quinta-feira, 13 de agosto de 2020

o balde

você sabe limpar um peixe? disse o dono da barraca 42 do mercado público.

eu sei sim, senhor, ela disse.

primeiro, você tem que se livrar das escamas. você sabe tirar as escamas?

eu sim, senhor.

primeiro você posiciona a faca na transversal, à contra pelo, digo, contra escamas, certo? porque é um peixe. aí só vai, minha filha, só vai lixando.

o homem seguiu falando. parecia que fumava um charuto imaginário pois sua boca se mantinha aberta no canto direito, entortada. tabaco ou outra coisa, com certeza é um ex-viciado, pensou. enquanto ele mostrava o serviço, seu suor salgado encontrava o salgado do peixe, bem devagar, enquanto o sol levantava durante a manhã sobre a janela.

aí, as tripas do bode, bode não, porque é um peixe, tu joga ali naquele balde.

sim senhor. aquele balde?

nunca viu um balde, minha filha? sim sim, aquele balde.

as histórias de cozinha e abate normalmente vem com uma ligação afetiva, na maioria das vezes, familiar por trás. um avô que levava o neto para pescar, um pai que desangrava o bode para um churrasco de chão a mão que depena a galinha para o domingo em frente aos filhos atônitos entre o choro de pena e o choro de emoção. a pesca, a caça, as cebolas cortadas, os pimentões. nessa família o assado tem que ser feito com o sal posto depois. sempre depois. teu bisa fazia assim. no caso dela não havia nenhum rito geracional que envolvessem os bichos, seu sangue, seus interiores. aprendeu a limpar peixes porque precisou, porque era barato comprar peixe. era barato pescá-lo. se a perguntassem sobre o gosto nem sabia se gostava, mas comia. quem estava lá era o peixe.

trabalhava das cinco da manhã até as quatro da tarde. o mercado fedia a peixe, a sangue de porco, a boi passado, nas laterais. mais ao centro predominavam, quase como uma ópera, primeiro, os cheiros das ervas das lojas de religião brasileira, alecrim, sálvia, de mais para frente, o cheiro dos óleos concentrados, das vendas fitoterápicas. saía do sangue, da morte, e adentrando, buscava-se a cura, pensava, a medida em que caminha, e uma vez que chegasse exatamente no meio do enorme galpão havia uma sensação nula, até meio triste. de manhã ajudava a retirar os bichos dos caminhões que chegavam, limpava a calçada, despejava o gelo com sangue rosa para longe da construção. era uma cidade que parecia ter nascido velha, uma cidade que parecia andar de costas, às escondidas. os prédios antigos ficavam em maioria perto das águas e do mercado e tinham um aspecto de cansados. como um prédio pode parecer cansado? porque são deformados, pensou ela, lhe faltam pedaços que vão sendo consertados com materiais de construção de outra época, porque são sujos, porque parecem cópias de outros prédios, que existem em outros lugares, plágios sem motivação, vivendo a vida de outras cidades, querendo ser o que não se é. já nasceram podre, com essa graxa no granito neoclássico, e à medida que as árvóres, os parques, os bichos, os jardins, foram desaparecendo e cedendo ao pincel da pressa, dos automóveis, cada vez revelavam sua verdadeira natureza. uma coisa tinha certeza. o cheiro é o mesmo. antes de colocarem os primeiros aterramentos, a primeira pedra. esta cidade é este cheiro azedo, depois, o resto.

por último, sua missão era se desfazer do balde com as entranhas. pedaços de estômago, intestinos, de todos tamanhos, misturados em uma massa grudenta. seu chefe nunca a deu uma instrução exata do que deveria fazer com os resíduos. quando ela o perguntava, se esquivava com algo do tipo eu não vou fazer seu trabalho minha filha!. às vezes jogava no rio, noutras, colocava em uma caçamba do hospital municipal que havia ali perto, ou deixava no largo em frente, caso houvesse algum acúmulo de restos prévios, dando sopa. se o serviço de recolhimento não os levasse ficava lá por alguns dias, via as moscas surgindo aos poucos, em volta dos sacos que fechou. noutras vezes apenas jogava no bueiro, apressada, caso houvesse algum compromisso, o que era raro.

às vezes, no ônibus voltando para casa, morava em uma cidade perto da capital, pensava em todas as outras pessoas que poderiam ter trabalhos semelhantes. dos limpadores de galinhas, os limpadores de boi, de porco. imaginava-os fazendo sua rotina, largando as entranhas dos diferentes reinos por aí, esses animais se encontrando no esgoto, no rio ou atrás de um prédio, juntos no róseo mineral de seu sangue. imaginava entupindo as fossas na rua, imaginava os ossos dos peixes enfileirados embaixo da cidade, desde trezentos anos atrás, uma camada branca embaixo dos prédios ou acamando o solo embaixo das águas.

depois de algumas semanas começou a notar que o cheiro do balde estava diferente. a própria cor, também, estava mais viscoso, escuro. já não conseguia distinguir bem o conteúdo dele, o que era o que, parecia que havia sido reduzido, até mesmo moído, quem sabe. o patrão também andava estranho e cada vez mais nervoso, cada vez mais mandão. talvez fosse seu olfato que estava se deformando, mas bastava um pulo nas barracas de plantas para reassegurar que estava tudo em ordem. o cheiro era pesado e a densidade aumentava. tinha dificuldade de levá-lo para fora, se livrar dele. assim, começou a deixá-lo cada vez mais próximo do mercado. quanto será que é um curso de sashimi? pensou e foi embora. de noite, comendo uma sopa e vendo o jornal em seu pequeno e aconchegante kitnet, viu no jornal que haviam encontrado um dedo perto do mercado público. haviam encontrado também, um anel de ouro, por perto, mas ninguém sabia se o dedo cabia no anel, se um dedo morto muda depois de um tempo, se havia alguma relação entre um e outro. alguns especialistas discutiam o tema, a rigidez pos mortem e aspectos de joalheria contemporânea. no outro dia, não foi trabalhar. não voltou mais. pensou em conseguir um emprego em um shopping, em um bairro desses recém formado, longe do centro, um local fechado. um local com ar-condicionado. de certa forma, o cheiro, agora mais do que nunca, seria difícil de escapá-lo. mas pelo menos não veria o rio. você sabe o que é um balde? lembrou do patrão dizendo. você não sabe?

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