sábado, 13 de outubro de 2018

silêncio


Badú, acorda.

O cachorro me olha com olhos de tremelin. O mundo é a coreografia do corpo, diz o cachorro com a pelugem seca. A pelugem do cachorro cabe na minha garganta, caberia. Um longo corredor por baixo da terra.

Caminhamos.

As casas nos olham como se nós fóssemos os intrusos. Xespa late para os outros cães, que circulam de um lado a outro nos rondando. Late e se recolhe dentro de minhas pernas. Você não está protegido Xespa, nós não estamos protegidos juntos. Como explicar a Badú. Deveria ser difícil explicar a morte, o abandono. Tento convencê-la do oposto, da vida. Por que foram embora? Me pergunta. Seus dentinhos espaçados deixam a saliva cair no colo dos ombros, tem uma pulga do sol dentro dos dois olhos. Só fecham com muito cansaço. Cansaço é investimento.

Não sei, Bâ. Só foram. Antes de você nascer eu era criança. Essa rua era lotada de gente, tinha gente até quando chovia, no verão. No bairro, tinha mais gente do que quarto e até todo mundo parar de falar demorava, demorava, demorava. O dia começava cedo, já ouvia o barulho das correntes de bicicleta, das buzinas dos ônibus, da propaganda do gás, do vendedor de bananas que brigava com o vendedor de morango, o vendedor do atacado gritava tanto que perdia a voz cedinho. Em dia de jogo, fogos de artifício, gritos, ameaça de brigas, quase sempre só na ameaça. Então foram embora, quem conseguiu juntar dinheiro foi. Quem não conseguiu, ficou por aí. Teve um tempo onde faltava casa, sobrava gente. Hoje ninguém quer saber. As casas velhas ficam cada vez mais velhas, a terra é amarga, indesejada, como se inflamasse a vontade.

A cidade começou a ficar magra, magrinha. Primeiro foi o mato. Cresceu, em alguns lugares, até a barriga. Não se via os pés, era difícil correr para pegar o ônibus. Algumas ruas abriram grandes valas, que quando chovia, pareciam lagos nas pegadas dos gigantes. Tudo ficou mais difícil. Eu já estava grande, e tinha que ir a pé trabalhar. Os carros paravam de vir até aqui. Depois, os cabos começaram a desaparecer. Os cabos dos postes. Tinha pouquíssima região com luz. Ninguém repôs os postes que o vento derrubou. Ou os cabos levados. Muita gente voltou para o interior, comprou uma terra, começou a plantar. Os vizinhos disseram que a cidade tava amaldiçoada. Que só não vinha terremoto porque a geografia não permitia. Que era nosso dever devolver o lugar pros bichos.

Badú e eu entramos dentro de uma gigante casa. A porta está aberta, os objetos foram deixados para trás. Eu não tive coragem de dizer. Nos deixaram aqui para morrer. Para morrermos sós e ninguém se dar o trabalho de saber. Para não sermos vistos. Podemos entrar nas casas, pegar o que queremos, comer as frutas das árvores, das hortas. Mas não há empregos, ou promessas. Ficamos andando de um lado para o outro vendo as tinturas esmaecer, a frente das casas ruir, mas os monumentos continuarem, lembrando como as coisas eram antes.

Como cães, em círculos. Às vezes, colocamos fogo das residências, nos prédios, nas mata. E rezamos para que se alastre. Para que chegue lá. Nosso silêncio sonha com o fogo.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

enchente

Renata me olhou no olho e disse             .

Renata não disse porque a interrompi antes. Foi eu quem falei:

Porque só o esquerdo? Porque me olha só no esquerdo?

Resgatou o doce tecido ouriçado da raiva. Aquela frase era uma isca. Eu sei ser uma isca sim. Uma isca do tamanho de um navio. Uma isca do tamanho do planeta. O monstro do lago nunca apareceu, o monstro pré-histórico nunca foi visto pois ninguém nunca forjou uma isca ao seu tamanho. Depois, balbuciada pelo anzol enroscado no céu da sua boca rara, afogou a cara nas mãos. Seu quartinho particular, remendos da infância no interior, o barulho dos brincos da avó,  quartinho do pânico enfeitado com várias tentativas de fotografar o sol. Mais relaxada, desbancou:

Não dá para olhar para os dois olhos de alguém. Simplesmente temos que escolher.

Você pode olhar um de cada vez e assim pode olhar para os dois. A ordem não importa. Mas que dá, dá sim.

Renata me conhece. Já viu o que posso fazer quando uma simples dobra do calendário não desmarca mais. Já me viu arrastar-me com essas próprias mãos pelas pregas de noite dessa cidade, já viu o que posso fazer se a mensagem falha de dentro da confissão. Era óbvio que me chamara ali, na beira de nosso rio, o rio que enlaça essa cidade que mal se suporta, um rio beira de estrada para a palpitação, a umidade, pois queria me contar algo importante. Poderia até mesmo Renata, agora eu a conhecendo, ter  com o próprio. Ter vindo com antecedência, desembolando sua dúvida no magnetismo da marolinha das ondas na borda da terra, escolhido um lugar agradável do Guaíba, onde as pedras conectam a areia e a água sem problema. Ter se confessado às águas, e surpreendente com suas ligações como só ela, convocado Oxum para desabafar, pedido sua ajuda, sua cooperação, a entidade desta turva água doce. O que eles teriam falado? Renata nunca contava o conteúdo de suas conversas com os seres mágicos, apenas indicava o encontro ter acontecido.

Por isso, implicava. Para ela não me contar. E falava do olho errado ao qual ela se dedicava, uma tentativa de despreparar a louça de sua fala tão bem equilibrada em casa, tentativas de devolver nossa porcelana, nossos pratos de barros feitos em nosso forno particular das noites de inverno, este pensamento tão bem arquitetado. Urgia por um tropeço.

Era o início da primavera, véspera das eleições em nossa cidade, estávamos no fim da segunda década do segundo milênio. As ruas estavam cobertas de papeis, ironicamente chamados santinhos, fotos de candidatos sorrindo desesperadamente. Em poucos dias os folhetos, os outdoors, iam perder o rosto para o sol revelando a verdadeira natureza de seus anúncios. Iam sobrar os números dos políticos, soltos, com suas caras de zumbi se prendendo a galochas, atropelando as bocas dos esgotos. Nossos amigos tinham ido embora ou estavam indo embora, e víamos o resultado do futuro entre nós: a cidade abandonando-se, o mato crescendo nas praças chegando até a altura das barrigas, as sinaleiras parando de funcionar, as marcas das pistas escorrendo seus desenhos, buracos aparecendo no meio das calçadas, faixas dos prédios pedindo socorro fazendo o vento ser visível por seu remelexo.

Agora era isso. Renata também. Renata também não mais aqui. Me chamou para a paisagem mais bonita que pode achar nesse lugar, uma onde não estamos. Há o sol. As nuvens. Um fiapo de mata atlântica nas ilhas do outro lado, na cidade do outro lado. E água. E usa essa elegância de nossa ausência contra mim, ou à favor de si, como quem quer que o outro entenda: há ainda beleza no mundo. Renata quer ir e me deixar sozinha com essa sua constatação.

Não há beleza se suportamos apenas de longe. Se suportamos. A beleza é insuportável.

Esse foi o tipo de coisa que me passou na cabeça em alguns minutos de silêncio depois de te-la deixado nervosa com minha brincadeira, ali perto do cais. O pior de tudo era como isso confirmava o que realmente achava de mim mesmo: uma armadilha com o peito no centro. Conheci Renata por uma foto de um amigo em comum. Por esse amigo cozinhar bem e lembrar do jeito engraçado de sua amiga espirrar toda vez que comia salsão. Mas não deixava de comer salsão. Nem gostava. De como este amigo está bem agora – mas teve um tempo onde você não acreditaria – teve de reaprender até mesmo a andar, foi depois do acidente com o antigo volvo, quem tem um volvo nos anos 2000, eu tinha até aquele dia, aquele muro, aquela noite que só acabava depois de algumas doses de cachaça. Renata, uma amiga que recém tinha voltado da Europa, o ajudou. Foi esta foto, foi seu rosto na foto, que me fez voltar a Porto Alegre. E isto não poderá saber, não poderei contar, não poderá entender meu riso carregado de pequenas pausas de nervosismo por completo.

