sexta-feira, 14 de agosto de 2020

águas passadas

Mais de vinte anos depois sinto que Mariana virou um outro tipo de companhia, e não entendo se é boa ou ruim. Quando alguém me manda uma mensagem e diz que precisa me falar algo, ou um velho conhecido relata, tenho algo urgente para de contar. Se uma pessoa se despede deixando soltar que tem uma surpresa para mais tarde. Quem aparece é Mariana. Na possibilidade de estar quase dormindo e começar a escutar sons estranhos, espirros na madeira, clacs vindos do telhado. Se estou dirigindo meu carro, indo para o Instituto, e um automóvel me corta quase levando o farol direito junto, é o rosto de Mariana que surge em minha mente. Jovem como o momento pelo qual me apaixonei por ela, intocável, como no momento que fui embora.

Me apaixonei pela juventude, foi por meio de Mariana. Os anos 2000 eram seus cabelos cumpridos e o medo do bug do milênio era seu joelho esquerdo, contundido no meio de um campeonato infantil de voleibol, onde nunca podia confiar completamente nas caminhadas, nas trilhas que fazíamos pelas montanhas. Seu dom de conversar com os estranhos era aquela sensação, de que tudo é possível, e a proximidade da morte, do tudo ou nada, muito tinha a ver com o arqueamento das pernas de Mariana, onde gostava de dormir e acordar, onde tantas vezes fantasiei perder a cabeça, a respiração, até o coração parar, enrolada em suas coxas, por livre espontânea vontade.

Imagino Mariana aparecendo em uma reunião, agora milionária, depois de casar com um suíço muito rico, oferecendo uma quantia irrecusável de doação para nossa organização, a imagino aparecendo em meio a minha aula e dizendo algo desconfortável, como, por exemplo, Rafael, Leonardo, eles não eram italianos porque a Itália ainda não existia, não aumente o poder dos estados nacionais de irem até o passado, quem se importa com o renascentismo, você sabia que ketchup é uma receita tailandesa? Mas na maioria das vezes, quando sinto sua presença imaginária na fila da farmácia, no estacionamento, dando uma entrevista, tentando escrever um texto, o que ela diz realmente é muito parecido com Por que você não avisou que ia embora? Sua aparição surge como um lembrete. De que eu sou uma pessoa terrível pelo que fiz com Mariana. E nesse momento meu estômago se fecha e sinto muita vergonha. Vergonha e um medo absurdo da existência dela, seja onde esteja, porque seria a prova viva de que eu enganei a todos. Meus alunos, meus colegas de trabalho, meus subordinados, meu marido. De que eu sou uma pessoa ruim. Um blefe.

Sempre planejei ir embora. Sou extremamente planejada, desde criança. Mesmo não querendo, sabia que era o que tinha de ser feito. Mas nunca imaginei que seria assim. Eu estava apaixonada por ela, sem dúvida. Arrisco dizer que foi a única pessoa pela qual me apaixonei. Sinto amor pelo meu marido, assim como posso ter sentido com um ou outro. O amor é mais fácil. É morno o amor, não em um sentido ruim, me propicia ir para o estado onde eu desejo em um cintilar de segundo. Me permite me dedicar a universidade, escrever meus livros, fazer minhas viagens, sem tanta agitação, mergulhar em meus próprios pensamentos. É como uma pedra fundamental, onde as casas são construídas. E a casa, no caso, é meu trabalho. Com Mariana, era o oposto. A ebulição, a novidade, o vapor, a explosão. Tudo era instável. Havia muitas distrações, tudo era interessante, os dias tinham cinco relógios, com quatro fusos horários. Estava imersa em uma solução animalesca, onde meus sentidos ficavam aguçados como um onça, a audição, os cheiros, a capacidade de enxergar os detalhes. Porque a conheci, posso dizer que já me apaixonei, mas que não é isto que pretendo para minha vida. Posso dizer que sou uma pessoa tranquila, que preciso estar no centro de minha própria atenção. Que sou até mesmo egoísta. Mas foi assim que eu escolhi.

Nos conhecemos em uma viagem à Ilha Bela. Foi a única vez que viajei sozinha, depois de um estágio estressante em uma galeria em São Paulo, de onde fui mandada embora por não saber matemática. Errei as medidas dos convites de abertura e o panfleto veio minúsculo, nem dava para ler direito e ninguém achou que cabia uma licença artística. Pelos milímetros e centímetros, me dei o mar de presente. Mariana vivia lá, com uns amigos, vivia na beira da praia e parecia que o mar tirava o sal de sua pele, não o contrário. Que o mar precisava dela. Plantavam, construíam suas casas, cuidavam da associação de bairro. A primeira vez que a encontrei, estava completamente nua. Nunca tinha visto uma mulher assim, nem mesmo minhas amigas. Três dias depois, apenas, a conheci de roupas. Fiquei horas pensando na cena dos seus seios à pouca luz, que apareciam quando pensei que ia engatar o sono. Por não conseguir dormir direito apareci um dia na sua casa, sem achar as palavras exatas, mas querendo entender o que ali havia mexido tanto comigo. Ela se divertia com a minha falta de graça. Passávamos os dias juntas, conversando sobre os moradores, locais, sobre o jardim, sobre a história da cidade, e não nos tocávamos, ela fez questão que eu chegasse sozinha, no meu limite, fez questão que eu tivesse certeza. Até que um dia, na cozinha, me perguntou, o que afinal eu queria, eu disse, eu, quero, entre um bocejo e outro falei. eu quero dormir, eu quero dormir com você, ela riu, me deu uma piscada e continuou fazendo a comida, e eu dormi ali, mesmo, na mesa, finalmente, depois de dias sem pregar os olhos, me sentindo mais leve, aliviada, e por isso mesmo feliz. Passamos o resto das férias naquela pequena casa de madeira e depois ela voltou comigo para São Paulo, de onde era. Durante a semana, morávamos na antiga casa de suas avós, Mariana tinha dinheiro embora recusasse a ideia, herança da família, que já nem mais existia, e nos finais de semanas íamos ao campo. Não contei nada para meus amigos mais chegados, que ficaram em Florianópolis. Não conseguia organizar as palavras corretamente. Sabiam sim que estava com alguém, mas não sabia nem que era uma mulher, a escondi como pude, deles, e do meu futuro.

