sábado, 13 de outubro de 2018

silêncio


Badú, acorda.

O cachorro me olha com olhos de tremelin. O mundo é a coreografia do corpo, diz o cachorro com a pelugem seca. A pelugem do cachorro cabe na minha garganta, caberia. Um longo corredor por baixo da terra.

Caminhamos.

As casas nos olham como se nós fóssemos os intrusos. Xespa late para os outros cães, que circulam de um lado a outro nos rondando. Late e se recolhe dentro de minhas pernas. Você não está protegido Xespa, nós não estamos protegidos juntos. Como explicar a Badú. Deveria ser difícil explicar a morte, o abandono. Tento convencê-la do oposto, da vida. Por que foram embora? Me pergunta. Seus dentinhos espaçados deixam a saliva cair no colo dos ombros, tem uma pulga do sol dentro dos dois olhos. Só fecham com muito cansaço. Cansaço é investimento.

Não sei, Bâ. Só foram. Antes de você nascer eu era criança. Essa rua era lotada de gente, tinha gente até quando chovia, no verão. No bairro, tinha mais gente do que quarto e até todo mundo parar de falar demorava, demorava, demorava. O dia começava cedo, já ouvia o barulho das correntes de bicicleta, das buzinas dos ônibus, da propaganda do gás, do vendedor de bananas que brigava com o vendedor de morango, o vendedor do atacado gritava tanto que perdia a voz cedinho. Em dia de jogo, fogos de artifício, gritos, ameaça de brigas, quase sempre só na ameaça. Então foram embora, quem conseguiu juntar dinheiro foi. Quem não conseguiu, ficou por aí. Teve um tempo onde faltava casa, sobrava gente. Hoje ninguém quer saber. As casas velhas ficam cada vez mais velhas, a terra é amarga, indesejada, como se inflamasse a vontade.

A cidade começou a ficar magra, magrinha. Primeiro foi o mato. Cresceu, em alguns lugares, até a barriga. Não se via os pés, era difícil correr para pegar o ônibus. Algumas ruas abriram grandes valas, que quando chovia, pareciam lagos nas pegadas dos gigantes. Tudo ficou mais difícil. Eu já estava grande, e tinha que ir a pé trabalhar. Os carros paravam de vir até aqui. Depois, os cabos começaram a desaparecer. Os cabos dos postes. Tinha pouquíssima região com luz. Ninguém repôs os postes que o vento derrubou. Ou os cabos levados. Muita gente voltou para o interior, comprou uma terra, começou a plantar. Os vizinhos disseram que a cidade tava amaldiçoada. Que só não vinha terremoto porque a geografia não permitia. Que era nosso dever devolver o lugar pros bichos.

Badú e eu entramos dentro de uma gigante casa. A porta está aberta, os objetos foram deixados para trás. Eu não tive coragem de dizer. Nos deixaram aqui para morrer. Para morrermos sós e ninguém se dar o trabalho de saber. Para não sermos vistos. Podemos entrar nas casas, pegar o que queremos, comer as frutas das árvores, das hortas. Mas não há empregos, ou promessas. Ficamos andando de um lado para o outro vendo as tinturas esmaecer, a frente das casas ruir, mas os monumentos continuarem, lembrando como as coisas eram antes.

Como cães, em círculos. Às vezes, colocamos fogo das residências, nos prédios, nas mata. E rezamos para que se alastre. Para que chegue lá. Nosso silêncio sonha com o fogo.

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