No dia 5 de julho de 1982 meu pai atravessa a avenida azenha a pé, atrasado para uma entrevista de emprego. Era verão e não estava acostumado ao uso da gravata. O colarinho apertava a garganta enquanto as mangas curtas, em contra-ponto, pareciam ter o poder de ampliar a intensidade do sol à pino. Um suor escorria denunciando seu corpo na calça cinza e fazendo os óculos resvalarem. O cheiro da colônia das roupas herdadas de meu avô, combinadas ao suor, o fazia sentir-se como um fantasma. Seu pai havia morrido há poucos meses, e mesmo assim, ainda tinha grande presença no curso de sua vida. A empresa de construção era de um amigo da família, aquelas promessas feitas entre conhecidos em leitos de morte. O emprego estava praticamente garantido, bastava apenas aparecer. No calor de porto alegre, o dilúvio, pequeno rio de esgoto que corta a cidade, anda muito devagar, preso pelo lixo, pela lisura, magro pela alta temperatura. Era como estar no estômago de um abutre, contava meu pai. O odor daquele dia. O rio de colônia, o calor do lixo. Nunca esqueceria este momento na vida inteira. Na passarela, uma senhora de idade o chamou. Ele não deu atenção. Ela foi atrás. Talvez pedisse ajuda, dinheiro ou outra coisa. Esta parte nos foi omitida. Ele parou de ignorá-la quando o chamou pelo nome. Seu corpo travou e ela rapidamente se aproximou e agarrou sua mao com os dedos pressionando fortemente o pulso, como quem busca algo. Meu pai a xingou, assustado. A mulher devolveu calmamente algumas palavras, em uma língua que ele não compreendia. Então veio a hora fatídica: Nuvens cinzas no pescoço. Tens a marca no fracasso na alma. Desde então, desde antes de eu ou meus irmão nascermos, desde antes de minha mãe o encontrar e ele a ela, estava, em sua mente, fadado a esta frase. Tudo seria consequência de uma costura maior traçado por um giz ardiloso. Era como acolher uma deus particular, odioso e pessoal, o local onde encontrou o avesso de sua solidão, a marca imaginária que tentou passar-nos por inércia.
Nas proximidades do mês de julho é possível encontrar meu pai enclausurado no depósito, ou abraçado em seu revólver, dentro do escritório. Silencioso e embriagado de uísque, a espera do retorno daquela mulher que ao longo dos anos virou sua confidente. Sua marca de especialidade, suas trevas particular. À espera de um tornado, um deslizamento de terra, uma catástrofe financeira, uma tragédia enigmática. O sofrimento é para os especiais. O que ele apenas parecia não perceber era que a pretensa maldição o havia lhe dado uma força oposta. A passividade e rendição aquelas palavras o deram uma estranha valentia. Por crença na falência era astuto em seu emprego, tomava as ações mais ousadas no escritório imobiliário, tinha o dom para jogatinas porque tinha certeza na perda. Por dar tudo por perdido, por acreditar estar condenado e não ter nada o que esperar além do prazer momentâneo a ser vociferado, jogou-se na visão de minha mãe no momento primeiro que a viu sem freios na língua. Era um domingo, um almoço de família da casa de vizinhos de um amigo de infância. Ele a viu pela grade e a achou bonita, lembrava uma revista que tinha na infância sobre uma princesa da pérsia. A história era sobre um rei que achava que tinha a roubado, mas na verdade, a mulher deixava-se constantemente ser levada e capturada, para a assim, o controlar. Meu pai, que estava em um encontro a dois na casa de Inácio, o amigo, abandonou a todos e cruzou a rua. Entrou na festa, comeu o frango assado, ajudou a servir o refrigerante, como se fosse da casa, e a encontrou perto do portão e disse me ofereço para ser seu marido, marque a hora. Minha mãe não riu e demorou um tanto para responder, o achou triste. Os olhos tristes, o nariz triste, como se esculpido em uma raiva cansada. Pelo menos, havia lhe perguntado as horas. Lhe consultado. Minha mãe viu isto como uma aposta na cumplicidade. Não havia problema com tristeza, a perda dos irmãos, do pai da casa. Tratava com isto em toda sua vida. Este era seu terreno. De certa forma o mais fascinante em meu pai naquele momento era ser um desconhecido. Seu elemento surpresa, a mesma presença irruptiva herdado do encontro messiânico. Sua natural certeza. Se era uma pergunta vinda do desespero ou da loucura, não saberia, o importante, era por certo, que era um enigma.
Ao longo dos anos não havia ocorrido nenhum grande episódico que desse conta da promessa.