Quando retornei, Marcelo, este amigo havia se ido. Não conhecia mais ninguém. Comprei uma motocicleta e dava voltas pela cidade tentando encontrar algum traço irreconhecível. De madrugada, colocava o que havia nos bolsos no tanque da gasolina, esperava a cidade ir dormir e me jogava pelas praias do Lami, do Guarujá, sendo caçada pela mordida quente do rio, o rio suava muito, sua longa coleira sutil de mal-cheiro, pois é afinal também ele nosso esgoto. O pior de nos, o que abandonamos, o que não assumimos e temos vergonha. Às vezes a gasolina acabava, tinha horas em Belém novo, e dormia embaixo de algum posto de gasolina, tem outros, perto de casa, e ia arrastando a moto devagarzinho até a grade de casa, com as calças na altura das canelas manchadas de óleo e graxa. Nesse tempo ainda dava para arranjar um emprego fácil, eu dava aula de pintura pra senhoras em um programa para idosos no centro cultural érico veríssimo, fazia entregas de moto nas horas que dava, trabalhava em uma cozinha quando chamavam, tirava fotos de casamentos quando lembravam que tinha uma câmera. E quando não estava fazendo algo deste tipo, me inscrevia sem pensar em qualquer curso gratuito ou barato que via pela frente para preencher o tempo, para desesperadamente aprender algo, como fazer massa em casa, como saber montar uma bicicleta do zero, como reconhecer peixes só de olhar, como fazer cerveja, como aprender a mexer com circuitos elétricos domésticos nível um, como fazer seu próprio site em uma semana,  como aprender a dançar sem saber dançar. Foi num desses que conheci Renata, essa é nossa versão conjunta, um curso de como fazer cosméticos com o que se tem em casa, como cuidar da pele como o que se tem na cozinha. Eu não tinha nada na cozinha, quase nada onde morava, não ligava para minha pele que já começara a dar sinais de cansaço. Quando a professora perguntou o que havia no meu armário, respondi apenas: óleo e açúcar. Podemos começar por aí.

De uma hora para outra, fazíamos tudo juntas. Pensávamos como fazer para ganhar dinheiro, deixávamos nossos cartões em empresas que nunca nos ligariam. Saíamos para beber, conversar com estranhos, embora estejam escassos nessa cidade, enrolávamos qualquer babaca que achasse que podia algo com a gente, íamos a festas, revendíamos bala e maconha quando conseguíamos comprar de muita boa qualidade. Nos acompanhávamos para decidir o que comer, pegar no sono, Renata tinha medo de dormir e acordar durante o estado de vigília, tinha medo de ficar tonta, de se assustar e cair. Um medo bobo. Às vezes, principalmente nos domingos de manhã, me contava um pouco desse lugar da Europa onde morou, pertinho da Florença, traços rápidos e mancos de memória, de uma outra vida, um outro país, onde por um tempo foi casada e achou ter tudo. Falava coisas isoladas, como uma árvore que lembrava a árvore de frente a sua casa, ou de como o norte e o sul da Itália tem uma relação oposta ao mar, um de medo e outro de fascínio. Quando cansávamos dos bares, das praças, dos restaurantes, dos ônibus, do mau humor da capital pegávamos um ônibus e íamos para Bagé, ficar por algum tempo na casa de sua família onde a mãe cresceu e hoje vazia. Olhávamos os cavalos, inflamávamos os olhos e narizes com as nuvens das churrasqueiras, do assado cozido no chão, vestíamos um tempo que não era nosso, que nunca poderia ser nosso, numa cidade que nos recebia de costas. Mas havia a casa, as fotografias antigas de seus avós e bisavós. Havia a gramática das portas com cupins e parafusos velhos rangendo, o som dos bichos no telhado fazendo ninho, o fogão de lenha ainda estava lá. Ficávamos no chão, sobre o pelego olhando os estalinhos da chama, lendo o jornal local, fingindo que conhecíamos todos os habitantes e seus terríveis segredos. Numa dessas noites foi que me beijou, antes de dormir, um beijo daqueles que parece chamado pelo cenário, ter vindo junto ao roteiro do campo, do fogo, do sono, do aconchego das cobertas, um beijo movido pela lógica das circunstâncias. Correspondi por algum tempo, protegendo todas as cores do carinho daquela ocasião. Mas logo, quando senti que o beijo ganhava vida própria, uma vida além de nós, interrompi, virei para o lado e tentei dormir. Era talvez o que mais desejasse no mundo. Mas quando olhei aquela fotografia soube que não teria como isso de ficarmos juntas algum dia. Eu a amava há muito tempo, e não sei quanto disto tinha a ver com ela. A amava muito e ela estava muito atrasada pela primeira vez na vida.

Estou te ouvindo, disse a ela. O sol começava a ir embora e na parte inferior do céu era como se assistíssemos a uma brasa doce, tentando pregar peças de que o fogo pode ser suave. Ela jogou uma pedra no rio e começou a contar que ia sair da cidade por um tempo. Precisava viajar, colocar a cabeça no lugar, primeiro arranjou um emprego temporário no Rio, e depois? Depois eu vejo.

O que é aquilo, perguntei.

Você vai mudar de assunto de novo?

Quando ela olhou para o lado havia uma garrafa de 5 litros de água sanitária.

Parou bem aqui do lado, o que isso quer dizer, tentei brincar.

Ao lado do meu pé, podia ver. Um brinquedo, um carrinho de plástico, e chegando mais perto, uma embalagem talvez de shampoo, e depois, apareceu um chinelo.

Não vai falar nada? Ela me encarou, dizendo.

Renata olhe para frente eu disse. Olhe. A água tinha se transformado em uma marcha de objetos, a água desapareceu e virou apenas pequenas ondinhas feitas de lixo. Não paravam de chegar coisas. Raquetes de tênis, embalagens de molho, pneus, bancos, bonés. Capas de livros, tábuas de plástico, muitas embalagens de chocolate, sacos de lixo, latas de refrigerante, absorventes velhos, mangueiras cortadas, ao longe o acúmulo só piorava.

Nos levantamos da beirada e subimos um pequeno morrinho.

De lá podíamos ver até perder de vista as águas sujas, inundas, balançando sem parar pedaços desprezíveis de dejetos. O lixo chegava e se acumulava na beira, fazendo uma pequena barricada entre a água e a fronteira com a cidade. Por um segundo, achei que a conversa de Renata com o rio tivesse algo a ver com isso. O rio devolvia nossa parte abandonada, o rio se limpava por vingança. Alucinei reconhecer naquelas águas provas de outra vida, que me denunciasse os lugares mais inóspitos da minha versão sobre mim mesma. O sofá da Avenida General Jardim, a roupa de cama que joguei em cima do carro de um ex-namorado com seus discos dentro, de reconhecer a cortina do apartamento da Fabrício Dias, em uma outra vida, quando decidi largar a faculdade e o dinheiro que chegava sempre contava histórias pela metade. Houve um breve momento onde lembrei o tipo de coisa da qual fugia quando saí de Porto Alegre pela primeira vez. O tipo de coisa que queria deixar aqui. Senti vergonha.

Era um pequeno medo de começarem a aparecer todo tipo de coisa, do rio devolver também nossos mortos. Aparecer pedaços de crânios rachados com marca de tiro ou lança, as roupas dos cadáveres, as algemas da Ilha do Presídio, ali do outro lado, as roupas do centro de tortura. Aparecer os esqueletos e eles não eram poucos, alguns muito recentes, recém lançados sobre as águas, das brigas entre os policiais e quem der na telha, nas brigas entre as facções, os grupos armados, os acertos de contas.

Essa é uma parte que ainda não falei. As pessoas estavam morrendo muito e podia-se facilmente comprar uma pistola. Homens matavam as esposas por um assado mal feito, namorados matavam namoradas como um ritual de passagem, as transações entre gangues viravam chacinas em festas de fim de ano, em festas de família. Matava-se em fila indiana, como coreografia, matava-se fazendo um cordão, por preguiça de matar um por um, matava-se colocando todo mundo no chão e atirado de uma só vez. Lembrei de um documentário sobre o fim da Comuna anarquista de 1871 que só terminou pois o sangue era tanto que o sistema de esgoto não dava conta, então, o vermelho voltava e se acumulava nas ruas de Paris como um segundo Sena. Era necessário algum lugar para colocar estes mortos, era este talvez o lugar que mais olhávamos todo o dia. Nossos mortos um cartão postal.

Se o rio se limpasse talvez poderíamos morar nele pensei. Mas, pode ser que nunca ninguém pudesse chegar perto dele de novo sem perigo a vista depois deste recado. Havia algo que me deibou emocionada nisso, ao perceber as pequenas montanhas de rejeitos. É tudo nosso eu disse, é um resumo feroz. Renata me abraçou enquanto a noite chegava e os rejeitos cobriam completamente a orla. Renata iria embora e isso era bom. Eu precisava ficar, precisava entender o que estava acontecendo. Olhar como fósseis aquelas embalagens, havia um crime em curso. Nossa cidade capotava sem parar, até os prédios se desmanchavam e vinham ao chão. Até o rio estava consternado, amarrotado. Eu tinha dó do lixo, queria guarda-lo, resgata-lo dar uma outra vida. Meu lugar era nessa sujeira, minha sujeira.

