- Chega aqui, vai!
O muleque desceu os corredores nervosos, chacolhando a perna no mesmo treme-treme do corrimão bambo, no mesmo piso do chão que treme, o prédio todo parecia que vivia assim. Balançava, nem caravela daquelas antigas, para um lado, Barco Viking do Parque de diversões. Havia, ou parecia haver, uma conexão direta entre a terra e quem morava na ocupação. Cada tremor, as cavalarias na rua, os caminhões de carga pesada, as sirenes dos bombeiros, refletia em todo o prédio, fazendo qualquer armário ou copo de vidro mensageiro. Foram mais de uma dúzia de andares que ele despencou, sacolejando as pernas. O outro tava esperando na frente, pousado num sorriso largo. Tava sempre sorrindo, cara de maluco, tava sempre sorrindo não fazia sentido. Nem o nome daquele bairro Luz.
Antes era um grande pântano, alagava, um lamaçal como passagem entre dois mundos, era o guararepe, mata em terra molhada para os tupis. Depois um tal de Luís, um carvoeiro que trabalhava extraindo carvão para o fogo, a queima ou a devastação, construiu uma capelinha em homenagem a Nossa Senhora da Luz. Então veio o café, e o lugar ficou chique. Abriram estradas, ferrovias, rodoviárias, para a extração de café do porto de santos e a chegada dos imigrantes e os operários que mal ou bem construíram esta cidade. Os casarões da elite cafeeira esmolam por olhares em torno do parque. Como a água e a mata, a seca e a inudação, o bairrou afundo e voltou algumas quantas vezes. Voltou dos mortos. A capelinha não existe mais mas parte do restou ficou. A estação da luz ainda é um grande linha de trem. E a cada penca de anos, misteriosamente, pega fogo e é reformada. Isto é algo de nossa cidade. As coisas pegam fogo. Da onde? O fogo não se explica. Não tem início. Limpa até a morte. O fogo é como um deus embora sejamos uma nação de cristãos de primeira ordem. Ninguém quer acreditar que alguém o possui.
Eles passam primeiro pela calçada do antigo museu de belas artes e uma grade os separa de uma moça. – Do you have Money Darlin? Diz um deles? – Do you? Os menino vão jogar umas pelota ali na Aurora. Ontem mesmo serviço social passou, deixou coisa, ouviram, cobertor e umas roupas. Os cara do serviço até que se aparecem por aqui de vez em quando, puxam conversa, querem saber muitas coisa e vão embora. Os menino ficaram sabendo dum cara que descolo videogame, mas o muleque não quer ir não. Qué mesmo é ir ali no parque, desviar dos vigias, trepa nas árvore. Tem muita jaca agora, jaca pra todo lado. O muleque puxa o outro pela camisa, o amigo dá um grito mas cede. O muleque ri.
Ninguém sabe o nome dele. Mas sabe que tá sempre ali e todo mundo o conhece. Parece que nem dorme, fica virado, andando por ai. Às vezes dá uma mão no buteco do Antonio, varre o lugar. Às vezes ajuda a Nice com as caixa de ovos, na loja. É como se ele mesmo fosse o dono daquela parte da luz, e embora não fale quase nada, parece muito faladeiro com aquela boca esgarçada e duas covinhas enterradas, remando num riso sem fim, gargalhando de forma quase religiosa de frente as mínimas coisas sem importância como se visse algo que ninguém via. Ou fosse só maluco mesmo. O pessoal tudo gosta dele e na verdade, ele levanta o astral por ali. Sempre disposto a ajudar, sem nenhuma vocação pra violência, com um sorriso gostoso, bom de tá perto.
Todo dia se encontram por ali mesmo. Um grita da rua, o outro desce, ficam bandeando entre os carros. Quando tá quente se metem na fonte da república, quando tá frio, se metem no meio de um cineminha de marmanjo que o pessoal de um teatro popular descola perto dali mesmo. O amigo é mais extrovertido. Gosta de falar tudo que lembra. Conta das brigas com o irmão mais velho que fica cada dia mais chato, dos dias da escola, das brincadeiras no recreio. O muleque não estuda faz tempo, não tem como saber. De vez em quando aparece alguém da prefeitura e pergunta da mãe, da avó, do pai. Cê sabe lê rapaiz? Onde tá sua família, é de São Paulo mesmo? Ficam enchendo o menino de pergunta, em vão, depois deixam comida. Mas nem isso ele colabora. Com as duas mãozinha empurra o sanduíche, a marmita de feijão.
O muleque é magro nem um poste. Acontece seguido também de um pessoal de fora da cidade encontrar ele na rua, perto ali do Museu de Belas Artes, e tentar pagar um salgado, um cachorro quente, o que é raro pro resto do pessoal. Mesmo calado é um garoto afetuoso. O muleque tá sempre ranhento, sujo, e ainda cheira muito mal. Fica dias com a mesma roupa, deve achar umas por aí, e troca depois da insistência do amigo. Mas mesmo assim, nada que impeça, tem alguma coisa nele, as pessoas querem ajudar, mas não muito é claro. Ninguém realmente vai atrás das gente que botaram o gurizinho no mundo, ou levam pra algum abrigo, ou colocam dentro de casa. Todo mundo só quer ficar ali perto um tantinho talvez pra recarregar as energias, ele é solar mesmo, dá uma esperança sabe, pra não se sentir tão mal de ver uma criança na rua e ser uma merda de pessoa. Só quer oferecer uma lasquinha, para não importunar sua própria vida. É como se o muleque tivesse como pais era ali mesmo, aquele bairro, é como se eles fossem meio a mesma coisa, e, assim estivesse protegido por todos.