Minhas notas na faculdade começaram a cair, nem sabia ao certo se gostaria de seguir o curso, e eu comecei a planejar minha fuga. Me inscrevi em diversas universidades no exterior, em uma tentativa de sair daquela cidade. Eu estava feliz, absolutamente feliz, como nunca antes ou depois, mas com o fim da graduação sentia que precisava acertar o rumo das coisas. Não falei nada a Mariana, o que poderia dizer? Depois de alguns meses juntas fomos a uma manifestação. Era para ser algo muito pequeno, uma obra que o governo queria retirar, que fazia ilusão a Zumbi dos Palmares. Iriam relocar para longe da cidade. Fomos nós duas, pensei que seriam apenas algumas horas e depois iríamos comer algum prato feito, na volta do centro. Aqueles dias eram véspera de sair um escândalo muito forte envolvendo o governador com a venda de imóveis públicos, e talvez por isso, ele quis testar a força em nós. Quando dei conta de mim, éramos umas cinquentas pessoas em volta de cavalos, policiais em cavalos, tropa de choque de animais e bichos. Os cascos vieram para cima e eu e Mariana fugimos pela lateral. Quatro policiais nos fecharam em um beco, um nos atacou, e ela revidou com um soco, gritou meu nome. Aquele longo segundo foi decidido muito rápido. Mariana tinha dinheiro, poderia ser solta quando quisesse. Poderia apanhar, mas duvido que eles fariam isso com ela. Eu tinha passado em uma universidade alemã, iria em breve sair do país, precisava ter um registro limpo para obter o visto. Fugi, sem saber o que aconteceu.

Se foi presa ou não, ficou detida, fichada. Se passou a noite na cadeia, não sei. Não liguei para o advogado, não fui na DP a tirar da cadeia. Se teve que fazer corpo delito. Não voltei para pegar minhas coisas em sua casa, não a liguei. Não conversei com nenhum conhecido. Eu sabia que seus pais estavam mortos, seu tios moravam no exterior. Que seus bons amigos já tinham abandonado São Paulo. Sabia que não tinha ninguém e mesmo assim, fui embora. Era o mais fácil a fazer, era a ocasião. Voltei a Florianópolis, de lá, fui para Frankfurt, aonde passei o resto de minha década. Quando comecei a dar aula, em Curitiba, conheci meu marido, também professor. Não tive mais notícias suas.

Mariana se tornou meu ponto fraco. Eu tinha medo de meu ponto fraco. De estar sozinha com meu ponto fraco. Algumas vezes observava meu marido trabalhando embaixo de uma lâmpada no fim da noite e me dava uma vontade extrema de contar tudo para ele. De contar sobre Mariana. Mas isto implicaria contar o que eu fiz. Talvez significasse até mesmo perde-lo, por perder seu trato ingênuo comigo, sua complacência devotosa. Em outras, me divertia sabendo o quanto Mariana detestaria aquela cena. Meu marido extremamente chato aos seus olhos, repetitivo, uma vida quase celibatária. Seu desprezo por ele seria a certeza que eu tomei a decisão certa, porque me dava uma independência em relação a ela. Me divirto imaginando os dois conversando, tentando ter algo em comum, e fracassando, em uma festa de conhecidos, quem sabe.

No pior dos cenários, Mariana é amiga em comum com alguém que eu conheço. Meu corpo treme completamente, sinto que ela poderia acabar comigo com duas palavras. Sinto que o chão me chama, e que fico muito baixa, muito baixinha, e Mariana está muito distante, mas tapando o céu. Sinto que fui desmascarada e que nem sei mais rir sem soar falso, e todos me olham com desdém. Sinto que meu corpo se lembra do corpo dela vorazmente, e me puxa automaticamente para seus quadris, como uma âncora de navio. Mariana me reconhece, e sem demonstra-se transtornada ou desconfortável, me abraça fortemente e fala, senti sua falta, com sua doçura típica que manteve-se intacta durante todos esses anos. Mas no pior, pior dos cenários possíveis mesmo, me oferece seu rosto complacente, lúcido e irradiante, e diz, não fique assim, não foi nada, são águas passadas, éramos tolas e jovens, e nada mais. E depois, vai embora.

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