sábado, 22 de agosto de 2020

inverno

fazia anos que não tínhamos um inverno tão rigoroso, me havia dito minha mãe. desde quando eu era pequena, meu contou minha avó, não via o gelo chegar no campo dessa maneira. vivíamos em uma casa de madeira, na fazenda de meu avô e era difícil se aquecer. usávamos um fogão à lenha, de ferro, muito antigo, que estava instalado no centro da sala. dormiámos em volta dele, aninhados, contra a noite. lembro da última visão do olho antes de dormir, a janela suada com a umidade, os pinheiros se agitando ao longe, sobre a luz única da lua. a respiração de meu avô lembrava a de um avião monomotor, e de vez em quando, minha avô falava algo dormindo, normalmente, uma discussão ou um pedido de perdão a sua irmão Nelgésia, com quem não falava há muitos anos. às vezes, nas noites raras que se deu sua presença, eu podia ver uma geada no início da manhã lambendo os vidros e nossa pequena casa se convertia em um submarino celeste. acontecia muito cedo da manhã e eu gostava de acordar e contemplar aquela imagem. era um outro tipo de frio, um frio muito acolhedor. parecia que nadávamos em meio as nuvens, que durante a noite, em minha imaginação, a casa havia dado voltas pelo mundo, e durante o sol nascente, retornava silenciosa. parecia que eu e a casa tínhamos um segredo.

de dia, ajudava minha avó os afazeres, enquanto meu avô e minha mãe manejavam os animais, cuidavam do rebanho. era um rebanho pequeno, mas que dava muito trabalho. cozinhávamos pão e biscoitos e vendiamos para os vizinhos nos dias de sol. à medida que o frio aumentava, cada vez era mais difícil encontrar madeira seca para o fogão. aos poucos meu avô começou a usar o antigo galpão como combustível para o fogo. cada dia retirava um pedaço da parede, ou do telhado, até que queimamos tudo. depois, começou com nossa casa. primeiro, o segundo banheiro, depois, o quarto de minha mãe, o meu e de meus avós, de movo que a sala, que era junto com a cozinha, virou o único cômodo que restava. ficávamos entranhandos, comendo sopa, bebendo quentão, enquanto víamos as paredes se perderem no fogo, enquanto um velho guarda-roupas de repente nos aquecia por noites a fio. minha avó chorava baixinho enquanto ninguém estava vendo, à medida que as paredes de seu antigo quarto, onde passaram mais de 30 anos, se desfalecia em sua frente. impossível imaginar o que sentia nesse momento, mas imagino que o fogo liberasse junto com seus gases diversos tipos de memórias, e que as memórias se soltavam em nosso pequeno e único cômodo, de modo que, não era apenas mamãe que estava lá mas mamão com dois anois, com dez anos, mamãe gripada, vovó jovem, vovô desaparecido, vovô aparecido, meus avós recém casados e brigados, todas nossas versões acumuladas em pequenos metros quadrados, o que deveria ser um tanto doloroso mas também um tanto bonito, de alguma forma. meu avô era o responsável por separar a madeira e a cada dia que passava tornava-se mais silencioso, não sabia dizer se era indiferença ou um chamado nato a praticidade.

para mim, tenho memórias muito diferentes desse tempo. gostava de dormir com toda minha família junta, embora perdesse meu quarto. gostava de ouvir as histórias contadas por noites à fio por minha avó e minha mãe, com diferentes versões de como nossa família foi parar naquele pedaço de mundo, de como cada um tomou o rumo que tomou. não passava pela minha cabeça que teríamos que reconstruir a casa, um uma hora, depois de queimarmos tudo que conseguirmos, e de que estávamos cada vez mais pobres e mais à mercê de uma possível tragédia. naquele momento a casa era tudo que tínhamos mesmo que necessitando ser queimada, havíamos uma casa para queimar. além de tudo, havia algo em minha mãe que me deixava tranquila. enquanto nossa residência se desmontava, a cada noite que passava, eu via seu humor melhorar. quase como um alívio, possuía um ar de satisfação desenhado em seu rosto, como se a tirassem o peso do mundo. talvez fosse coisa do calor, pensava naquela época. logo no início do verão, nós duas fomos embora.

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