No outro dia ficamos sabendo que a prefeitura havia feito um contrato por debaixo dos planos de exportar lixo de outras cidades e até mesmo outros países para nossos aterros sanitários. Como se houvessem aterros suficientes. A ideia era largar os rejeitos nas ilhas a margem do rio, dar um jeito, em troca de um dinheiro não contabilizado pelas vias legais. Essa era a reposta mais simples e mais real aquilo tudo. Talvez o rio já estivesse morto há muito tempo, sem qualquer capacidade de reagir. Talvez não tenhamos essa capacidade de saber se algo está vivo, pode ser que se perdera há muito. Aquele lixo nem ao menos era o nosso lixo. Mesmo assim, o rio era uma outra coisa para mim. Eu podia o ver desde do fundo até a superfície. Recordo das fotos da grande enchente de Porto Alegre, em 1941. As barreiras de contenção surgiram naquele momento, inúteis, suas águas avançaram até o Mercado Público, destruíram ruas os prédios. Era pelo rio que eu haveria de ficar.

domingo, 15 de julho de 2018

luz

- Chega aqui, vai!

O muleque desceu os corredores nervosos, chacolhando a perna no mesmo treme-treme do corrimão bambo, no mesmo piso do chão que treme, o prédio todo parecia que vivia assim. Balançava, nem caravela daquelas antigas, para um lado, Barco Viking do Parque de diversões. Havia, ou parecia haver, uma conexão direta entre a terra e quem morava na ocupação. Cada tremor, as cavalarias na rua, os caminhões de carga pesada, as sirenes dos bombeiros, refletia em todo o prédio, fazendo qualquer armário ou copo de vidro mensageiro. Foram mais de uma dúzia de andares que ele despencou, sacolejando as pernas. O outro tava esperando na frente, pousado num sorriso largo. Tava sempre sorrindo, cara de maluco, tava sempre sorrindo não fazia sentido. Nem o nome daquele bairro Luz.

Antes era um grande pântano, alagava, um lamaçal como passagem entre dois mundos, era o guararepe, mata em terra molhada para os tupis. Depois um tal de Luís, um carvoeiro que trabalhava extraindo carvão para o fogo, a queima ou a devastação, construiu uma capelinha em homenagem a Nossa Senhora da Luz. Então veio o café, e o lugar ficou chique. Abriram estradas, ferrovias, rodoviárias, para a extração de café do porto de santos e a chegada dos imigrantes e os operários que mal ou bem construíram esta cidade. Os casarões da elite cafeeira esmolam por olhares em torno do parque. Como a água e a mata, a seca e a inudação, o bairrou afundo e voltou algumas quantas vezes. Voltou dos mortos. A capelinha não existe mais mas parte do restou ficou. A estação da luz ainda é um grande linha de trem. E a cada penca de anos, misteriosamente, pega fogo e é reformada. Isto é algo de nossa cidade. As coisas pegam fogo. Da onde? O fogo não se explica. Não tem início. Limpa até a morte. O fogo é como um deus embora sejamos uma nação de cristãos de primeira ordem. Ninguém quer acreditar que alguém o possui.

Eles passam primeiro pela calçada do antigo museu de belas artes e uma grade os separa de uma moça. – Do you have Money Darlin? Diz um deles? – Do you? Os menino vão jogar umas pelota ali na Aurora. Ontem mesmo serviço social passou, deixou coisa, ouviram, cobertor e umas roupas. Os cara do serviço até que se aparecem por aqui de vez em quando, puxam conversa, querem saber muitas coisa e vão embora. Os menino ficaram sabendo dum cara que descolo videogame, mas o muleque não quer ir não. Qué mesmo é ir ali no parque, desviar dos vigias, trepa nas árvore. Tem muita jaca agora, jaca pra todo lado. O muleque puxa o outro pela camisa, o amigo dá um grito mas cede. O muleque ri.

Ninguém sabe o nome dele. Mas sabe que tá sempre ali e todo mundo o conhece. Parece que nem dorme, fica virado, andando por ai. Às vezes dá uma mão no buteco do Antonio, varre o lugar. Às vezes ajuda a Nice com as caixa de ovos, na loja. É como se ele mesmo fosse o dono daquela parte da luz, e embora não fale quase nada, parece muito faladeiro com aquela boca esgarçada e duas covinhas enterradas, remando num riso sem fim, gargalhando de forma quase religiosa de frente as mínimas coisas sem importância como se visse algo que ninguém via. Ou fosse só maluco mesmo. O pessoal tudo gosta dele e na verdade, ele levanta o astral por ali. Sempre disposto a ajudar, sem nenhuma vocação pra violência, com um sorriso gostoso, bom de tá perto.

Todo dia se encontram por ali mesmo. Um grita da rua, o outro desce, ficam bandeando entre os carros. Quando tá quente se metem na fonte da república, quando tá frio, se metem no meio de um cineminha de marmanjo que o pessoal de um teatro popular descola perto dali mesmo. O amigo é mais extrovertido. Gosta de falar tudo que lembra. Conta das brigas com o irmão mais velho que fica cada dia mais chato, dos dias da escola, das brincadeiras no recreio. O muleque não estuda faz tempo, não tem como saber. De vez em quando aparece alguém da prefeitura e pergunta da mãe, da avó, do pai. Cê sabe lê rapaiz? Onde tá sua família, é de São Paulo mesmo? Ficam enchendo o menino de pergunta, em vão, depois deixam comida. Mas nem isso ele colabora. Com as duas mãozinha empurra o sanduíche, a marmita de feijão.

O muleque é magro nem um poste. Acontece seguido também de um pessoal de fora da cidade encontrar ele na rua, perto ali do Museu de Belas Artes, e tentar pagar um salgado, um cachorro quente, o que é raro pro resto do pessoal. Mesmo calado é um garoto afetuoso. O muleque tá sempre ranhento, sujo, e ainda cheira muito mal. Fica dias com a mesma roupa, deve achar umas por aí, e troca depois da insistência do amigo. Mas mesmo assim, nada que impeça, tem alguma coisa nele, as pessoas querem ajudar, mas não muito é claro. Ninguém realmente vai atrás das gente que botaram o gurizinho no mundo, ou levam pra algum abrigo, ou colocam dentro de casa. Todo mundo só quer ficar ali perto um tantinho talvez pra recarregar as energias, ele é solar mesmo, dá uma esperança sabe, pra não se sentir tão mal de ver uma criança na rua e ser uma merda de pessoa. Só quer oferecer uma lasquinha, para não importunar sua própria vida. É como se o muleque tivesse como pais era ali mesmo, aquele bairro, é como se eles fossem meio a mesma coisa, e, assim estivesse protegido por todos.

Os menino encontraram uma bola de tênis, provavelmente dos corenaos que jogam numas quadras ali perto todo domingo. Tão há três semanas sem parar na mesma brincadeira. Ficam dando tapão nela no muro do prédio, e se um perde no jogo, o outro tem que pagar uma prenda ou algo assim. O barulho da bola ecoa pelos apartamentos, todos ficam zangados, gritam das sacadas. O amigo xinga de volta, o muleque parece que tosse de tanto que ri, parece que a piada virou doença, e é incontrolável, está fora de si. Se baba todo e aperta a barriga, toda dolorida. Quando a mãe do amigo do muleque chama ele pra comer, porque é o jeito de trazer o filho pra casa, que não desgruda do outro, o muleque nem quê sabe. Fica na rua mesmo, nem sobe. O amigo às vezes trazia um pouco do especial da mãe, bisteca com batata, mas o muleque nem olhava. Teve uma vez tentou até colocar na boca depois do outro insistir muito, mas passou mal, só não vomitou porque não tinha nada na barriga. Fez um som meio mecânico com a garganta, e ali já não ria, apenas os olhos ficavam como pia entupida. Depois disso parou de trazer alimento, de tentar fazer ele comer. Se preocupa com ele, mas também nunca o viu daquele jeito.

Mesmo ajudando a Maria no restaurante, levando o lixo pra fora, sempre tão solícito, correndo atrás do caminhão de gás pra chamar um pro estabelecimento, ela mesmo parece nunca ter se tocado. O menino não come. Até ofereceu algumas vezes, a comida sobra, ou vai pro lixo, ou alguém come. Ela tentou dar para o muleque comer ou levar para alguém, ele não queria nem tocar na sacola. Parece fraquinho apesar de tudo, dá dó. Mas tá sempre aí, correndo, pulando muro, de ajudante pra lá e pra cá, fazendo gol, brincando de polícia e ladrão, juntando o lixo da rua pra não ficar pior do que já é. Não tem porque se preocupar. Tinha muita energia. O pivete sabe se cuidar, já é homi.

