Assim que fui nomeado juiz, nos mudamos na semana seguinte para Alvarenga. A maior parte das coisas minha mulher mesmo que separou e empacotou, enquanto eu me dedicava as questões protocolares, com a imobiliária, o clube e o escritório de advocacia, do qual tinha sido sócio. Minha ideia era simples, alguns meses, talvez um a dois anos em Alvarenga, uma pequena cidade litorânea ao sul, e depois, passar para um concurso maior, quem sabe, ir para o Centro-Oeste, onde parte da família de meu pai ainda estava viva. Nunca tinha vivido em uma cidade próxima ao mar, tinha o visto raras vezes, mas o mais interessante não era nem isso. Só queria ir embora de Curitiba o quanto antes, ainda mais depois do escândalo de Ludovico.
Foi nos indicado uma pequena pousada, até que conseguíssemos encontrar uma casa que agradasse minha esposa. Como haveria de abdicar de seu emprego, era professora de maternal, a escolha de uma casa que a fizesse se sentir bem e segura era o mínimo que podia oferecer. Minha mulher não fala muito, então, estou sempre me antevendo. Falo comigo mesmo, antes que haja no futuro, um momento, quase sempre dolorido e ruidoso, onde tenha que confessar algum mal-estar. Nunca reclamou ou colocou alguma objeção a nossa ida, muito pelo contrário. Ficou feliz, riu, me parabenizou e se parabenizou, como se fosse uma conquista conjunta. Mas eu sabia que isto não apagava o fato de que a distância das amigas do colégio, do tempo da faculdade, o barulho dos carros, as sirenes, até mesmo o grito dos bêbados de madrugada, era algo que sentiria falta não apenas, a nostálgica falta, mas aquela aguda, que nos é sentida no tilintar do estômago. Ao contrário de mim, que sempre me mantive satisfeito entre os estudos para o concurso e os processos que lidávamos na firma, me contentando com alguns jantares caseiros ou breves saídas ao parque nos finais de semanas, minha mulher gosta de estar no meio das pessoas. De sair a noite, dançar, de saber o nome do padeiro, do senhor do café, da senhora da feira. Tudo o que ela não me diz, e assim vejo, também a outros, penso eu, não confessa, costuma embrulhar com um acúmulo de floreios, tagarelices, exageros, quase mascaráveis, quase pistas falsas, que usa para se manter menos agitada ou desviando de seus problemas.
Eu teria um salário fixo cinco vezes maios do que o do escritório, claro, sem os adicionais percentuais dos processos e o bônus ao final do ano. A ideia de uma certa estabilidade me alegrava. Nunca me questionei porque queria ser juiz, na verdade, a ideia, é me tornar desembargador. No primeiro dia de aula, ao ser questionado pela professora nesses rituais de apresentação do curso e aos novos colegas, respondi que era o natural a fazer. Simples desta forma. Depois a universidade acabou, fiz duas especializações, mas vi que não havia interesse pela vida acadêmica ou pela pesquisa, mas mesmo assim seria estranho parar por ai. Comecei a fazer concursos, não pelo desejo do ofício ou por não ter um emprego bom, mas seria um desperdício desfazer o canto de estudo, deixar os livros, e o maior de tudo, o tempo reservado para o estudo e o hábito, quero dizer, o gosto pelo lento avançar de etapas. Neste movimento contínuo parecia que sabia para onde estava indo e tudo era feito de forma milimétrica por um sentido, cada escolha minha, se autoexplicava, não tinha a sensação de estar perdendo nada, apenas acrescentando.
