dividindo mas me completando na sua boca. lentamente foi se assossegando, dormindo sobre meus ombros e ao levantar de manhã não é possível se desfazer de nenhum detalhe do momento que meu sangue seco, que nos unia como cola, me exigia certo molejo para desgrudar de seu rosto sem acordá-la.
a deixei lá, emboscada em meu sofá, meu sangue, minhas almofadas, e os motivos inacessíveis que eram os dela. a água escorria nos ferimentos e a dor que antes pude usar para destroçar meu corpo de qualquer sensação mais emotiva agora era apenas dor. dor carnívora, monstruosa por retalhar, rasgar a pele ferida, por poder ser sentida no corpo todo simultaneamente. coloquei bicarbonato de sódio para limpar as feridas, arranjei esparadrapos, meio sem pensar fiz tudo muito rápido, como se fosse uma rotina diária, como se fosse como trocar o absorvente enxurrado de sangue e pitadas de endométrio, uma norma automática como escovar os dentes. peguei o carro, comprei dois cafés, fui ao aeroporto, esperei Raji minha artista e amiga, sair do portão de desembarque, esqueci completamente de meu estado quando confundi seu vestido colorido e borbulhante com seu sorriso e levada por estes dois tecidos a abracei forte, em um abraço no qual coube eu ela e aquela mulher que ainda dormia em minha casa, me dando uma presença inescapável, disparando uma dor mais forte ainda a partir dos ferimentos. eram poças, tiros, buracos expostos em frente de Raji e me senti vulnerável como a pouco não sentia em frente a alguém. enquanto ela falava sem parar sobre sua recente ida ao méxico, sua ancestralidade indiana melhor entendida, sua recente separação, suas novas ideias para a montagem do espaço expositivo da galeria, notei algo úmido, como a carícia de um molusco, perto do meu umbigo, uma língua solta a salivar. olhei para baixo da direção do carro, minhas pernas, olhei para a barriga, lá estava uma mancha vermelha começando a surgir em minha blusa. a mantive ocupada com perguntas e mais perguntas para que não me desperdiçasse compenetração em minha situação, e depois, na galeria, coloquei um velho blusão por cima de tudo e suei, suei como uma porca o dia todo.
cheguei no corredor do meu prédio, sentei no chão ao lado da porta. fiquei bons minutos ali tentando sistematizar algumas palavras soltas, me colocar em um local que faça sentido. o suor e sangue juntos tem um cheiro engraçado porque afasta viciando. tudo passava pela minha cabeça como um túnel, apenas informações muito rápidas , não conseguia tocar de verdade e tocar de verdade seria se importar, dar a mínima, levar a sério. não era possível dar a devida preocupação, devida euforia para o que ocorria, o que ocorria agora era meu corpo caduco, caduco vermelhando, dolorido, com marcas de dente de uma menina. um campo de mina terrestre. decidi que sentiria as palavras mais corretas de serem ditas na hora de entrar em casa e as coisas seriam tratadas de maneira natural.
cheguei em casa e lá estava ela. me abraçou, me tocou com as palmas completas, escorregando da testa as bochechas seus dedos. me agradeceu. sentamos na mesa e me contou como estava melhor, como se sentia outra pessoa. era tão absurdo imaginar agora mas houve dias que não viveu em memória ou em plena capacidade, apenas consentiu, empinada pelo vento. não sabia direito qual caminho havia a trazido para ter chego aqui mas disse ser aqui onde voltou a si. falava e falava sem pausa como minha amiga colombiana, e eu ouvia. abriu a geladeira pegou um chá gelado de erca cidreira com laranja, entortou as sobrancelhas e me contou o que descobriu.
então me contou uma história triste. triste triste. história que eu não lembro pois o que eu lembro é apenas o que pensei na hora, o que imaginei. pensei ter se lembrado de quando havia um homem, eles estavam juntos, ele a engravidou. que o homem parecia feliz, e ela estava mais feliz por ter um filho do que qualquer coisa, então o bebe se foi e ela descobriu que o homem dava há dias antiabortivo, escondido na em cada refeição que faziam juntos. ela teve de ir para o hospital, depois voltou a faculdade mas não tinha ânimo para nada. ou poderia ser outra coisa. poderia ter sido expulsa da casa dos pais por ter pego barriga, ter levado uma surra e perdido o bebê, ou sem bebê algum, expulsa de casa por não ser o que os pais esperavam que ela fosse. ou apenas foi atacada por alguém que achava conhecer, depois de uma festa, no banheiro acadêmico, no carro de um amigo, deitada na sua cama recebendo as primeiras pistas que o sol estava nascendo. poderia ser isso, nada disso, ou tudo. o que importa era a raiva que abaixava as têmporas, esquadriava o peito, um engano, uma decepção, vinda de uma confiança traída que cegou todas as facas, limou as torções dos parafusos, fez até mesmo as coisas serem menos confiáveis e aos poucos foi a paralisando.