Eles tavam aqui na frente da loja. Tinham roubado um cone de trânsito de um estacionamento. A brincadeira agora era quem conseguia acertar o cone com mais distância. Gostava de olhar pra eles, é pura nostalgia de cara velho. É um alento a liberdade dos dois, no meio daquela nuvem de poluição, do cheiro de merda viva da ponte e do viaduto, onde o pessoal que usava craque gostava de presentear, entre as frequentes brigas nos bordeis e cabereiros, os gritos dos bêbados ao meio dia e as batidas da polícia, ver os dois nem aí pra aquilo tudo. Recortando a rua, nem aí pros carros, como se fossem embatíveis. Falando, nem aí pro volume dos helicópertos soterrando suas palavras. Dava uma leveza, como se eles se divertissem pra gente também.


O amigo dele jogou a bola e ela bateu uma estação da polícia, em formato de trailer que tinha ali, depois, foi parar dentro de um cercadinho que protegia o monumento ao General Osório. Ele correu pra ir buscar, mas o muleque segurou ele, vou eu, grito, boquiaberto, em um idioma que só quem o ve frequentemente entende. O muleque saiu gritando em disparada, atravessou o sinal aberto, pulou por cima do capô de um cidadão, e irritou as polícias que já tavam perdendo a paciência depois da bolada, mesmo conhecendo sempre de vista o menino. O amigo tinha medo que outros guri pegassem a bola antes deles, corre rapá, falou, vambora! O muleque à jato chegou ali na praça e com muita distreza pulo sem pensar o cercadinho, se agachou e pegou a bola. Levantou sorridente, com aquela gargalhada contínua e incessante, olhou pro amigo e caiu. Ficou ali no chão uns segundos, dali a pouco foi o amigo dele, e eu mesmo, que via tudo ali de canto, corremos pra ver o que tinha acontecido, achando estranho. Podia ser uma brincadeira do muleque, mas não era disso, não tinha esse tipo de safadeza. Talvez tivesse escorregado, batido a cabeça no degrau do suporte da estátua, vai saber. Uma pequena multidão se juntou em volta dele, e quando também cheguei, parecia bem embora não conseguisse se levantar. Ele ria, mas fazia menos barulho, como se tivesse se ar, segurava a bola e dava risada.

Então alguém fez o que se faz nessas situações, e o trouxe água. Mas o muleque não quis, e mesmo se bebesse ela ia se cuspir todo, a gargalhada parecia trabalhar de forma maior, mecânica e incontrolável. Dava pra ver os ossos saltados do quadris e os dedos finos, os calcanhares pontudos. De perto, era um milagre aquele corpo ainda funcionar. Alguém tentou trazer algo pra ele comer, o que se faz nessas situações, pra ficar fortinho, vai que falta açúcar, vai que falta sal, mas o menino não queria comer nem a pau, empurrando e todo jeito. Aos poucos o pessoal entendeu que o muleque não devia comer há muito tempo, que ele caiu mesmo foi por causa disso. Alguém chamou a ambulância pra aplicar soro ou alguma coisa e ela demorou uns dez minutos, chegou foi, até que rápido. Mas nesses dez minutos, o muleque mesmo sem força alguma, com os tecidos murchos, parecia usar toda energia que restava naquele riso espichado, que parecia até maior. Ria alto, e parecia, ria da gente. Ria daquilo, daquela situação. Não sei do que ria. Foi assustador. A gargalhada foi diminuíndo aos poucos até parar, e quando parou ele estava morto. Os paramédicos não podiam fazer nada, e nós só olhávamos em silêncio seu corpo deformado e sem vida, ainda com o semblante do riso marcado no rosto.

domingo, 10 de junho de 2018

era jovem. e foi jovem até aquele exato momento. se é a juventude paixão e entrega, foi ali onde acabaram-se os três que são um. o polegar sobre a chama de uma vela carregando a casa nas costas, queimando as bordas da digital. o gelo preso a boca antes do drinque, torrando a pele. o tiro solto encontrou a clavícula, a clavícula abriu o pulmão e teve força ainda para escorrer agora e quebrar um retrato na mesinha de canto. queimava feito fogo e gelo ao mesmo tempo aquele buraco aberto, aquele caminho deformado como um laço estranho entre os dois. muitas coisas foram levadas com o som daquele disparo. com o cheiro daquele disparo. com o cheiro de bêbado de seu pai segurando a pistola que juravam todos não funcionava mais, quiçá com muita insistência. era um ponto de não retorno. um ponto a ser contado pelo sangue quente, pelo peito furado, o ar gago, rarefeito, e mais que tudo a dor em seu máximo provérbio - te darei o chão mas te darei a queda. não, não era mais jovem. tinha doze ou onze ou dezesseis. tinha mesmo apenas um pulmão e meio a partir de agora, um osso estraçalhado, um olho confundido com um cano de pistola, e o derrotismo vago e sereno de não ter conseguido nem segurar uma bala. ou de ser abandonado até mesmo por uma.


sexta-feira, 30 de março de 2018

o projétil

quando o projétil nasceu ela tinha menos menos vinte e um anos. foi preciso atravessar o país, foi necessário que a carga de enxofre viesse de Paracatu, do centro oeste, que o cerrado fosse queimado para virar carvão vegetal, que estes dois se encontrassem em Aindiazes, ao noroeste do Paraná, para que misturados com nitrato de potássio virassem a pólvora.

nessa época sua mãe recém tinha saído de casa pela primeira vez, recém tinha pego um ônibus, no que poderia ser um primeiro dia da escola. depois, foi preciso essa pólvora chegar até o sul do nosso país, a carga de chumbo vinda de Araça demoraria mais três semanas, e nesse tempo sua mãe ja tinha uma melhor amiga, a Dilce, você deve lembrar, que tudo mundo dizia que ia ficar cega, e provavelmente foi isso a primeira coisa que ela disse para sua mãe e depois foram brincar, mas nunca ficou porque um diagnóstico não é uma coisa exata. 

em Chuí, extremo sul de nosso país, o chumbo da cápsula, retirado das entranhada na terra em uma mina na divisa do Brasil e Paraguai, à séculos sendo gestado, a pólvora, as 200 toneladas do lote ficaram prontas e exposta por meses no galpão da fábrica Meltra, com mais de 100 anos de atividade, e seu tio Patrício recém nascia, o último e mais mimado, imerso em um choro suspendido só solto após os três tapinhas atrás das costas dado por sua avó, desesperada, retirando a criança das mãos da parteira.

quando você nasceu o lote do projétil foi despachado para alagoas, comprado pelo governo federal. o projétil ficou por muito tempo em um navio, preso a cordas, balançando sem parar até chegar ao norte. lá, foi içado, pegou auto-estrada, estrada de chão, até encontrar a sede de treinamento da polícia militar do estado. a ideia era que o projétil fosse usado como treinamento para os novos soldados. mas naquele tempo a necessidade era muito grande de se colocar novos agentes na rua ou assim queria o governo, e embora houvesse um tempo previsto, de teste, estudo e prática, cada vez menos projéteis eram usados no treinamento. o desperdício também não era bem quisto, e uma bala custa dinheiro diziam os gestores militares pois assim teriam dito os gestores civis. o projétil então acabou em um outro cenário, melancólico a altura do anterior, no subsolo do centro de comando, caixas e caixas entulhadas, pressionadas, e ao lado peças de carros, caminhonetes da força que possivelmente estragaram antes de sair as ruas.

na hora que você veio o mundo ninguém mais esperava boas notícias. as hidrelétricas tinham parado de funcionar por hora, e metade dos estados aumentavam o coro da noite, amargurados, sem energia elétrica. parados. então você veio, no clarão dos olhos de sua mão, de sua irmã, que tremia ao candelabro sem parar, sem ver que se queimava sem querer, fazendo tudo voltar a funcionar. porque tudo cabia em uma salinha.

aos doze anos de idade você queria estudar música. queria ser cantora mas não sabia cantar. então queria tocar piano, mas era muito grande e você tão pequena. seu pai teve que trabalhar dois meses em mais um bico a noite, para no fim, conseguir comprar um violino de segunda mão. você nunca tinha visto um violino então não sabia se gostava ou não. na dúvida, dormia com ela ao lado, como um urso de pelúcia, como um guardião. aos poucos a intimidade entre vocês crescia, timida, misteriosa, e você ia o apalpando, na madeira, nas cordas, no arco, e descobrindo o som que poderia vir dele. quando você finalmente começou a fazer aula de música, em uma associação ao lado de casa, onde poderia ir a pé e comer um sanduíche ao  mesmo tempo, parte da carga do projétil partiu para Vitória, no Espírito. 

o seu projétil estava do lado esquerdo, a do lado direito ficou, esta se foi. em Vitória o projétil seria usado pela polícia rodoviária. o projétil pegou carona de um caminhão da polícia militar, onde o soldado responsável ouvia sem parar Leandro e Leonardo. se o projétil fosse gente, chegaria exausto a seu destino. se não fosse, mas pensasse e amasse, pensaria que há algo de errado com nós, com nosso jeito de amar, porque até mesmo para a tristeza se necessita trabalho. o projétil ficou lá por um bom tempo, intocado em meio há tantos. algumas caixas do mesmo galpão foram embora. até mesmo para o Haiti. o seu ficou, abaixo de todos, o primeiro no contato com  a terra úmida.

