terça-feira, 25 de setembro de 2018

enchente

Renata me olhou no olho e disse             .

Renata não disse porque a interrompi antes. Foi eu quem falei:

Porque só o esquerdo? Porque me olha só no esquerdo?

Resgatou o doce tecido ouriçado da raiva. Aquela frase era uma isca. Eu sei ser uma isca sim. Uma isca do tamanho de um navio. Uma isca do tamanho do planeta. O monstro do lago nunca apareceu, o monstro pré-histórico nunca foi visto pois ninguém nunca forjou uma isca ao seu tamanho. Depois, balbuciada pelo anzol enroscado no céu da sua boca rara, afogou a cara nas mãos. Seu quartinho particular, remendos da infância no interior, o barulho dos brincos da avó,  quartinho do pânico enfeitado com várias tentativas de fotografar o sol. Mais relaxada, desbancou:

Não dá para olhar para os dois olhos de alguém. Simplesmente temos que escolher.

Você pode olhar um de cada vez e assim pode olhar para os dois. A ordem não importa. Mas que dá, dá sim.

Renata me conhece. Já viu o que posso fazer quando uma simples dobra do calendário não desmarca mais. Já me viu arrastar-me com essas próprias mãos pelas pregas de noite dessa cidade, já viu o que posso fazer se a mensagem falha de dentro da confissão. Era óbvio que me chamara ali, na beira de nosso rio, o rio que enlaça essa cidade que mal se suporta, um rio beira de estrada para a palpitação, a umidade, pois queria me contar algo importante. Poderia até mesmo Renata, agora eu a conhecendo, ter  com o próprio. Ter vindo com antecedência, desembolando sua dúvida no magnetismo da marolinha das ondas na borda da terra, escolhido um lugar agradável do Guaíba, onde as pedras conectam a areia e a água sem problema. Ter se confessado às águas, e surpreendente com suas ligações como só ela, convocado Oxum para desabafar, pedido sua ajuda, sua cooperação, a entidade desta turva água doce. O que eles teriam falado? Renata nunca contava o conteúdo de suas conversas com os seres mágicos, apenas indicava o encontro ter acontecido.

Por isso, implicava. Para ela não me contar. E falava do olho errado ao qual ela se dedicava, uma tentativa de despreparar a louça de sua fala tão bem equilibrada em casa, tentativas de devolver nossa porcelana, nossos pratos de barros feitos em nosso forno particular das noites de inverno, este pensamento tão bem arquitetado. Urgia por um tropeço.

Era o início da primavera, véspera das eleições em nossa cidade, estávamos no fim da segunda década do segundo milênio. As ruas estavam cobertas de papeis, ironicamente chamados santinhos, fotos de candidatos sorrindo desesperadamente. Em poucos dias os folhetos, os outdoors, iam perder o rosto para o sol revelando a verdadeira natureza de seus anúncios. Iam sobrar os números dos políticos, soltos, com suas caras de zumbi se prendendo a galochas, atropelando as bocas dos esgotos. Nossos amigos tinham ido embora ou estavam indo embora, e víamos o resultado do futuro entre nós: a cidade abandonando-se, o mato crescendo nas praças chegando até a altura das barrigas, as sinaleiras parando de funcionar, as marcas das pistas escorrendo seus desenhos, buracos aparecendo no meio das calçadas, faixas dos prédios pedindo socorro fazendo o vento ser visível por seu remelexo.

Agora era isso. Renata também. Renata também não mais aqui. Me chamou para a paisagem mais bonita que pode achar nesse lugar, uma onde não estamos. Há o sol. As nuvens. Um fiapo de mata atlântica nas ilhas do outro lado, na cidade do outro lado. E água. E usa essa elegância de nossa ausência contra mim, ou à favor de si, como quem quer que o outro entenda: há ainda beleza no mundo. Renata quer ir e me deixar sozinha com essa sua constatação.