Depois de deixarmos as malas na casa da pousada, o dono do local nos convidou para comemorarmos minha vinda em seu restaurante. Pelo visto, era dono da metade dos empreendimentos da região. Apesar de a ideia não me causar entusiasmo e conhecer as figuras particulares daquela cidade não me despertassem um milímetro de curiosidade, aceitei de pronto por minha mulher, sabendo ser este tipo de evento social de seu feitio. Ao chegarmos no local todos foram muito amáveis. A cidade parecia estar a nossa espera como se fôssemos um prato principal prestes a ser devorado. O farmacêutico, o dono do parque turístico, o do dos containers do porto, das fábricas, muitos estavam lá e comecei a desconfiar se fazia a parte de alguma estratégia que poderia gerar favores futuros. Sempre fui mediano e não sou acostumado a ser notado. Nunca fui bonito mas também não era feio o suficiente para ser marcado, estudei em uma faculdade de baixo reconhecimento, barata e de acesso universal, vim de uma família de classe média sem nenhum acontecimento estapafúrdio. Agora estava começando a entender o que aquele cargo realmente queria dizer. O dono da pousada, Sr. Valdecy, me apresentava a todos como o novo juiz e neste momento exato a face do ouvinte se modificava, ganhando um filtro suavizante. – Mas é muito jovem, me disse uma senhora, agarrando um de meus braços. – Vou tomar como um elogio, disse, mas sim, de fato, sou muito jovem. Neste momento estava no centro de uma roda de umas dez pessoas, e para qualquer lugar que buscasse ir parecia haver quilômetros de superação para chegar, mesmo que fosse o outro lado da sala. Foi aí que o vi pela primeira vez, entre os cabelos grisalhos recentemente pintados e taças de espumante, perto do balcão de bebidas, ao lado de minha esposa, alheios a todos comentários e a esta espécie de caçada pela qual estava passando. Um lustre posicionado ao acaso bem em cima dos dois trazia um tom especial a cena, intensificando ainda mais as luzes gotejadas de amarelo avermelhado. Ele era extremamente bonito, com aquele tipo de beleza que não conseguimos expressar, o que nos causa um desnorteio a mais. Fiquei um momento em silêncio, observando a cena dos dois. Senti uma presença perto de mim. O homem riu baixo e disse com as sobrancelhas muito marcantes, como uma gongorra, muito infantis, - Não se preocupe, ele é inofensivo, como se fosse um acordo de cavaleiros. Minha mulher é também muito bonita, uma beleza fácil, destas que cumprem os padrões, e por um momento a proximidade dos dois fez sentido. Poderiam ser um casal, pensei, olhando daqui, senti meu peito esquentar e temi não ficar escandalosamente vermelho na frente de todos aqueles desconhecidos. – Por que o senhor diz isto? – perguntei ao homem que tinha se aproximado, a quem descobri, chama-se Frederico, e era como eu, advogado. – O falta o principal, disse. Vontade.
Não mencionei o jovem para minha esposa em nenhum instante. Seria prudente que ela tocasse no assunto, não queria causar atritos desagradáveis. Antes de dormirmos perguntei a ela o que achou de nossa noite, disse que estava muito cansada, mas que apesar de tudo, do estilo século dezoito daquele povo, com toda pompa e péssima música, tinha sim conseguido se divertir. Quando acordei tive a impressão de que tinha sonhado com ele. O conteúdo do sonho havia desaparecido, restava apenas algo como uma sugestão de sua presença. Durante o café esperei alguma oportunidade de falarmos sobre este episódio, mas minha mulher, sordidamente, como é de seu perfil, não parava de comentar cada detalhe insignificante que notava: a louça, a umidade do ar, a borda das janelas, o tipo de banha usada na produção da comida, o nome do jornal da cidade. Parecia estar não tão infeliz para que abruptamente é retirada de uma cidade e colocada em uma insignificante cidade portuária, e não me aguentei. – E aquele, quem era?, - Como? – ela respondeu. – Você estava conversando com alguém, um rapaz, perto do balcão, os vi em algum momento. – Ah, é Jonas. Vou passar mais tarde na casa dele, ficou de me emprestar alguns livros. Te convidaríamos para ir, mas acho que tens muito o que fazer hoje. – Sim, é verdade, - a disse. – Tenho que resolver a documentação, começo na segunda-feira.
