segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A estrada

É impossível esquecer o dia que Antônio nos abandonou. Foi no mesmo período que os bichos queriam se matar. 

Isto foi há quase uma década, céus, me assusta tanto a proximidade como também o tanto de tempo passado. Estávamos já há quase uma semana na casa de campo de mamãe e papai, era fim do ano, um pouco antes do período de férias. 

Nos primeiros dias era só eu, meu ex-esposo, nossas filhas, e mamãe. Eu e meu ex-esposo, embora matrimonialmente separados, nos damos muito bem, somos muito afeitos a companhia um do outro, e este gosta muito de minha família, o que é raro, e por isto costumo o trazer como forma de atenuar estes dias com meus pais. Depois foi chegando mais gente, a casa mais cheia, mais comida, mais louça, vai ficando complicado. Vamos tendo que contar de novo e de novo sempre a mesma história, as mesmas atualizações, a cada um que chega, a minha tia Ana, meus sobrinhos Ulisses e Wellignton, meu irmão Chico, dias depois, e vemos por força da repetição e do cansaço a história ir se perdendo à olhos nus dos primeiros ouvintes, a ponto dos acontecimentos ficarem borrados na ameaça se sua autêntica veracidade. A cada um que chega a paciência vai se apequenando, assim como os modos, e em um pulo, é como se voltássemos a ser aquelas crianças berrentas de outros tempo, resolvendo qualquer situação mínima na base do grito, mendigando faíscas briguentas por baixo da rotina. Por fim, chegou Antônio. 

Não disse muita coisa, passou os dias fazendo longas caminhadas. Na hora do almoço e da janta nos ouvia muito, com uma atenção nunca antes manejada nessas ocasiões, e se mantinha apenas testemunha de qualquer desentendimento frequente, sem levantar um verbo sequer. Estava tão estranho a ponto de eu e meus irmãos, Odália e Pacheco, minhas tias e meus pais, ficarmos até mesmo preocupados. Ou estava sofrendo de algum tipo de distúrbio emocional ou tinha, quem sabe, sido iluminado por uma reviravolta de ordem divina ou apenas mágica, da qual o detalhe nos escondia. Metade da família se dividiu em volta da hipótese número 1, enquanto a restante, em volta da número 2. Este era o tipo de coisa que gostávamos de fazer para passar o tempo e enquanto Geraldo (meu ex-marido) imaginou que Antônio estava treinando para padre, Ulisses disse que ele na verdade estava fazendo pesquisa teatral para interpretar um monge hindu e largar os estudos de geologia, eu apostei que estava mal por ter sido revelado a ele em um retiro espiritual que o retiro anterior na verdade não era mais confiável, e vivia agora um intenso dilema da ordem de este tipo específico de granhuras. Chico disse que o abestado provavelmente deve ter levado um pé na bunda e alguém respondeu saindo correndo que meu irmão era um abobado e não tinha entendido a brincadeira. A última coisa que me lembro é dos pratos caindo com a correria de um atrás do outro.

Três dias antes do natal, armou-se uma daquelas brigas ao fim da janta. O motivo era inútil, começou com algo a ver com o fato de meu pai e Pacheco não terem acordado Odália em uma madrugada específica do ano de 2001, durante o jogo da copa do mundo entre Brasil e Inglaterra, na Coreia do Sul, fato que ela considerou imperdoável por toda a vida, e depois, cada um falou o que queria falar, por tédio ou por diversão ou por saudade, pela incompetência de se demonstrar carinho, muitas famílias fazem os gestos mais crus da saudade, até o início motivador daquela cena se perder. Aí, Antônio levantou e disse calmamente: não aguento mais vocês, vou embora. Entrou no carro e sumiu. Ficamos em silêncio pensando que era uma brincadeira, suando as cores de dezembro na camisa.

Papai foi o primeiro a fazer algo. Ficou atônito, pensava o pior. Era um aderido da hipótese 1, de que o filho não estava batendo bem da cabeça, e assim, aquela mensagem estava cifrada. Pensando que poderia fazer uma besteira, entrou no carro junto com minha tia e eu. Fui pela diversão, com um sorriso debochado no rosto. Cresci vendo meus irmãos se desentendendo, com suas brincadeiras de lutinha, suas peripécias e pegadinhas que faziam um com os outros. No chão, entre soquinhos, choros e gargalhadas, tudo misturado. Estava acostumada, era como os áureos tempos. Só parei de rir quando, depois de alguns minutos chegamos na rótula antes da rodovia. 

Havia um cheiro de podre. Em seguida, ouvimos um estrondo, junto a um grunhido, e um policial sair correndo e usar o rádio do carro para gritar com alguém. Um deles se aproximou de nós e disse que não havia como passar adiante pois a estrada estava fechada. Meu pai o pergunto até quando e eu vi atrás das viaturas um rastro vermelho no chão. Até os bichos pararem de se matar contra os carros, vai saber, quando, disse o guarda. Encontraram aves, lobos, gado, marsupiais, cobras, até mesmo duas onças, que a tudo indica vieram de longe, nem eram habitantes naturais de nosso estado. Primeiro começaram aos poucos, se jogavam entre os automóveis, nos vidros, seres menores, então, até vieram os grandes, em larga escala. Mais de trinta pessoas tiveram que morrer naquele trecho da BR até as autoridades fecharem as estradas. Uma vez fechadas, os bichos sumiam, abertas, retornavam. Durou três dias o evento e, ao todo, a estrada ficou fechada por duas semanas. 

Nunca soubemos como meu irmão nos largou, aquela era a única estrada para sair da cidade. Quando voltamos a casa, minha mãe disse, batendo as mãos nos quadris, como quem tira o pó, Não deve ter ido longe, de fato, deve estar aqui, por perto. Era adepta a hipótese 2.

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