Não há beleza se suportamos apenas de longe. Se suportamos. A beleza é insuportável.

Esse foi o tipo de coisa que me passou na cabeça em alguns minutos de silêncio depois de te-la deixado nervosa com minha brincadeira, ali perto do cais. O pior de tudo era como isso confirmava o que realmente achava de mim mesmo: uma armadilha com o peito no centro. Conheci Renata por uma foto de um amigo em comum. Por esse amigo cozinhar bem e lembrar do jeito engraçado de sua amiga espirrar toda vez que comia salsão. Mas não deixava de comer salsão. Nem gostava. De como este amigo está bem agora – mas teve um tempo onde você não acreditaria – teve de reaprender até mesmo a andar, foi depois do acidente com o antigo volvo, quem tem um volvo nos anos 2000, eu tinha até aquele dia, aquele muro, aquela noite que só acabava depois de algumas doses de cachaça. Renata, uma amiga que recém tinha voltado da Europa, o ajudou. Foi esta foto, foi seu rosto na foto, que me fez voltar a Porto Alegre. E isto não poderá saber, não poderei contar, não poderá entender meu riso carregado de pequenas pausas de nervosismo por completo.

Quando retornei, Marcelo, este amigo havia se ido. Não conhecia mais ninguém. Comprei uma motocicleta e dava voltas pela cidade tentando encontrar algum traço irreconhecível. De madrugada, colocava o que havia nos bolsos no tanque da gasolina, esperava a cidade ir dormir e me jogava pelas praias do Lami, do Guarujá, sendo caçada pela mordida quente do rio, o rio suava muito, sua longa coleira sutil de mal-cheiro, pois é afinal também ele nosso esgoto. O pior de nos, o que abandonamos, o que não assumimos e temos vergonha. Às vezes a gasolina acabava, tinha horas em Belém novo, e dormia embaixo de algum posto de gasolina, tem outros, perto de casa, e ia arrastando a moto devagarzinho até a grade de casa, com as calças na altura das canelas manchadas de óleo e graxa. Nesse tempo ainda dava para arranjar um emprego fácil, eu dava aula de pintura pra senhoras em um programa para idosos no centro cultural érico veríssimo, fazia entregas de moto nas horas que dava, trabalhava em uma cozinha quando chamavam, tirava fotos de casamentos quando lembravam que tinha uma câmera. E quando não estava fazendo algo deste tipo, me inscrevia sem pensar em qualquer curso gratuito ou barato que via pela frente para preencher o tempo, para desesperadamente aprender algo, como fazer massa em casa, como saber montar uma bicicleta do zero, como reconhecer peixes só de olhar, como fazer cerveja, como aprender a mexer com circuitos elétricos domésticos nível um, como fazer seu próprio site em uma semana,  como aprender a dançar sem saber dançar. Foi num desses que conheci Renata, essa é nossa versão conjunta, um curso de como fazer cosméticos com o que se tem em casa, como cuidar da pele como o que se tem na cozinha. Eu não tinha nada na cozinha, quase nada onde morava, não ligava para minha pele que já começara a dar sinais de cansaço. Quando a professora perguntou o que havia no meu armário, respondi apenas: óleo e açúcar. Podemos começar por aí.