Éramos uma família de classe média do bairro Parthenon, fazíamos viagens consecutivas à casa de campo e a à casa de praia, durante as férias de verão e de inverno. A primeira vez que me contaram esta história, minha mãe chorava depois de receber uma ligação da polícia. Meu pai, ela descobriria depois, sobrevieu sem nenhum arranhão. Ao carro foi decretado perda total. Mas antes disso, antes da ligação do real estado de saúde dele, minha mãe esbravejou em meio aos filhos, meu avô e seus irmãos, a história como ela embrava. A história de minha mãe é um pouco diferente. A mulher era uma cigana jovem e bonita, e pouco importava, na verdade, sua orgiem, cultura, descendência ou credo. O fato é que era uma mulher irresitível e, para ela, foi isso que feriu meu pai tão profundamente. O medo hipotético de ser mandado por uma mulher. Nessa versão, a cigana apareceu em seu bairro junto com a manhã e o seguiu até a avenida Azenha. Isto é comum em todas as versões. A avenida azenha sempre está lá, os carburador dos carros do final dos anos 80 a disel, o sussurro grudento dos resíduos do Dilúvio. A cada par de anos meu pai conta e reconta para ele mesmo o que se sucedeu, como um pescador, se lança a imagens. Numa, a mulher era uma senhora indígena muito antiga, noutra, uma mãe de santo. Em algumas ela o agarra pelo quadril, noutras, aponta a linha da vida ou delicadamente enfeitiça, carinhosamente, os dedos da mão a se abrirem.
Mas apesar desta característica presente em nossas gerações, o que poderia sim ter facilitado ou atiçado a imaginação de meu progenitor em se entranhar definitivamente neste episódio, levando à sério durante a vida como um pingente ao contrário, creio que aqui não fosse o caso de algo sobrenatural. O que de fato ocorreu naquele dia, se a senhora existiu, o que ela disse, que roupa vestia, pouco importa. É da juventude que estamos falando, este gigante campo de treino onde tudo é possível. Pouco importa quanto tempo estiveram juntos, que frases foram trocadas, quanto tempo durou. Meu pai nunca foi religioso ou fiel a nada a não ser esta imagem. Esta certeza era suficiente para tudo, sua pedra de toque. E o que importa sim, foi vê-lo desmanchando ao longo dos anos, dia a após dia, solitário em sua roda de repetição, em uma tristeza construída com esforço. Nada era suficiente. Os filhos, a mulher, as possíveis mulheres, o emprego. Não éramos ricos mas não nos faltava dinheiro, e meus irmãos poderiam sim ter ido a universidade particular, por exemplo, se assim quisessem, com depois eu fiz. Ao longo dos anos, depois de criar nós três, praticamente sozinha, minha mãe entrou na faculdade, estudou comércio exterior, abriu uma importadora de tapetes, e a relação que mantinha com meu pai era de profundo respeito, mas não era uma relação. Era quase que religiosa, uma devoção, muda, como fazemos em relação as imagens nos tempos. Meu pai foi parando de falar, até o dia em que parou completamente. Nesse dia pensávamos que faltava pouco para sua morte, mas pelo que parece, nós não herdamos os tons adivinhatórios de nossa linhagem. Ele parecia roçar a corda, querer, no fundo, encarar de frente aquela frase. Levar ao limite. À espera do desastre que não veio. De estar comprovadamente certo daquela bendita certeza.
Foi por esta época que meu irmão mais velho começou a ficar doente. Não sabíamos o que ele tinha. Dizia só isto, que estava doente, não conseguia comer, não conseguia dormir. Meu irmão só conseguiu alguma tranquilidade na vida, quando, com um amigo que conheceu em um curso de elétrica, foi trabalhar em uma fazenda, como peão. Não pelo dinheiro, mas pela tranquilidade. Ele dizia que a cidade não o deixava dormir. Eu, naquela época, sabia já o que era depressão. Sabia que meu irmão estava absorto de tristeza, de uma predatória ausência. Desconfiava que por ser mais velho, por ter vivido mais perto de nosso pai, sabia coisas que os outros irmãos não sabiam, e principalmente, tinha absorvido ou criado o medo de absorver, por herança, genética ou convivência, o mesmo mal de nosso pai. Mas nunca falamos disto, nunca falamos de muitas coisas. Escapou do jeito dele, assim como eu, do meu, e minha irmã, do seu.
Na manhã anterior ao falecimento de nosso pai, alguns anos depois de todos nós termos saído de casa, e com ele, acabado qualquer tipo de comunicação, entramos no quarto do hospital. O médico disse que tinha tido uma pequena melhora. Seus olhos estavam afundados no osso, sua mão estava firme, apesar do sistema de fluídos que o ligavam a máquina, parecia uma marionete. A primeira coisa que nos disse quando nos viu, entramos os três juntos, foi como está o céu lá fora, por favor, ele continuou, de que cor está o céu. Meu pai nunca foi muito bom com metáforas. Não havia o que lhe dizer.
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