quando você estava estudando para entrar na faculdade seu projétil foi parar em Salvador. parte foi desviada, pelo próprio chefe do batalhão, falsificando simples documentos ou não fazendo a prestação de contas devida. o responsável vendeu o lote em troca de uma quantia em dinheiro e haxixe. naquela época era difícil encontrar haxixe por aqui, e o chefe do batalhão era esperto.o lote foi mandando em meio a uma carga de bolas de vôlei e futebol par ao público infantil. Ia escondido, no meio da carga, para que ninguém desconfiasse. quando você recém estava terminando a escola, quando decidia-se entre continuar com a música ou apenas vê-la com uma paixão a mais, uma chance de amortecer os dias e torná-los mais belos sem esforço, o lote com o projétil estava em uma garagem, atirado, e passava as semanas ao som do barulho do mar.

você se formou na faculdade, você foi a primeira pessoa da sua família a entrar em uma. na sua turma, só você era do leste da cidade, e foi o leste que falou no discurso de formatura. destes, você era das poucas mulheres em um curso onde havia praticamente homens. depois da cerimônia, foram a casa dos seus pais, cada dia uma casa mais nova pois você a reformava. estudara, entendia da onde vinham os equipamentos, a matéria prima de construção, de onde vinham o preço alto, o preço baixo. você poderia construir uma casa do zero e de certa forma sua vida não era só sua, era também a vida das casas. pequenos remendos foram responsáveis para que a calha não mais inundasse, e a rua não mais alagasse. coisas simples. 

você pegava seu diploma e na calada da manhã o lote do projétil sumia. dessa vez, a mão armada, roubada por uma quadrilha especialista em munição. sabiam os tamanhos, tipos de materiais, diferenças de milímetros, velocidade, composição, tipos de armas, paises de origem, usos específicos conforme a necessidade da ação. o roubo foi feito em cima de outro roubo, o desvio, então não há como saber quem foram os responsáveis. apenas que sabiam de tudo, da localização, da quantidade, do tipo, da melhor hora, informações da melhor qualidade.

quando você estava prestes a dar a luz, o projétil que até então estava desaparecido ressurgiu em Embu das Artes, São Paulo. o mesmo lote da sua bala foi usado para matar oito jovens, uns praticamente crianças, que estavam na praça brincando em um final de noite. um deles estava no telefone na hora, ele roga por deus e o telefone vai ao chão. todos são mortos com um tiro no crânio e tiros subsequentes na região do peito, mais de 100 tiros ao todo. a câmera do telefone registra tudo. é possível ver três homens encapuzados, com roupas completamente pretas e armas semi-automáticas. um deles ri, outro só sabe uma palavra: filho da puta. o do meio é mais comedido, fala bandido e é o último a começar a atirar e também o último a parar de disparar. você estava grávida e seu projétil já tinha matado oito pessoas, em uma chacina, fora o que não se sabe. o seu projétil quase foi levado junto. mas na pressa ele foi deixado no carro.

quando sua filha tinha 9 anos você participava de se virava entre trabalho nos escritórios de manhã e dar aulas de violina a noite, na mesma comunidade onde estudo. na mesma associação. de noite, jantava com sua mãe. às vezes vocês brigavam, por simples desavenças na hora de educar sua filha. muito bolo, muito achocolatado. muito mimo. às vezes vocês só ficavam em silêncio, se abraçavam vendo um telejornal, ou então sua mãe acendia uma vela e assim você entendia. naquele dia alguém muito especial tinha morrido, morrido pro mundo mas não para vocês e era preciso estar atento a isso. era preciso estar juntos.

num destes telejornais vocês viram uma matéria que falava da morte de um assistente social. dois tiros na cabeça, a moda de execução. algumas das hipóteses trabalhavam em uma esdruxula história tapa buraco, de que o homem era gay e estava apaixonado por um viciado. na briga, na droga, na raiva, o homem o matara. outros dão conta de denúncias que ele tinha levado a cabo, denúncias transportadas de forma anonima dos próprios moradores, que o assistente, tomou coragem de ser porta voz. eram moradores que tinham sido saqueados por próprios policiais, em rondas, em alegações de perícia fraudadas e visitas sem mandatos. o assistente achava que nada aconteceria por ele, em parte porque não era da comunidade, em parte porque justamente por isso não sabia o risco que corria. quando seu irmão trouxe sua filha finalmente a casa da avó, você tentou de todos os jeitos tapar os olhos dela enquanto a matéria rodava, mas a imaginação da audição era mais forte. você tinha vinte e nove anos e o lote do projétil agora foi levado até Rio de Janeiro, onde parte dele acabou no corpo de um homem de pouco mais de duas décadas vividas.

foram questões de meses. o projétil agora e você já estavam na mesma cidade. o projétil era mais velho do que você, mais viajado, rodado todo o páis e voce nunca saido do estado. ele poderia estar até mesmo velho de mais, mas não é assim que funciona com os objetos, ainda mais do que os desse tipo. você saía cedo para trabalhar, o projétil saía da zona norte. você almoçava dentro do carro apressada, antes de uma reunião com a conselheira escolar, o projétil agora dormia em um porta-luva. dessa vez, da vez que vocês dois se encontraram, você e o projétil que a matou depois de uma longa e cara jornada, não foi tudo tão bem planejado com os dois anterior, não foi a prova de erros, ou incontido até certo controle. no outro lado da rua da associação de música, uma família fazia um churrasco na rua. havia balões, poucos, mas havia. um carro desceu, os homens de preto desceram, procuravam alguém, alguém que nem mesmo eles reconheceram. na dúvida e na vontade, começaram a atirar. na dúvida ou na vontade todos eram aquelas pessoas, sem distinção. alguns conseguiram se abaixar, apenas se misturando a toalha da mesa e fugindo de virar um alvo, outros que tentaram correr foram os mais atingidos. também haviam crianças. você estava entrando no carro nessa hora, estacionado de frente da associação. quando acelerou, um dos homens descarregou um pente no vidro do seu carro. os dois primeiros, um pegou no ombro, outro passou de rasão pelo braço. mas o projétil que matou você, que demorou quase cinquenta anos para ser usado e terminar ali em você, o que realmente tirou sua vida foi o terceiro. como da penúltima vez, muitos foram os buracos de bala, o barulho, os disparos. a raiva. os homens encapuzados bem que tentaram recolher algumas das cápsulas, mas eram muitas, elas não acabavam em frente as vistas. o resto do lote do seu projétil passou um tempo em uma casa alugada, em uma delegacia, continua vivo.

porto velho

era recém seis horas e eu já havia ido embora. não podia arriscar mais um mudança de última hora. as provas, as correções das provas, as provas que nem são mais provas. as cores do anúncio mudados na última hora, um segundo antes de um pensamento mais rigoroso terminar de chegar na cabeça de Wando, um pensamento em meio a tantos outros, como os papéis do divórcio, o presente de natal da filha mais nova, o telefone desligado por mais de dois dias da amante, a promessa de parar de beber indo e vindo nos lábios salgados, ainda molhados na maré baixa. meu chefe não era uma pessoal muito difícil de lidas mas também, era até mesmo simples demais, tirando os últimos dias onde todo escritório parecia ter sido rebaixado a um péssimo reality show, onde coisas apareciam quebradas na cozinha seguido de gritos estranhamente agudos de Wando, e a sala de reunião e a entrada foram cenários de pequenas brigas entre ele e a ex-esposa. e no meio disto tudo havia o trabalho, ampliado e entulhado, onde seu recente vício por péssimas decisões e apostas instáveis começava a também se mostrar presente.