O trabalho estava bem, transcorrendo sem maiores dificuldades. Em meu tempo livre saía para pescar com Valdecy, logo descobri que aqueles passeios faziam parte do trabalho e meu papel era semelhante a de um psicólogo local, praticar o dom da escuta. Minha mulher cada vez mais engrandecia sua relação com Jonas, se tornando uma costumaz frequentadora de sua casa. Quanto mais descobria que sua ausência na casa se justificava pelo fato de estarem em algum de seus programas, como idas a biblioteca, cafés, bares e cuidado dos jardins municipais, mais eu descobri em mim uma novo passatempo, o cultivo da remoagem ordinária, digo, do odiar. Comecei a gostar de odiar o fato dos dois se apreciarem tanto, dela não me dever nenhuma explicação, a natureza fina dos ossos de Jonas, digo fina mesmo, era muito magro, com as omoplatas saltadas, a testa erguida como um escudo, o que prova que poderia ainda ser muito mais bonito se se cuidasse. Por momentos me vinha o rosto de minha mulher rindo, em seu colo, e em outras, apenas o rosto dele, congelado de como estava na primeira vez que o vi, com uma luz própria, brilhando. Perto dele até mesmo minha mulher ficava mais bonita e quem sabe mais interessante, e por vezes, me questionava se sentia era ódio dela por estar com ele, e não dele, por estar com ela. Tinha um medo de compreender o que reamente me deixava incomodado e por isso busquei negar toda oporttunidade que surgisse de um encontro nosso. Quando achava que estava apenas sendo pela primeira vez na vida vítima de um ciúmes mecanizado onde sem enraizam os casamentos, o que seria a resposta mais óbvia, logo me vinha na mente a frase do senhor: - Não te preocupes, és inofensivo. Não entendia o que estava por traz da afirmação. Mesmo se fosse ou casto, ou gay, ou assexual, o suposto ciúmes nao diminuia. Não mudava o fato de minha mulher e ele estarem lá, falando sabe-se de que, rindo, ou chorando, emocionados ou entediados, mas juntos.
Ela que por hora vinha me contar sobre algum relato de seu dia e quando estava disposta me usava de folha em branco para pincelar alguns exercícios de pensamentos e suposições sobre Jonas. Enquanto eu tomva banho, fazia higiene, ela falava, mais para ela do que para mim, é claro porque me interessaria, em suas teorias de personalidade, sobre ele, que sempre denunciavam fascinação. Por ela descobri que era o herdeiro de uma fortuna, que sua família havia ganhado muito dinheiro no campo, mas mesmo assim não saiu da casa dos pais, e pouco viajou nestes anos todos. Em quase dez anos, com muita dificuldade, conseguiu um diploma de químico, mais para agradar o pai, que não tinha ninguém com terceiro grau completo na família. Não havia namorada ou ex-esposa, nem ao menos, casos em que ela me contasse, apenas algumas experiências da juventude, motivadas em suma, pela própria juventude. Passava os dias lendo os jornais e romances de literatura brasileira, principalmente os urbanos, como uma medida protetiva de passagem do tempo. Quando convocado a falar, sempre tinha algo a dizer. Mas se não intimado, permacia suave, à escuta, à espera, e a resposta era quase um respeito, um gesto carinhoso de retorno, destinado ao ouvinte. A beleza, suponho, o entendia - diz minha mulher. - Mas é de fato, um homem muito bonito - disse a ela, querendo ganhar pontos como minha ousadia. - Isto não o interessa em nenhum modo, nem ao ponto de se tornar um estorvo - respondeu ela de boca aberta, como se tivesse se sentindo sortuda por poder estudar de perto uma criatura tão excêntrica. - Então. se nem a beleza o traz compaixão, o que sobra? Eu não tinha entendido até aquele ponto. Não é que não tivesse apreço pelo mundo. Não é que não se apaixonasse pelas pessoas, não as desejasse, por vezes ia a casa de prostituição, ou algo do tipo. Não é que não se interessa-se pelo funcionamento do mundo, do dinheiro. Apenas não havia vontade de fazer. Seria possível? Seria. Por exemplo: se quisesse minha mulher, e eu creio que sim, de fato, poderia estar apaixonado por ela, se de fato fizesse qualquer movimento, ela cederia e a conquistaria. Mas isto estava completamente descartado. A ideia de ter um caso, do trabalho, da dedicação, a ideia de agir e suportar esta ação, isto o trazia um tipo de asco. Pois a longo prazo nao havia motivação. Era uma pessoa triste, sabia que não passaria disto.