ela sentiu vergonha do que me confidenciara, vergonha de ser roubada assim, desrespeitada, enganada, de estar enfraquecida. vergonha de chorar estando com a consciência no máximo sinal. de não bater, de não responder, de não socar, mesmo estando com os músculos entorpecidos na força máxima. pela minha experiência alguém que estava assim como ela, vivendo uma sétima encarnação de um tipo de pedra, desandada, retirante de si, pausada, poderia sentir ou pensar saber qualquer coisa. este é um estágio onde dos que chegam na gastura mais desgastante, a ponto de tudo retroceder, e ser difícil distinguir acontecimentos falsos ou reais porque tudo foi levado, contaminado, rompido, até o passado primeiro. as coisas aconteceram e não aconteceram com ela, era isto que eu achava, mas sua presença ali era o que fazia as coisas serem certas e inegáveis.
devagar muito devagar me curvei sobre seus ombros, coloquei o queixo sobre seus cabelos. me permiti colocar os braços nos seus braços pois é isso que me ensinaram ser o normal a fazer para ajudar os outros seres humanos, milimetricamente, como uma receita médica, à risca a pressionei medindo o nível deste encontro. eu repetia tudo bem bem bem baixinho, bem baixinho mesmo, como uma ciranda, de novo e de novo, até que eu mesma caí em minha armadilha e me perdi ali, saí de mim e quando retornei ela estava de pé, eu ainda tudo bem tudo bem, como pega na mentira mas não era mentira, era apenas um lugar que não sabia onde para nós duas entrarmos apenas. me olhou por um tempo e buscou com as mãos meu rosto, no que automaticamente pensei ser a lembrança daquele ataque da noite anterior, mas ao invés disso, delicadamente juntou meu olhar e me beijou.
me beijou na boca. se deteve com cautela pelos meridianos do rosto como um novo mapeamento. um recomeço na promessa da lucidez
ela tirava minha blusa, enquanto eu inerte a via beijar-me de olhos fechados, aos poucos, oferecendo pequenos extratos de doçura, muito distante do cuidado das outras noites. abriu os olhos, abriu a blusa, abriu, então se deparou com aquela cena - o meu peito nu. soltou um grito, ficou preocupada. não lembrava de nada, de nada dos nossos pequenos encontros. eu não tinha coragem de dizê-la como antes não tinha tido. parecia que simplesmente não merecia. perguntou se doía e eu assenti. trouxe alguns remédios, desfez os curativos e os melhorou. aquela estranha sensação de seus dedos rolando sobre as marcas de seus próprios dentes, com horror. aos poucos senti algo nela despertando, algum conhecimento entre meu corpo e ela sendo indiretamente trocado, ela ia aceitando o que havia tinha mesmo ocorrido sem eu ao menos dizer nada. não me importo, eu disse, é verdade, não me importo, não me interessa, está tudo bem. é só pele, superfície. esta nem era toda a verdade. talvez até gostasse, talvez até precisasse, talvez até fosse essa minha forma de me caber, de me roçar no mundo, de perseguir meus fugitivos com gana. tive sonhos estranhos, mas nada como isso, não era você, gaguejou incrédula mais por não lembrar, agora que estava tão clara das coisas, do que pelo que fez.
mesmo assim fomos para a cama, e eu acossada com meus pedaços, me recolhi. nos deitamos juntas como antigas conhecidas, como um segredo dividido em duas partes que precisa de ambas para ser legível, antigas amigas, amantes, qualquer coisa. extremamente conscientes o que não fazia nada ser mais fácil mas também não menos natural. tirou a roupa, depois me ajudou a me despir, e ainda com os olhos inchados, vagando como uma rede, borrão vermelho no vento conjunto desvairado, me beijou. por mais sutil que fosse o movimento dos seus braços, suas pernas, seu quadril, mais brandos que fosse sua língua, sua boca, sua mão, seus seios, o que de todo não eram, mesmo assim meu corpo doía. exclamava, inchado, perfurado, habitado, qualquer titubeio, maior ou menor, era o mesmo, o pouco era muito. enquanto se movia levava junto minhas partes, meus pedaços, meus poços, meus buracos, por instantes, nossos. tudo antes de ser algo era antes dor, difundindo pelo corpo, meu corpo sem centro, meu corpo que era um duplo, dublê. minha armadura ferida, ensaiando o início de um levante, no que era ferozmente dolorido e além de tudo extremamente prazeroso.
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