sexta-feira, 14 de agosto de 2020

porta-malas

Começou comigo perguntando, Flávio, você confia em mim Flávio? E foi isso, ela disse, virando as última gotas de chope. Então o Flávio, esse meu amigo, ela disse levantando o braço imediatamente pro garçom, ele disse sim, claro, que confio, ela contou interrompendo para pedir duas cervejas a mais. Ó, eu disse pra ele, ó Flávio, se confia em mim então entra naquele porta-malas. E foi isso ela disse. Eu era muito parecido com esse Flávio, aparentemente. Barba comprida, cabelo crespo, escuro, enrolado, vinte e poucos anos, cara de tédio, falo pouco. Enquanto ela falava, olhei através da janela um carro vermelho, que poderia ser o dela. Fiquei imaginando o interior daquele porta-malas, o cheiro de gasolina misturado com goma de mascar, com desodorante de florais. Os fiapos de luzes que entravam pelos pequenos buracos.  Será que ela ficou em silêncio durante todo o percurso? Ou durante essa viagem, que ela não disse nem para mim nem para ele par aonde era, não calou a boca por um segundo? Seus dedos eram muito comprimidos e as unhas muito bem feitas. Será que ela estava falando metaforicamente, este tempo todo? Penso se poderíamos ter algo em comum a ponto de aturarmos as manias um do outro e trocar confidências. Talvez se fossemos amigos de infância, ou se ela estivesse se afogando ou eu me afogando, e tivéssemos esse elo dos sobrevividos untando nossa amizade. Talvez se tivéssemos a mesma história, portanto, o mesmo lado da história, um pai que nos abandonou na tenra idade, um chute na bunda depois de ser traído, este é o tipo de coisa que imediatamente liga as pessoas, como uma marca de nascença, dá uma origem visível aos olhos. Talvez ela estivesse ali naquele bar em meio da estrada me contando as coisas mais estapafúrdias para que eu faça o que os amigos fazem e diga você está maluca, isto está errado, pense melhor, e sirva como um sinal de alerta. Ela era bonita mas se esforçava para ser feia, com a maquiagem semi-acabada, sendo grossa à toa, quando estava agradando demais. O Flavio entrou na mesma hora, nem foi no banheiro antes, contou séria, olhando a tv atrás de mim onde passava o reprise de uma luta de UFC. Será que Flavio estava ali, naquele Monza vermelho? Quem tem um Monza com uma tintura tão nova, tão bem cuidada, com certeza, é alguém com apreço a certas coisas especiais. Senti um reflexo breve de abraça-la até que ela parasse de falar, nada sexual, apenas a oferecer uma pausa. Alucinei sentir o roçar do metal na minha nuca, do carpete, no meio das minhas pernas, sentir o ar rarefeito. Limiar a minha visão a pequenos pontinhos de luz perdidos na estrada e confundir o silencio da noite como um ar a mais, que de pouquinho em pouquinho, enchia meus pulmões, enquanto sentia o balancear do carro durante as curvas, relaxando nos abalos de seus movimentos, sem saber aonde estou indo.

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