de qualquer forma nem gostava de trabalhar ali. muito menos de quando Wando era ele mesmo antes de seu mundo trimilicar e ir ao chão, batendo em minhas costas logo depois de se sentir muito orgulhoso de ver meu trabalho, onde o que ele via era o seu trabalho é claro, tentando dar pistas de piadas que poderíamos dividir um com o outro, e tentando a cada pitada de minuto extrair alguma informação sobre a minha vida pessoal algo que o fascinava justamente por ele de nada saber, pela impossibilidade ou pelo que imaginava. eu sabia que ele gostava de mim, em parte porque se sentia sozinho com suas mulheres, em parte porque buscava algo de si, algo perdido, algo para se sentir menos culpado talvez. por qual outro motivo pagaria meu almoço em um restaurante caro ou, me liberava de uma reunião para fumarmos cigarros na sacada do prédio, se não fosse por isso? E em cada oportunidade de tempo, entre briefings, videoconferência com os clientes, ameaças de briga com as agências e tentativas de firmar uma comunicação eficiente com os redatores, ele abria a boca em um formato de O muito estranhinho, raquídico a pobre vogal, e de dentro dela se punha a me contar sobre sua amante, de como quase foram flagrados pelo irmão de sua esposa no Motel Reino Campeiro, de como ele tem o tipo de bunda que não é flácida mas se movimento como preenchida de vento quando tem que se movimentar, escorrendo pelas mãos, pelos dedos e se multiplicando, e de que estava ficando louco e para transar com sua esposa tentava assistir a algum vídeo pornô que os amigos do colégio volta e outra mandam pelos e-mails da vida, mas nem isso servia - não porque não a amava a não, isto jamais, mas porque estava cansado de tanto trepar, estava com as bolas murchas, e então chorava, e nisso era bom, chorava pelas bolas, pelo vídeo que não bastava, pela culpa de trair a mãe de seus filhos, por não a merecê-la, e a mulher preocupada o atendia, solene e então estava tudo resolvido. Eu escutava com a boca cheia de trufas, ou, de vieiras recém feitas, ou algo caro deste tipo, amortecida pelo fato de estarmos bebendo durante o almoço enquanto os outros funcionários recém estavam abrindo uma coca-cola diet, mas me limitava a não falar muito. Sei o que passava na sua cabeça, deveria achar que eu fosse uma dessas mulheres solteiras que gostam de transar com mulheres e só isso, sem nenhum tipo de envolvimento além de uma penca de trepadas que poderiam sair bem ou mal, que por isso o entenderia, e ali estaria posta nossa intimidade, nossa semelhança, ali nos encontrávamos. Ele ser assim só devia me dar mais raiva, mas a sua simplicidade era tão pequena, sua contrução da rasa, fácil e transparente que por vezes me via até mesmo tentada em tratá-lo com o que ele gostaria que fossemos, isto é irmãos, mas não de crime, e sim meu pequenino e trouxa irmão.

não avisei ninguém da empresa, apenas bati meu ponto e me fui. comprei um pedaço de pão e um pouco de humus, sentei embaixo de uma árvore em um parque que fica ao centro, a algumas casas do meu trabalho. passou pela minha cabeça o quanto era engraçado meu chefe achar tudo aquilo de mim, logo eu, há tanto tempo sem ver ninguém. estar absolutamente sozinha. fiquei ali, cansada, mexendo nas pedrinhas perto das raízes da árvore, tentando entender o que ainda estava fazendo na mesma cidade onde meus país um dia fugiram, desesperados, loucos para desaparecer, e me negaram o nascimento, me tendo no outro lado do país. o porquê eu resolvi voltar a um lugar que nem conhecia e talvez isto nem fosse voltar, mas tentar engordar uma mentira a qualquer custo. também quis tentar compreender o que faz uma pessoa como Wando ter tudo e perder tudo tão fácil, tantas vezes, o dinheiro herdado dos pais, a primeira empresa fracassada, e terceira em certo grau de sustentação, o casamento, suas mulheres, sua ordem natural e transpor tudo a lógica de uma gangorra de um jardim de infância. a sua vontade de destruir, e ainda, o seu desejo que parece inescapável de erguer algo. tentei também analisar se algo ali acontecia pelo jeito que costumava agir, eu costumava ter esse efeito nos homens, eles olhavam pra minha cara e se abriam, não pensavam em me comer - o que se costuma fazer, ou, não titubeam em cima da possibilidade de uma paixão existir, apenas falam, falam coisas que não costumam dizer, por vezes agradecem, choram, se revigoram e vão embora. ir para a casa não era uma opção. o que estava sentido é uma espécie de tristeza, mas bonita, sedosa, como se pudesse ser penteada para gerar em troca calma. e ainda, era o fim da primavera, a vida insistia em sair pelos cantos, o horário de verão jogava possibilidade sobre nossos costas junto com uma vontade de caber no calor tomando uma cerveja leve.

nas outras semanas Wando não veio trabalhar. algo muito ruim ou muito bom poderia ter acontecido com eles e isto não importava muito ele sempre daria um jeito. pessoas desse tipo nascem assim. o novo gerente tinha muita gana de conseguir um cargo fixo acima do seu, e os trabalhos começaram a fluir de acordo com os prazos, sem precisar de horas extras e sem um clima confuso no escritório. um desses dias fiz algo fora de costume e sai para beber com dois colegas de trabalho que a pouco tinham entrado na firma. raramente saia de casa, e porque o ano acabava, e eu ainda era a mesma, resolvi arriscar. eles me levaram em um bar de tapas, um bar que devia em tese herdar algo da cultura espanho sendo que, o que é a cultura espanhola, de que lado da rosa dos ventos estamos falando, que grau, que latitude, em qual século exato, em qual árvore genealógica, mas sim não parecia em nada com o que entendi era a cultura espanhola. eles eram muito gentis e me falaram se conhecerem há muito tempo. desde o colégio, não não, desde aquela vez que o Mauro seu tio, nosso vizinho, roubou um bolo de aniversário da outra vizinha, não não, desde que o Olavo foi eleito prefeito pela primeira vez, ou o Ciro teve o primeiro filho, desdo do maternal talvez, mas com certeza, desde da dança de quadrilha da primeira série onde você quebrou o braço porque tentou dar um mortal e o que devia ter quebrado mesmo era a cabeça mas o corpo é mais inteligente, e o reflexo da mão quis chegar antes. eles era muito simpáticos e só assistir os dois falando sem parar, se interropendo colocando a mão no ar, uma sobre a outra como quem acha que assim para o carro de um pensamento, me fazia rir. imaginei que eram um casal ou que já tinham sido mas que ficou chato porque afinal eram muito mais, e podiam ser muito mais, e se davam muito bem até mesmo para serem um casal. imaginei que de vez em quando ainda podiam transar, mas uma transa sem querer, ou uma transa de última hora, uma transa coringa, e era como assistir um filme da sessão da tarde, e era algo muito engraçado, que os dois tinham que parar para recuperar o fôlego de tanto rir, tão fácil, e ao mesmo tempo, pareciam transar eles com eles mesmos. poderiam tambem ter sido desses casais que no meio do caminho se descobrem menos héteros cada vez mais, e se apaixonam por pessoas do mesmo gênero mas juram um para o outro nunca deixar de amar, você sempre será a coisa mais importante para mim, você sempre será a primeira, eu sempre volto por você, eu transo com outros porque o resto já tive aqui, é só isso, foder caras me deixa louco, é só quem eu sou agora, quem eu sou para sempre, fazendo seus amantes sempre meros sub-personagens de sua história de amor principal porque vinda de uma promessa murcha e nostálgica que alguns chamariam até de religiosa. ele me perguntou se eu trabalhava há muito na empresa, eu disse que há dois anos mas pareciam muito mais, me sentia meio chata perto deles, mas não sentia julgamento. estávamos já na segunda garrafa de sangria e há muito não costumava beber, ele nos ofereceu para cheirar algumas carreiras no banheiro e eu vi que ela estava disposta a não recusar um pequeno ou grande tiro, mas algo a deixou ali. logo que ele saiu, ela terminou seu copo, e eu me perdi tentando reconstituir sua boca no que restou dela no fantasma da marca de batom deixada no copo, me disse você e o Wando, sempre você e o Wando, o que tem, larguei ainda de olho no vidro, vocês são muito chegados, alguns diriam que você é até mesmo a preferida dele, e nesse momento acordei, me endireitei na cadeira. O Wando gosta muito de ti, ela repetiu mais uma vez, querendo mesmo dizer o que rola entre vocês, como se eu fosse o centro de uma grande novela que poderiam entreter os dois por muito tempo em seu trabalho chato, ou como se eu fosse ela, a amante que todos sabiam que existia e somente eu sabia quem realmente era, eu a amante, veja bem, só faltava essa. O Wando é um canalha, falei, ele só gosta de mim porque acha que é isso que eu também sou. Um homem canalha, disse a mais alta verdade, e sinto que ela percebeu o que quis realmente dizer. Que ela e eu, nos falamos embaixo das frases, que nós somos o tipo de voz duradora, que se impõe mesmo quando são as pessoas que acreditam estarem falando, que eu e ela temos esse poder. Embora Wando achasse ter algum tipo de influência sobre mim, ele era o meu terreno. E é assim que mulheres como nós agem.

