Estavam na casa de Elvira, em seu quarto, tomando refrigerante e comendo salgadinhos.
Ana Clarice tinha falado que já tinha deixado uma agulha no
estojo da professora, e Inês admitiu, já tinha beijado, nas férias, um
menino que conheceu na praia, mas nenhuma acreditava na história, os elementos simplesmente não batiam.
A mãe de Elvira a obrigou convidar sua vizinha, Lúcia, para o pequeno evento e durante o tempo todo Elvira tutelava a menina com medo que estragasse sua pequena festa com as amigas. Detestava a pena que a mãe tinha por sua família, que a transferia para ela. Embora vizinhas eram famílias muito diferentes. A mãe trabalhava muito e criava duas filhas, sozinha, com a ajuda eventual dos avós, que tinha um certo dinheiro.
Eu matei um homem, disse Lúcia.
As meninas deram uma gargalhada de deboche.
Lúcia é muito magra e tem uma voz fina, como dos ursinhos de pelúcia que quando você os aperta, soltam frases pré-gravadas.
Elvira ficou morrendo de vergonha. Aquilo não servia nem de piada. Nem engraçado era.
Você não mataria nem um mosquito, disse Elvira, tentando trazer um ar cômico prolongado.
Um mosquito eu nunca matei. Mas um homem sim, insistiu ela, séria, enquanto metia a mão comprida na embalagem de petiscos de milho.
As meninas ainda não acreditando, começaram a fazer perguntas, para ver no que aquilo ia dar.
Como? Você o envenenou? Ou fez um pedido pro papai noel?
Eu dei um tiro. Eu não queria matar. Eu dei um tiro na perna dele. Mas havia uma artéria, disseram, uma veia, algo assim, muito importante. Ele sangrou e morreu. Não vi, fui embora antes.
Então, nesse momento, Lúcia puxou a manga e mostrou no pulso direito pequenas machas cinzas, pequenas bolinhas. Viu?, ela disse. Foi da pólvora. A arma era velha, não tava funcionando bem.
Nesse momento as meninas titubiaram. Lúcia começava a ficar cada vez mais estranha. Nesse ponto, era também, a única a comer e beber naquele quarto, como se nada tivesse acontecido. O tom de piada já havia se desfalecido e as meninas estavam agitadas. Elvira trouxe pizza e tentou amenizar colocando qualquer desenho bobo na televisão para elas verem, mas ninguém se importava.
Ana Clarice, nesse momento, levantou a voz e disse eu tirei a agulha. Eu botei a agulha mas eu tirei antes da professora voltar, eu achei errado, confessou chorando. A verdade é que a família dela não ia muito bem financeiramente, os pais temiam perder a casa, ela teria que sair do colégio privado, e rapidamente se deu conta de que a professora não tinha nada a ver com isso.
O restante das meninas em um gesto de solidariedade abraçaram a amiga e olharam para Lúcia, esperando que ela também desmentisse sua história, ou fizesse os ajustes necessários a fidelidade.
Eu matei um homem, disse Lúcia novamente, enquanto desenhava com lápis de cor. Olha, eu estava aqui, tá vendo? E apontou pro desenho, o gramado em volta da casa (Lúcia desenhava muito mal). Ele ia machucar minha irmã, ele entrou na casa, quando foi agarrá-la, dei um grito. Ele saiu, e voltou. Nesse momento eu já estava com a arma do meu avô, que ficava no cofre. Eu sei a senha do cofre, eu sei a senha de tudo naquela casa. Pedi para que fosse embora. Quando ele avançou eu atirei.
Minha mãe nunca soube direito o que aconteceu, nem a polícia, falou enquanto as meninas a olhavam sem piscar, mudas, em um misto de medo e admiração, a firmeza de Lúcia era de se invejar de tão natural e cristalina. Tem coisas que só as crianças sabem. Que só as crianças passam, só elas sabem, nem eu e minha irmã, disse largando os lápis e se aconchegando no colchão.
Elvira a este ponto já estava completamente devastada. Sua festa do pijama tinha sido um terror. Ao invés de vídeos de dança, gravações, fofocas de namoradinhos, de falar mal dos adultos e das meninas da outra turma, estavam ali em um clima de sepulcro, falando de morte, separação, problemas financeiros. Para não pior a situação, com medo que outra delas entrasse em um rompante de choro ou que Lúcia continuasse com suas besteiras, mentiu que a mãe tinha mandado desligar a luz e irem dormir, pois já era muito tarde. Nesse ponto, todas já estavam silenciosas como a madrugada mesmo.
Nos dias que se seguiram, várias amigas vieram falar com Elvira, em separado, para comentar sobre Lúcia. Queriam seu número, queriam dicas, queriam seu serviço. Cada uma tinha um problema diferente, mas muito parecido. Elvira começou a acreditar que a história era verdade. Mesmo se não fosse, as meninas acreditavam e agora a idolatravam. Mesmo se não fosse, Lúcia tinha aberto uma porta impossível de ser fechada, tinha se tornado uma espécie de mártir.
Elvira ligou para Lúcia e contou sobre as amigas.
Meus serviços? Disse ela. Acho que elas não compreenderam
muito bem, não é sobre mim. Tudo bem, também gostei de suas amigas, falou. Elvira não deixou escapar um que bom, um tanto entusiasmado.
Sexta-feira de noite, na sua
casa, logo depois da aula de spin de minha mãe, diga a elas para estarem lá. Começaremos o treinamento, complementou antes de desligar o telefone.
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