No dia em que meu patrão foi morto eu acendi um cigarro
naquela casa pela primeira vez. Puxei o tabaco do bolso, sentei na varanda,
enrolei o papel no metrônomo das nuvens daquele céu. Era um dia sem vento e
assim foi: sem vento meu cigarro. Inflei os pulmões como quem poderia, dentro
desse movimento, alargar as paredes daquela casa espaçosa, abrir o espaço,
daquela casa grande e vazia. Como se recolhe-se o espaço gigante da construção para dentro de meus pulmões. Eu poderia deixar o cigarro ainda aceso aqui, despretensiosamente, ao
lado dos jornais, da planta chinesa que mais parece uma estátua de espantalho,
ao lado da poltrona de cetim fino. Eu poderia botar fogo em tudo como quem
calmamente prepara a terra aos poucos, na rotação de cultura, para o próximo
inverno, o próximo ano, o primeiro passo que vem do futuro. Não havia nem
necessidade e nem vontade. Eu estava livre da vontade, completamente livre, sem
fazer nada.
O sangue quente de meu patrão esvaziava seus bolsos, seu
peito, seus dedos, e na minha impressão seria para sempre quente. O corpo sim,
sucumbe, enrijece, perde calor. O sangue esparramado não. Na minha imaginação
parece um cobertor, uma brisa de verão que como um bico de pássaro te arrepia o
pescoço em uma tarde rígida. Acariciei o cachorro, tirei os sapatos. Toquei o
chão frio, de pedra, fui caminhando pelos cômodos. Nada ali me parecia uma
casa. A decoração era impessoal, os objetos pareciam vir de qualquer lugar, era como
uma família falsa, uma fotografia animada de uma loja de decoração. Feia, muito
feia.
Por que eu era seu caseiro deveria saber de algumas coisas.
Eu senti há algumas semanas que algo aconteceria, porque sou suscetível a detalhes e sujeito a
pensamentos insistentes, mas não sabia o quê. Escutava algumas de suas
conversas enquanto arrumava as toalhas, dava recomendações para seus
cozinheiros de como deveria ser se café. Sou jovem e ele gosta da juventude
porque ela chama atenção. Tenho certeza que me achava belo e gostava de me ter
perto para imprevistos, para me exibir para seus convidados. Gostava de dizer,
que apesar de todas as circunstâncias da minha vida, eu era um estudante
universitário, gostava de contar minha história como se fosse uma gravata que
usava nas festas, exuberante, que o deixava como um ar voluntarioso em meio as
reuniões, como se as minhas conquistas, até elas, dele fossem. Eu não me
interessava por sua vida, sua óbvia pequena vida, tirava os olhos quando
entrava ali, e não o levava para casa. Não achei estranho quando saía de
madrugada. Não achei estranho quando começou a rir mais alto e a xingar como
mais vontade. Não achei estranho quando este novo grupo de homens começou a o
visitar mais frequentemente. Porque dele não achava nada, era ínfimo.
Há uns dias atrás, estava na padaria da esquina da minha
casa, antes de sair para a faculdade. Estava cansado e com o estômago
embrulhado como fico antes das provas. Foi o irmão do meu cunhado que me disse,
que o novo negócio aí, era do meu patrão. O novo negócio aí tava movimentado os
terrenos lá pra perto dos antigos terrenos da construtora Scalpin, que estava
em recuperação judicial. Imensos prédios residenciais que iriam para pessoas de
baixa renda, ainda puro esqueleto, com o tijolo cru se empoeirando no ar.
Estava na boca do povo, todos falavam sem dizer e insinuavam sem indicar. O
negócio aí era um drive thrue, perto do Morumbi. Mas um drive de luxo, como um
pequeno parque de diversões.
O carro entrava e no primeiro estande já recebia um coquetel
mesmo que não requeresse nada. Após, havia umas placas especificando o tipo de
requerimento que a pessoa desejasse. O tipo de encomenda. Havia três ilhas
prévias de pedido, encomendas de sexo, de dinheiro e surpresa. Na surpresa, que
ficava bem ao fim do pátio você poderia pedir qualquer coisa. Depois era só
pagar e escolher a forma de acompanhamento, ao vivo ou comprovação posterior.
Havia pessoas que iam apenas pelo coquetel, e alguns, que iam apenas pelo show:
tendas com telões que passavam as encomendas serem feitas ao vivo. Uma dessas
pessoas poderia simplesmente sair do shopping, tomar um uísque e requisitar o
assassinato do sócio de sua empresa ou de sua mulher, acabar com uma rixa
política, em um piscar de olhos. Poderia requisitar um incêndio criminoso em
uma fábrica de um concorrente ou fazer uma pequena brincadeira entre conhecidos,
tudo no bom humor. Forjar um assalto, um sequestro. Forjar uma batida da
polícia, dar aquele susto. Ou resolver um problema de forma anônima por trás do
vidro fumê, não se abstendo dos mínimos detalhes: data, hora, circunstância,
tipo de arma e forma utilizada.
Aqueles caras são doentes, disse o irmão de meu cunhado.
Alguns conhecidos dele tinham recebido ofertas de trabalho, alguns até
tentaram por alguns dias, mas sumiram em um piscar de olhos. Não aguentaram. Outros ficaram por
um tempo para roubar uma penca de coisa, munição, essas coisas, e até mesmo
dinheiro. Alguns desapareceram. É coisa dos caras, é coisa deles, não é de deus. Ele deu a entender que o negócio
poderia ser de família, e não por falta de oferta, muitas vezes, o irmão de meu
cunhado achava, que eles mesmo que faziam alguns dos trabalhos. Não é uma
questão de grana, eu disse e ele concordou. Meu patrão tem muito dinheiro, não
teria motivos para investir em algo assim por uma questão tão baixa como
dinheiro. Tão pequena.
Naquele dia dispensei todos os empregados. Fiquei olhando o mar, na altura do trigésimo segundo andar que dava de frente a ele. Os prédios me pareciam algo sem sentido. Uma pilha, a criação de um lugar suspenso em um lugar outro, um desespero de um lugar impossível. Suspensão. Não tinha medo de altura, desprezo talvez. Do alto reconhecemos a nós mesmos, tudo é sobre o medo. Ou seu fascínio, um gesto separado do mundo. Fazia horas que ele estava atrasado, tinha ido a Vitória para uma viagem com um vereador. Sabia que não voltaria. Terminei o cigarro e fui embora. Poderia pegar o que quisesse, ninguém daria falta. Não tinha parentes próximos. Mas nada me interessava a tal ponto, era tudo pedaços e uma caverna. Só servia a ele, a ele se esconder. Alguns dias depois, encontrei o irmão de meu cunhado novamente. As coisas estavam voltando ao normal, ele disse. Fecharam o negócio. Alguém encomendou a morte de um dos donos. Levavam o trabalho muito à sério, regra é regra. Depois, o restante dos sócios ficou com medo e botaram abaixo. Parece que eram bons no que faziam.
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