Zuvenir do frigorífico
Saio do frigorífico correndo, não tomo banho nem troco as botas. Cortei porcos o dia inteiro, tenho a impressão que o mundo é uma baba branca, como a luz sobre o galpão. No ônibus, não vejo direito a parada, o clarão avança. Uma mulher me olha com agrura, tenho os pés no sangue, a vida é assim, e ela sabe. Não paguei o Bernardinho, nem confirmei a janta lá na prega nove. Tenho essa impressão que algo escorre em mim como uma graxa. Que deixo um rastro inconfundível. Que na noite quem brilha sou eu.
Anacleta do ginásio
Ignoro a diretora. Tenho manter qualquer palavra ao alcance, sou ligeira, já dizia minha avó. Sei limpar um sapo durante o pulo. Estou atacada da mesmice, queria dar-me por caidinha, em qualquer beco que meu desse de convite. Meus alunos se gabam de empurrar as tarefas como nós os adultos empurramos os anos. Eu também já fui jovem. Fiz reza em banco de praça, achei poder trocar uma desculpa por desconto na venda. Eu também já disse além da conta, ralei os joelhos, e me achei a número um do juízo. Tenho cabelos embaraçados pelo pesadelo da sesta. Vou incomodar minha amiga Rose, ver se ela topa dar um perdido.
Isaura a estudante
Ímpeto e isca. Qual o disfarce? Lira e Lanterna. Qual é a pegadinha? Não como há nove dias mas não cairei deitada, tenho fé. Vou ser escrita da fome, veja só. É aí que a língua verdadeira aparece. Esse e o país da dança, diz ó meu pai, pois vou dançar e cair em pé. Porque essa é a comida do país, e a escrita é o adiantamento que não pagamos jamais. Pagar com o que? Entre o mísero e o suposto, resta o que?
Lira a musicista
Ato de fé é não botar o olho. Meus pais caíram porque não rezaram. Digo, não sou religiosa. Mas boto altar onde der, invento um púlpito em uma laranjeira, numa fatia de engano, num canto do banco. Tenho de prova meu momento único: essa flauta doce. Hoje eu rezo a amoreira aqui de casa, rezo dona Sebastiana, com o chorinho dos indomáveis. Faça o que quereis, diz minha música a dona Sebastiana, seja seu próprio azar e se defenda. De pé ao muleque, de asa, a tua curvatura, diz o chorinho da flauta. Faço encomendas de trufa, pra lembrar de apegar-me ao dinheiro. Nem tudo é guia pra solução.
Plínio o comediante
Hoje as pessoas riem diferente. Riem sozinhas, depois de muito tempo. O tempo é precioso o malabarismo do palhaço são as horas. Tirei nenhuma nota no metrô, um tipo alto me encarou feio e passei malos bocados. Eu o disse para tomar um jasmim, o chá, ele por fim não falava minha língua. Queria é briga, esse idioma comum. Nós os palhaços inventamos a briga mas a piada é a fuga. Se a piada não funciona, ficamos com uma cara cem por cento maior e mais acertável. Uma vez li que a diferença de um poeta e de um palhaço é que o primeiro finge não falar nada para falar tudo e o segundo acaba com tudo dizendo nada. Eu só rio no trabalho e o poeta só ri sozinho, diria a Ciro, meu ex-companheiro de quarto, que largou o circo muito antes, antes do circo ser ele mesmo a piada, para virar professor de letras.
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