Os menino encontraram uma bola de tênis, provavelmente dos corenaos que jogam numas quadras ali perto todo domingo. Tão há três semanas sem parar na mesma brincadeira. Ficam dando tapão nela no muro do prédio, e se um perde no jogo, o outro tem que pagar uma prenda ou algo assim. O barulho da bola ecoa pelos apartamentos, todos ficam zangados, gritam das sacadas. O amigo xinga de volta, o muleque parece que tosse de tanto que ri, parece que a piada virou doença, e é incontrolável, está fora de si. Se baba todo e aperta a barriga, toda dolorida. Quando a mãe do amigo do muleque chama ele pra comer, porque é o jeito de trazer o filho pra casa, que não desgruda do outro, o muleque nem quê sabe. Fica na rua mesmo, nem sobe. O amigo às vezes trazia um pouco do especial da mãe, bisteca com batata, mas o muleque nem olhava. Teve uma vez tentou até colocar na boca depois do outro insistir muito, mas passou mal, só não vomitou porque não tinha nada na barriga. Fez um som meio mecânico com a garganta, e ali já não ria, apenas os olhos ficavam como pia entupida. Depois disso parou de trazer alimento, de tentar fazer ele comer. Se preocupa com ele, mas também nunca o viu daquele jeito.
Mesmo ajudando a Maria no restaurante, levando o lixo pra fora, sempre tão solícito, correndo atrás do caminhão de gás pra chamar um pro estabelecimento, ela mesmo parece nunca ter se tocado. O menino não come. Até ofereceu algumas vezes, a comida sobra, ou vai pro lixo, ou alguém come. Ela tentou dar para o muleque comer ou levar para alguém, ele não queria nem tocar na sacola. Parece fraquinho apesar de tudo, dá dó. Mas tá sempre aí, correndo, pulando muro, de ajudante pra lá e pra cá, fazendo gol, brincando de polícia e ladrão, juntando o lixo da rua pra não ficar pior do que já é. Não tem porque se preocupar. Tinha muita energia. O pivete sabe se cuidar, já é homi.
Eles tavam aqui na frente da loja. Tinham roubado um cone de trânsito de um estacionamento. A brincadeira agora era quem conseguia acertar o cone com mais distância. Gostava de olhar pra eles, é pura nostalgia de cara velho. É um alento a liberdade dos dois, no meio daquela nuvem de poluição, do cheiro de merda viva da ponte e do viaduto, onde o pessoal que usava craque gostava de presentear, entre as frequentes brigas nos bordeis e cabereiros, os gritos dos bêbados ao meio dia e as batidas da polícia, ver os dois nem aí pra aquilo tudo. Recortando a rua, nem aí pros carros, como se fossem embatíveis. Falando, nem aí pro volume dos helicópertos soterrando suas palavras. Dava uma leveza, como se eles se divertissem pra gente também.
O amigo dele jogou a bola e ela bateu uma estação da polícia, em formato de trailer que tinha ali, depois, foi parar dentro de um cercadinho que protegia o monumento ao General Osório. Ele correu pra ir buscar, mas o muleque segurou ele, vou eu, grito, boquiaberto, em um idioma que só quem o ve frequentemente entende. O muleque saiu gritando em disparada, atravessou o sinal aberto, pulou por cima do capô de um cidadão, e irritou as polícias que já tavam perdendo a paciência depois da bolada, mesmo conhecendo sempre de vista o menino. O amigo tinha medo que outros guri pegassem a bola antes deles, corre rapá, falou, vambora! O muleque à jato chegou ali na praça e com muita distreza pulo sem pensar o cercadinho, se agachou e pegou a bola. Levantou sorridente, com aquela gargalhada contínua e incessante, olhou pro amigo e caiu. Ficou ali no chão uns segundos, dali a pouco foi o amigo dele, e eu mesmo, que via tudo ali de canto, corremos pra ver o que tinha acontecido, achando estranho. Podia ser uma brincadeira do muleque, mas não era disso, não tinha esse tipo de safadeza. Talvez tivesse escorregado, batido a cabeça no degrau do suporte da estátua, vai saber. Uma pequena multidão se juntou em volta dele, e quando também cheguei, parecia bem embora não conseguisse se levantar. Ele ria, mas fazia menos barulho, como se tivesse se ar, segurava a bola e dava risada.
Então alguém fez o que se faz nessas situações, e o trouxe água. Mas o muleque não quis, e mesmo se bebesse ela ia se cuspir todo, a gargalhada parecia trabalhar de forma maior, mecânica e incontrolável. Dava pra ver os ossos saltados do quadris e os dedos finos, os calcanhares pontudos. De perto, era um milagre aquele corpo ainda funcionar. Alguém tentou trazer algo pra ele comer, o que se faz nessas situações, pra ficar fortinho, vai que falta açúcar, vai que falta sal, mas o menino não queria comer nem a pau, empurrando e todo jeito. Aos poucos o pessoal entendeu que o muleque não devia comer há muito tempo, que ele caiu mesmo foi por causa disso. Alguém chamou a ambulância pra aplicar soro ou alguma coisa e ela demorou uns dez minutos, chegou foi, até que rápido. Mas nesses dez minutos, o muleque mesmo sem força alguma, com os tecidos murchos, parecia usar toda energia que restava naquele riso espichado, que parecia até maior. Ria alto, e parecia, ria da gente. Ria daquilo, daquela situação. Não sei do que ria. Foi assustador. A gargalhada foi diminuíndo aos poucos até parar, e quando parou ele estava morto. Os paramédicos não podiam fazer nada, e nós só olhávamos em silêncio seu corpo deformado e sem vida, ainda com o semblante do riso marcado no rosto.
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