De uma hora para outra, fazíamos tudo juntas. Pensávamos como fazer para ganhar dinheiro, deixávamos nossos cartões em empresas que nunca nos ligariam. Saíamos para beber, conversar com estranhos, embora estejam escassos nessa cidade, enrolávamos qualquer babaca que achasse que podia algo com a gente, íamos a festas, revendíamos bala e maconha quando conseguíamos comprar de muita boa qualidade. Nos acompanhávamos para decidir o que comer, pegar no sono, Renata tinha medo de dormir e acordar durante o estado de vigília, tinha medo de ficar tonta, de se assustar e cair. Um medo bobo. Às vezes, principalmente nos domingos de manhã, me contava um pouco desse lugar da Europa onde morou, pertinho da Florença, traços rápidos e mancos de memória, de uma outra vida, um outro país, onde por um tempo foi casada e achou ter tudo. Falava coisas isoladas, como uma árvore que lembrava a árvore de frente a sua casa, ou de como o norte e o sul da Itália tem uma relação oposta ao mar, um de medo e outro de fascínio. Quando cansávamos dos bares, das praças, dos restaurantes, dos ônibus, do mau humor da capital pegávamos um ônibus e íamos para Bagé, ficar por algum tempo na casa de sua família onde a mãe cresceu e hoje vazia. Olhávamos os cavalos, inflamávamos os olhos e narizes com as nuvens das churrasqueiras, do assado cozido no chão, vestíamos um tempo que não era nosso, que nunca poderia ser nosso, numa cidade que nos recebia de costas. Mas havia a casa, as fotografias antigas de seus avós e bisavós. Havia a gramática das portas com cupins e parafusos velhos rangendo, o som dos bichos no telhado fazendo ninho, o fogão de lenha ainda estava lá. Ficávamos no chão, sobre o pelego olhando os estalinhos da chama, lendo o jornal local, fingindo que conhecíamos todos os habitantes e seus terríveis segredos. Numa dessas noites foi que me beijou, antes de dormir, um beijo daqueles que parece chamado pelo cenário, ter vindo junto ao roteiro do campo, do fogo, do sono, do aconchego das cobertas, um beijo movido pela lógica das circunstâncias. Correspondi por algum tempo, protegendo todas as cores do carinho daquela ocasião. Mas logo, quando senti que o beijo ganhava vida própria, uma vida além de nós, interrompi, virei para o lado e tentei dormir. Era talvez o que mais desejasse no mundo. Mas quando olhei aquela fotografia soube que não teria como isso de ficarmos juntas algum dia. Eu a amava há muito tempo, e não sei quanto disto tinha a ver com ela. A amava muito e ela estava muito atrasada pela primeira vez na vida.

Estou te ouvindo, disse a ela. O sol começava a ir embora e na parte inferior do céu era como se assistíssemos a uma brasa doce, tentando pregar peças de que o fogo pode ser suave. Ela jogou uma pedra no rio e começou a contar que ia sair da cidade por um tempo. Precisava viajar, colocar a cabeça no lugar, primeiro arranjou um emprego temporário no Rio, e depois? Depois eu vejo.

O que é aquilo, perguntei.

Você vai mudar de assunto de novo?

Quando ela olhou para o lado havia uma garrafa de 5 litros de água sanitária.

Parou bem aqui do lado, o que isso quer dizer, tentei brincar.

Ao lado do meu pé, podia ver. Um brinquedo, um carrinho de plástico, e chegando mais perto, uma embalagem talvez de shampoo, e depois, apareceu um chinelo.

Não vai falar nada? Ela me encarou, dizendo.

Renata olhe para frente eu disse. Olhe. A água tinha se transformado em uma marcha de objetos, a água desapareceu e virou apenas pequenas ondinhas feitas de lixo. Não paravam de chegar coisas. Raquetes de tênis, embalagens de molho, pneus, bancos, bonés. Capas de livros, tábuas de plástico, muitas embalagens de chocolate, sacos de lixo, latas de refrigerante, absorventes velhos, mangueiras cortadas, ao longe o acúmulo só piorava.

Nos levantamos da beirada e subimos um pequeno morrinho.