meu recém colega e maior recente amigo recém tinha voltado do banheiro, e sua colega o disse eu gostei dela, e eu ri, porque nesse ponto já procurava sempre coisas perdidas embaixo do tapete de qualquer fala, até a fala dos bêbados nos quais nos esforçávamos para ser. então me contaram de coisas sem muita importância coomo uma viagem que fizeram a India, e que um deles teve que comprar duas malas só para transportar esculturas da deusa Iapso, e que eram pesadas e custavam uma fortuna, e além disso era uma deusa muito feia ela acrescentou, cara e feia e frágil porque de vidro, e que mesmo depois do esforço a companhia aérea perdeu as bagagens, e depois de três meses, depois das mini Iapsos terem dado voltas no mundo inteiro, uma mala enfim voltou, mas aos pedaços, e que sim essa era uma história triste, mas também engraçada, mas pricipalmente: talvez espiritual porque envolvia os deuses e como não compreender isto como um pequeno explicito sinal? Eles não paravam de pedir comida, e mais bebida, e meu estômago estava embrulhado e pensei até mesmo em vomitar, mas talvez, talvez, fosse apenas um animal desacordado em minha barriga, nervosismo? falta de traquejo? e continuei enquanto eles me faziam perguntas e nunca relacionadas com meu estado civil, com minha vida amorosa, o que seria ridículo pois previsível até demais para eles, ou porque naquele estado não importava. perguntavam sim de minha infância, de onde eu tinha nascido, porque havia esse sotaque, talvez o L, sim, definitivamente o L, mas também o O, sim  O às vezes, e eu os contei sobre meus pais gaúchos que fugiram de seus familiares, fugiram da divisão de fortunas e dívidas de seus genitores, fugiram do fato da mãe nunca os ter amado, ou do pai nunca ter sido amado por seu pai e o outro anterior também, e de todos os pais terem sidos o mesmo e como isso era cansativo, e assim, incubidos na promessa de cortar o cordão, romper a corrente, foram parar o mais ao norte possível de pindorama, trocaram porto alegre por porto velho, sendo porto velho mais nova que porto alegre, sendo que nenhuma das duas pareciam fazer sentido. meus quase amigos riram, não só pelo nome das cidades, mas por seu desespero. por saber que todos conhecem aquele desespero, ninguém pode negar isso.

chegou uma hora na qual perebemos estarmos muito bêbados, e eles queriam ir para um balada que havia ali perto. não sou uma pessoa que goste de ir nesse tipo de lugar, mas formos, eu falei não, mas falei só na minha cabeça, tinha esquecido essa parte tão essencial, e quando vi já estavamos lá dentro. meu colega encontrou um cara que poderia ser um amigo ou um amante, e bebemos dois drinks e fomos para a casa de alguém. essa parte não lembro bem. mas recordo sim, estarmos na cama, os cinco, e eu pensando, há quanto tempo que não fodo, e olhar para eles em sua troca de carinho, muito bêbados para manter o equilíbrio, tão ousados que sem capacidade de tanta ousadia, tão íntimos, lembro de pensar sem para em Wando, e ter medo pela primeira vez na vida de que ele tivesse razão. que ele e eu dividiamos sem alguma coisa, mas ele, o mais esperto, o mais vivido, o mais malandro, sacana, precisa de um para reconhecer o outro, não? tinha diagnosticado isso antes de mim, e talvez no fundo ele falava porque de fato embora achasse que não, eu entendia Wando, entendia sua falta de satisfação constante, seu pau ser um termômetro eficiente, nada estar a altura do dia seguinte, sua vontade de mandar o que mais ama as favas, seu jeito trouxa de tratar as mulheres para se sentir melhor, para proteger sua possibilidade de ficar sozinho, meu pequeno irmãozinho, uma raiva, uma raiva daquelas ameaçava vir, mas era apenas medo, preocupação, neurose, culpa. lembro que dormimos e talvez alguém acordou no meio da noite e trepou com o que pode, e voltou, ou então alguém foi ao banheiro e voltou rindo, acordando outra pessoa, e então alguém teve um pesadelo, contou um segredo para alguém e naquela cama houve um juramento, e depois acordamos talvez os três, ou os cinco, ou talvez só nós duas, e trepamos até pegamos no sono, ou em vigília, ou primeiro no sono achando que trepávamos, e depois na realidade. ou sim, ficamos ali agarrados, abraçados, acarinhados, protegidos pela promessa do mundo de nos amar se fisicalizar no fato que mesmo os cinco naquela cama não faziam ela ir abaixo, pela noite e grande parte da vida.

isto foi em uma sexta-feira. quando a semana se iniciou, me mantive imersa em um desconforto, uma certa vergonha de encontrar meus colegas de trabalho, com quem dividimos algo sem saber direito o que, mas mais ainda, talvez, de Wando, de olhar nos olhos dele, ouvi-lo sem cessar, e ter algo para contar que fosse completamente tudo que ele achava que poderia acontecer comigo ou que fosse exatamente o que ele esperava. só tirei os óculos de sol quando cheguei na minha mesa, e esperei encontrar a sala de café vazia para me servir uma xícara. minha mesa ficava em um lugar privilegiado, e dali o fluxo era observável no meio de duas pequenas frestinhas a mim oferecidas. sozinha na sala, dei um gole no café preto e respirei muito fundo. não sabia que tipo de pessoa que era. era isso. senti uma mão no meu ombro esquerdo me puxar, me virando com prudência bem devagar. ficou sabendo? - era a secretária do atendimento, uma mulher mais velha do que eu, que trabalhava na recepção e só trocávamos conversas avulsas. O que, eu perguntei? por um momento pensei que poderia ter sido algo envolvendo meus novos colegas, amigos, o que fossem. A mulher fez uma cara estranha, no limiar da pena com o terror e a satisfação, e me disse em tom assertivo ele os matou. Está preso. Matou ela, a esposa, e a filhinha. Wando matou as duas com um revólver de caça, e quando tentou se matar também, o que costuma ocorrer nesses casos, nenhuma bala saiu. Passou pelo corpo das duas, procurou desesperado pela caixa de balas escondidas na estante de livros, manchando de sangue em especial a prateleira de literatura inglesa de seu falecido pai, onde achava que elas deveriam estar, mas demorou para encontrá-las. sempre foi muito bagunçado. quando a caixa de balas por fim apareceu, uma penca delas, havia tantas que poderia levar muita gente com ele. mas nessa altura não queria mais se matar, havia desistido, voltado a si.

domingo, 25 de março de 2018

o nadador

o nadador acordou com um estranho barulho. parecia um animal, um rugido, mas no final havia este estranho som pipocante de engrenagens misturado com o que em sua imagem mental era um saco de bolinhas de gude. bolinhas de gude hoje em dia estão proibidas em nosso país, pensou, e voltou ao sonho. depois de alguns minutos, acordou definitivamente. o complexo rugido havia também sido acompanhado de um cheiro, um rugido de uma flor de inverno, uma flor que lembrasse o casaco de seu tio Alfredo logo depois de retornar de uma viagem a Assunción, misturado com algo indecifrável, disparador de uma sensação semelhante a baunilha. dessa vez o nadador realmente acordou. o rugido de uma flor de inverno, lembrou, e foi aquecer o fogo para fazer um café enquanto lembrava que durante o sonho esta tal criatura materializou-se. tinha pétalas largas, era uma planta alta. e o principal: latia.

tentou ler o jornal mas parecia o jornal de antes de ontem. tentou se concentrar em exercícios matinais como o de fazer o minguinho de seu pé direito se mexer, uma obsessão recém adquirida, um incômodo falante cuja presença era vista como um pequeno rebelde, disposto a sozinho colocar em fino lençol, o lençol no vento, em ruínas, desafiar todo seu grande corpo. não conseguiu se desvincilhar, o barulho, ainda estava ali. cada vez mais fraco, mas também presente porque na ameaça de desaparecer por completo. o nadador então colocou sua sunga de banho, os óculos de mergulho. foi até o armário, um armário herdado junto com a casa, onde sempre esperou em um medo portátil encontrar coisas de um outro morador, um morador fantasma, provas de que ele, mesmo sem saber, não era o único a morar naquela pequena casa. abriu a gaveta e deixou um pequeno bilhetinho dentro dela. depois saiu.

