um pouco antes de minha avó morrer tivemos um momento muito especial. havia surgido uma oportunidade e ir fazer faculdade em outro estado e por um temor da distância e do fato da idade começar a cada vez mais a trazer percalços, alguns sem volta, me veio a ideia. foi uma de nossas longas despedidas. minha avó sabia muito bem o quanto a vida é fulgaz, foi a pessoa que conheci com mais ciência disto. acho que sempre estivemos nos despedindo, eu e ela, parte por uma característica sua de lidar com os encontros. por isso sempre dizíamos tudo, na lábia, na cara dura, por aquela poder ser uma última vez, nunca nos despedíamos brigadas, o oposto, fazíamos questão de usar palavras doces antes de um bater de portas, uma arrancada de automóvel, e nos íamos, leves.
sabia que minha avó era a pessoa no mundo que eu mais podia confiar pois ela não tinha tempo. ou achava que não tinha. respeitava muito as situações, era muito organizada, levava sua agenda muito à sério. o diálogo era como um teatro, demarcado, uma tribuna. um fala, outro, escuto, cada qual na sua ordem. assim, a convidei para um momento só nós duas, dois dias antes de minha partida. queria saber de sua vida, suas opiniões, suas frustrações, tudo o que não sabia. cheguei com um caderno e um lápis muito bem apontado, me sentei a sua frente como uma repórter e ela deslanchou a falar. era como ouvir um fechamento de contas de uma empresa. uma multinacional. haviam cadernos, caixas, caixas em volta do tapete, com suas anotações, seus diários de anos. minha avó era muito formal e a entrevista no final virou muito mais como uma palestra. começou:
fiquei gripada 57 vezes na vida. em três vezes apenas, fui ao hospital. em duas tive filhos e na última coloquei uma prótese no quadril. não tirei o apêndice muito menos as amígdalas. conheci ao todo 23 países (se pensamos depois da união soviética), este número é de 57. depois dos anos noventa, da guerra da sérvia, 61. ao todo, que me lembre, vi 47 ditaduras surgirem e se desfaleceram. já vi uma pessoa morrer, assassinada, em minha frente. tinha seis anos. depois, vi mais oito pessoas morrerem, todas meus parentes, usualmente em casa, como era naquela época. tive três pais, ao todo, mas considero apenas dois. o biológico, nunca tive contato. morei em 14 casas diferentes, em três estados, dois países. tive 27 tipos de trabalhos diferentes. não terminei nenhuma faculdade. por três vezes pensei que queria ser médica e por quatro, advogada. aprendi a falar cinco línguas. fui no cartório 144 vezes. fiz 29 carteiras de identidades diferentes. tirei a carteira de motorista três vezes. declarei falência duas vezes. fugi quatro vezes ao todo. dos meus pais. do meu primeiro marido. de uma escola de francês e de uma pousada muito estranha que estive na alemanha. tive em torno de 50 amigos, mas hoje, considero apenas quatro. saí para ir ao teatro 77 vezes, para ir ao cinema 634 vezes. tive 63 entrevistas de emprego. mudei de cabelo cinco vezes na vida. quis ser homem uma vez só. confiei, no total, em três pessoas na vida. tive 98 encontros românticos. 122 vezes encontros quase-românticos. me apaixonei uma vez só. amei, seis vezes. a paixão é mais difícil. casei três. traí nove vezes. fui traída 21 vezes. menti muitas. nunca me arrependi do que falei errado apenas do que deixei de falar. não tive coragem cinco vezes. não respondi 56 cartas. me enganei muitas vezes, incontáveis. por 45 vezes parei de sonhar. por 34 anos tive o sonho recorrente, de um navio explodindo, entre a água e o fogo. por 12 anos eu não sonhei. por 1 ano e meio parei de falar completamente. fui a psicóloga 2 vezes. pensei em me matar 475 vezes. por quatro vezes pensei em como. tentei uma vez. já fui em 18 tipos de igrejas e templos diferentes. já acordei antes das quatro da manhã 1062 vezes. briguei com meus filhos 2349 vezes. desliguei 56 vezes na cara de alguém. faltei 23 vezes a um encontro. em 89 vezes deixei alguém esperando de propósito. por 9 vezes deixei de comer carne, por 5 vezes frutas, acho que era a depressão. cancelei 13 vezes a academia. tive 8 cachorros e 13 gatos. pensei ter visto fantasmas 67 vezes, a maioria entre na infância ou na velhice. por 9 vezes ajudei um desconhecido, largando tudo o que estava fazendo. fui demitida 3 vezes. fui deixada 4. deixei alguém 27 vezes. tive vontade de chorar, fruto da beleza, por 8 vezes na vida. a maioria em nascimentos e vocês, seus pais. mas também, quando voltei ao brasil pela primeira vez. e quando deixei a áustria, pela primeira vez. levei ao todo 489 choques. juro que em 3 vezes se não agisse rápido teria morrido vítima de um raio. achei que ia morrer 17 vezes na vida. obedeci a intuições estranhas 10 vezes, como parar na estrada e esperar passar quinze minutos até retornar ou ir embora de um restaurante mais cedo se alguém de nome Cláudio aparecesse, fui intempestiva 1783 vezes, do tipo, dar um beijo a um desconhecido. fiquei bêbada 7890 vezes. me arrependi, nenhuma. fui na taróloga em 18 ocasiões da minha vida. em terreiro, 45. em centro espírita 34. ganhei na raspadinha duas vezes e acertei o jogo do bicho 9. li 4893 livros. 102934 jornais. fiz chucrute 899 vezes e mocotó 454. parei de falar do nada com 31 pessoas. tive 8 cores favoritas. acreditei e desacreditei em signos 19 vezes. dei meu nome errado 47. transei com pessoas desconhecidas 8 vezes apenas. me filiei em 3 partidos e militei em 7. fiz campanha para quem não votei duas vezes. disse que tudo ia ficar bem sabendo que não ia 74435 vezes. fiz promessa 6 e cumpri em 1. perdoei 5 vezes, mas na verdade, duas. bati em 9 pessoas na vida. todas, revidando. me perdi 783 vezes. pedi perdão duas vezes. roubei no carteado 909 vezes, fui ao parque de diversão 13. usei uma desculpa esfarrapada para sair de um jantar 322 vezes. parei o carro em cima da faixa 209 vezes. fui presa uma vez, em um protesto do sindicato. escondi o choro 28877 vezes. não tive nada para comer 49 vezes. chorei de fome 14 vezes. de alegria 14 vezes. nunca chorei de saudade. nunca votei em alguém que não acreditasse. nunca me despedi com um palavrão. nunca fiquei onde não me senti bem vinda. nunca fui amada de lado porque nunca deixei me amarem de lado. nunca amei de lado. nunca toquei nenhum instrumento musical e embora tenha ido a paris quatro vezes nunca fui ao louvre. nunca esqueci o aniversário de alguém que já tinha decorado. nunca gostei de tirar fotografias nem de nada com nome de aipo ou nabo. nunca confiei em quem usa álcool para fazer uma fogueira ou quem bebe sua própria bebida em uma festa. nunca aprendi a dobrar guardanapo. nunca não tive medo, seria mentira. nunca desobedeci uma receita médica ou as indicações de um médium. nunca me arrependi.
- Está anotando? - disse ela, dando um gole no chá de melissa. - Logo em seguida, passaremos passaremos para a consulta as fontes, e em seguida, as fotos.
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