De lá podíamos ver até perder de vista as águas sujas, inundas, balançando sem parar pedaços desprezíveis de dejetos. O lixo chegava e se acumulava na beira, fazendo uma pequena barricada entre a água e a fronteira com a cidade. Por um segundo, achei que a conversa de Renata com o rio tivesse algo a ver com isso. O rio devolvia nossa parte abandonada, o rio se limpava por vingança. Alucinei reconhecer naquelas águas provas de outra vida, que me denunciasse os lugares mais inóspitos da minha versão sobre mim mesma. O sofá da Avenida General Jardim, a roupa de cama que joguei em cima do carro de um ex-namorado com seus discos dentro, de reconhecer a cortina do apartamento da Fabrício Dias, em uma outra vida, quando decidi largar a faculdade e o dinheiro que chegava sempre contava histórias pela metade. Houve um breve momento onde lembrei o tipo de coisa da qual fugia quando saí de Porto Alegre pela primeira vez. O tipo de coisa que queria deixar aqui. Senti vergonha.

Era um pequeno medo de começarem a aparecer todo tipo de coisa, do rio devolver também nossos mortos. Aparecer pedaços de crânios rachados com marca de tiro ou lança, as roupas dos cadáveres, as algemas da Ilha do Presídio, ali do outro lado, as roupas do centro de tortura. Aparecer os esqueletos e eles não eram poucos, alguns muito recentes, recém lançados sobre as águas, das brigas entre os policiais e quem der na telha, nas brigas entre as facções, os grupos armados, os acertos de contas.

Essa é uma parte que ainda não falei. As pessoas estavam morrendo muito e podia-se facilmente comprar uma pistola. Homens matavam as esposas por um assado mal feito, namorados matavam namoradas como um ritual de passagem, as transações entre gangues viravam chacinas em festas de fim de ano, em festas de família. Matava-se em fila indiana, como coreografia, matava-se fazendo um cordão, por preguiça de matar um por um, matava-se colocando todo mundo no chão e atirado de uma só vez. Lembrei de um documentário sobre o fim da Comuna anarquista de 1871 que só terminou pois o sangue era tanto que o sistema de esgoto não dava conta, então, o vermelho voltava e se acumulava nas ruas de Paris como um segundo Sena. Era necessário algum lugar para colocar estes mortos, era este talvez o lugar que mais olhávamos todo o dia. Nossos mortos um cartão postal.

Se o rio se limpasse talvez poderíamos morar nele pensei. Mas, pode ser que nunca ninguém pudesse chegar perto dele de novo sem perigo a vista depois deste recado. Havia algo que me deibou emocionada nisso, ao perceber as pequenas montanhas de rejeitos. É tudo nosso eu disse, é um resumo feroz. Renata me abraçou enquanto a noite chegava e os rejeitos cobriam completamente a orla. Renata iria embora e isso era bom. Eu precisava ficar, precisava entender o que estava acontecendo. Olhar como fósseis aquelas embalagens, havia um crime em curso. Nossa cidade capotava sem parar, até os prédios se desmanchavam e vinham ao chão. Até o rio estava consternado, amarrotado. Eu tinha dó do lixo, queria guarda-lo, resgata-lo dar uma outra vida. Meu lugar era nessa sujeira, minha sujeira.

No outro dia ficamos sabendo que a prefeitura havia feito um contrato por debaixo dos planos de exportar lixo de outras cidades e até mesmo outros países para nossos aterros sanitários. Como se houvessem aterros suficientes. A ideia era largar os rejeitos nas ilhas a margem do rio, dar um jeito, em troca de um dinheiro não contabilizado pelas vias legais. Essa era a reposta mais simples e mais real aquilo tudo. Talvez o rio já estivesse morto há muito tempo, sem qualquer capacidade de reagir. Talvez não tenhamos essa capacidade de saber se algo está vivo, pode ser que se perdera há muito. Aquele lixo nem ao menos era o nosso lixo. Mesmo assim, o rio era uma outra coisa para mim. Eu podia o ver desde do fundo até a superfície. Recordo das fotos da grande enchente de Porto Alegre, em 1941. As barreiras de contenção surgiram naquele momento, inúteis, suas águas avançaram até o Mercado Público, destruíram ruas os prédios. Era pelo rio que eu haveria de ficar.

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