Chegou um dia em que relatei a minha mulher que não gostaria mais de saber nenhum detalhe sobre Jonas. Reais ou não, suas considerações me traziam uma excitação negativa, insuportável, uma raiva desconhecida. Ele parecia cada vez um ser mais diminuto, mais mesquinho e sua negação frente ao movimento das coisas me deixava ocupado em meditações inúteis. Se quer ser amigo desta criatura, que seja, mas faça este experimento longe de mim, eu disse, além do mais se gostasse mesmo dele procuraria ajuda. Eu pensei que com isso suas visitas iriam diminuir, mas começava cada vez mais a passar mais tempo naquela casa. Ás vezes chegava a passar a noite, e eu como não queria detalhes, nem a questionava. Pensei também que sem as histórias e os detalhes vivos narrados por ela eu pararia de pensar em Jonas. Mas os sonhos aumentavam. Em muitos ele só se resume a uma presença, silenciosa, mas presente sempre em qualquer situação. Balança o pé enquanto tomamos chá, e aquele balanço move todos os vidros da casa, se sapato vira o centro do mundo. Em muitos seu olho está muito perto do meu, como se estivéssemos deitados, e eu sinto uma estranha calma em tentar desvendar o mosaico de diferentes cores que compõe seu olho, eu me sinto, digamos, aceito ali naquela suposta cama, aceito por quem eu sou, sinto um alto grau de pertencimento, quase imerso em uma solução de gentileza. É algo que deixa rastros muito calmos, e no trabalho, em situações estressantes, naturalmente eles vinham a tona, usados para me desacelerar, para me confortar. Passado este uso temporário, voltava ao sentimento normal em relação a ele: um profundo ódio.
Um dia, cheguei ao meu limite. Já estávamos há cinco meses naquela cidade e mal consegui me concentrar para o estudo para saírmos logo daquele emplastro. Fui começando a ficar nervoso, me sentindo preso aquele mar inutil, que so servia aos barcos e não as pessoas, aquele mar impossível de nadar, turvo, feio, frio. Minha mulher e eu quase não falávamos, muito menos nos tocávamos. Se ainda tivesse sendo traído de forma real, da forma esperada, se ao menos estivessem os dois tendo um caso, veria isso quem sabe até como algo honroso, algo compreensível mas nem isso, não havia explicações fáceis. Eu descobria inúmeros motivos a mais para odiar Jonas. O fato dele não querer minha mulher a este nível, mas ela estar sempre lá presente, era um deles, o que pensava? Como alguém negaria a minha mulher? As desculpas ficavam cada vez piores e parecia um pretexto de meu cérebro de o trazer a tona. Nesse dia me vi em meio a sua barba, eu pensava, como ele mantinha aquela barba, era recém depois do almoço, o que justifica isso? Sai do escritório correndo e fui até sua casa. Entrei com os braços abertos e ofegante, fiz questão de bater pesado na porta de madeira, esta que se abriu sozinha. Encontrei Jonas e minha mulher na sala, sentados sobre o tapete como duas crianças, ignorando toda a mobília cara em volta. Não pensei muito, só queria tirá-lo da minha cabeça, dar fim ao desprezo que sentia por ele e que me envolvia em mais desprezo, se eu tivesse uma arma teria colocado na sua cabeça naquele momento, mas como não sou este tipo de pessoa, e esta não é este tipo de época, apenas o agarrei pelo colarinho a ponto de seus pés se perderem do chão. Minha mulher gritava comigo e eu o olhava minuciosamente, com uma proximidade como a do sonho. Vamos, me bata, ele disse. Me bata. Falou calmamente, com um leve sorriso, equilibrando-se em uma indiferença açucarada. Era impossível. Dar-lhe um soco, ou dar-lhe, um beijo que fosse. Impossível. - Por fim, queres algo, pensei mas não disse. Não havia o que dizer, seja o que estivesse em jogo ali, eu havia perdido. Talvez perdido desde que me mudei para aquela cidade. Desde que entrei na faculdade. Desde que nasci. Me limitei a apenas ir embora.
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