o local onde morava ficava de frente para a praia. o nadador agora estava de frente ao mar. agora as águas salgadas pareciam um amplificador daquele desconcertante barulho, o rugido incessante. eram os primeiros dias de inverno a mar estava gelado porque havia o sul ainda, as mesmas correntes em seu trajeto ancestral conseguiram convencer a si mesmas de continuar, e embora frio a cor dele era linda. era a cor da terra. porque era transparente. e o céu, onde espera-se que o mar imite em um jogo de reflexos como dois espelhos que duelam sem parar, e é o duelo a verdadeira estratosfera, estava cinza, branco, cinza e um pouco mais de branco. o nadador colocou o pé direito primeiro no mar, em parte porque queria punir como podia, nos detalhes é mais poderoso o gesto, gelar o espírito revolucionário de seu minguinho. depois, enquanto o calor ia se perdendo durante a viajem por toda a perna, até encontrar a barriga, já estava com a espuma salgada, a espuma do cão raivoso à mando da flor, pelas canelas. o nadador olho para o horizonte, depois olhou para seus pés, completamente legíveis, completos fidedignos à realidade. quase não havia refração o que era impossível, quase que a imagem de seu pé não se deformara com a ação da luz naquele outro material. porque o mar sim é um material. nós podemos construir coisas com o mar. objetos. nós podemos usá-lo, vendê-lo, chutá-lo. nós o usamos por exemplo para mandar produtos de um país a outro, e isso se chamam rotas comerciais, e foi uma das primeiras costuras, um dos primeiros pontos doloridos da agulhas, que o planeta sentiu. nós podemos o usar para se matar. para meditar. o mar é cabível. em aquários, em perfumes, em conversas no skype, nas construção das casas e na matança da sede. naquele específico dia, sem refracionar, parecia ele querer dar a real especificidade das coisas. então, além de suas canelas submersas, o nadador testou colocar outras coisas no mar para ver se o efeito continuava, para ver se exibiria também sua real natureza. o nadador não teve escolha, se abaixou, e agachado com as mãos em conha como se também estivessem agachadas e fosse dois corpinhos, mergulhou na água os últimos dois anos que se passaram. foram os anos que o nadador achou ter encontrado a felicidade e a felicidade ter cabelos que ultrapassam a bunda, e que conseguiu convencer a felicidade a morar com ele, comer com ele, dormir com ele. até que um dia a mulher foi embora sem avisar, o fazendo duvidar de tudo, inclusive de sua presença, de sua memória, inclusive da materialidade de uma mesa, de um garfo, perder a confiança até mesmo a dureza de uma porta. os dois anos foram então postos submersos, e depois de alguns segundos começou a flutuar mar a dentro, levados pela correnteza. aos poucos eles começaram a virar uma mancha cinza, o que isso quer dizer pensou o nadador, que tipo de verdade lúcida é esta, e lá adiante, já longe da focagem de seus olhos, os dois anos viraram uma espécie de peixe, talvez um filhote de tubarão, ganharam corpo e desapareceram rápido demais por meio de suas afiadas barbatanas. o nadador agora estava mais triste do que estava antes, aliás, nem sabia que estava se sentido assim na hora de acordar, mas agora constatou: triste. respirou fundo, e foi se acalmando a medida que escutava de novo o rugido.

se jogou ao mar, passou as primeira ondas muito rápido, e agora nem sentia mais a falta de calor que a estação luta para instaurar. estava no mar aberto, nadava, nadava. passou horas nadando sem parar. as horas viraram dias. em alguns momentos,  nadava dormindo. nadava de costas, borboleta, nadava sem saber que estava nadando, por puro reflexo. cada vez o som ameaça fugir, e depois, aumentava consideravelmente, e o cheiro descrito na manhã daquele dia se tornava físico, grudando em sua pele mole e chupada. o corpo do nadador estava ficando irreconhecível, sua pele parecia incapaz de segurar qualquer toque, qualquer coisa em sua superfície. então o nadador avistou uma pequena ilha ao longe, e para lá foi. se atirou na pequena areia seca que encontrou e dormiu sem noção do tempo passado. o nadador estava praticamente nu,em uma ilha que não sabia onde, sem nenhum documento, ou roupas, ou formas de convencer alguém que era uma pessoa.

o nadador foi acordado por uma barba. a barba roçava seu rosto, e ele segurou para não espirrar. era um senhor, afinal, com a cabeça deitada no seu corpo esguio, procurando sinal de vida naquele corpo depositado na areia. o senhor se surpreendeu ao vê-lo acordando, e o contou que precisou de muito tempo de insistência para ouvir o ronco de seu peito. muito baixinho, baixinho, quase parando. o seu coração estava quase no mute rapaz, é um milagre disse o senhor e o convidou para tomar um banho quente em sua casa.  o nadador consentiu com o tantinho de energia que o restara. o senhor, com aspecto de ancião, o serviu uma cuca de linguiça e uma porção de queijo. o nadador o julgou muito bom anfitrião, um tipo respeitoso, uma vez que não trocaram quase nenhuma palavra. apenas durante a noite, enquanto se reuniram antes de dormir perto do fogo ao lado de fora da cabana, onde o anfitrião o fez uma estranha pergunta como se tudo que rezasse fosse para o mar lhe trazer uma companhia, um ser qualquer, capaz de estebalecer com ele este exato diálogo, uma possibilidade de resposta. a pergunta era: você acha que alguém pode jogar uma maldição em si mesmo? o nadador então olhou para a lua, metade escondida entre as nuvens, metade a mostra  e soltou um simples talvez. talvez, tudo é possível respondeu o nadador. depois, o homem o perguntou se gostaria de passar a noite na sua sala, onde havia um sofá muito confortável, mas ele respondeu levantando, sim sim sim, falando, e indo deitar na areia onde passaria a noite. o senhor logo entendeu que o nadador era um péssimo contador de respostas e passou pela sua mente se era louco ou estava apenas casado. cansado, concluiu. tal como todos.

no outro dia o nadador foi embora. voltou a nadar por várias horas. quando enjoava um tanto, colocava a barriga para cima, tentando mirar seu umbigo exatamente debaixo de uma estrela como Beltalguese. como uma ponte, imaginava, como uma torre, uma corda bamba, um telefone-sem-fio, imaginava, entre sua barriga e o vermelho daquela estrela cujo o vermelho de sua luz denuncia que em algum lugar ela já havia morrido. então batia os braços, remodelava as costas, batia as pernas. por vezes pensava que o barulho aumentava de dentro da água, e seguia para uma tal direção, as vezes era fora da água que o escutava melhor. o nadador acabou por chegar em um pequeno porto, de uma minúscula cidade. quando deixou a água, desta vez de corpo firme, os barcos recém regressavam da última pesca. qual o nome desta cidade, gritou para um tipo friorento, encapsulado em conchas e lenços, que dobrava sozinho uma rede. esta é a cidade antes de Bentavos disse o homem. o nadador cochilou um pouco perto dos navios e quando acordou se direcionou a primeira lanchonete que pode achar. na entrada lembrou que o dinheiro era algo que existia, e que não havia com ele sequer um tostão, sequer um local para guardar uma ou outra moeda. mas a cidade parecia gentil, e uma das garçonetes ou se deparar com o home magro muito magro com as costelas saltadas como a parte de cima de um desfiladeiro, de onde, algo ou alguém poderia s e jogar e tentar se matar, recolheu algumas sobras da refeição do turno anterior que iria ao lixo e o deu. a mulher o questionou o que fazia naquele lugar, ninguém nunca ia aquele lugar. ela disse que o restaurante era muito ruim, que se quisesse comer bem mesmo, em um dia que tivesse dinheiro consigo, deveria ir ao restaurante de Bentavos. O restaurante de Bentavos é muito bom, ouvi dizer que eles assam um porco inteiro, e também, há uma espécie de milho que só tem em Bentavos. Alguns até dizem: só nascem em Bentavos. Terminado o caldo com pão que a mulher o oferecera, ele a perguntou qual era o nome da cidade onde ele estava pois não havia como saber. É a cidade que fica antes de Bentavos, disse a mulher. Estamos ao norte? soltou o nadador. Tecnicamente, disse a mulher, estamos também no sul. Pois nossa cidade fica ao norte e ao sul de Bentavos. Bentavos fica no meio. Ainda sujo com pedaços do creme de abóbora manchando a boca e o nariz o narrador agradeceu, embora alimentado também em parte frustado. Em frente havia uma praça, e sentado na areia, entre os brinquedos, observou por um tempo as crianças brincando. Se levantou e voltou ao mar.

Dessa vez o nadador passou muito tempo na água. Teve até mesmo medo. Medo de morrer, de seu corpo se decompor de vez, de todo continente do mundo o abandonar, de ser uma baleia que alucina ser gente. Medo de ser devorado por um ser marinho mitológico, medo de sentir tanto medo que o fizesse acreditar na existência dos Deuses. medo de se ir, de não perceber que se foi, de ninguém o avisá-lo, e passar a eternidade coberto sob o manto aquático. então, depois de dias, de cãibras, cansaço, ofegação, o nadador desmaiou. quando deu por si, estava dentro de um barco. quatro homens e uma pequena mulher o olhavam espantados. O filho do Egídio! Não acredito. Filho da puta, esbravejou um com felicidade como se tivesse ganho um prêmio. Os homens e a mulher, o deram cobertores, um colchão e o levaram até a costa.

Venham ver, é o filho do Egídio, diziam as pessoas do povoado ao vê-lo. É impossível, mas é real, comentavam senhoras. Este filho da mãe é a cara do Egídio, só pode ser. Olha o nariz desta criatura! O nadador estava tão abatido, fraco, sem sustentação calórica ou esperançosa, que sua mudez acabou consentindo por ele. Semi desperto, o levaram para uma pousada, o deram banho, todos felizes, e falaram coisas que não pode compreender bem. Por um momento, achou mesmo estar alucinando, estar sem oxigênio o suficiente, ter comido sem querer alguma alga alucinógena no caminho. No outro, dia, um pouco mais forte a situação o deixou inseguro. As pessoas pareciam estarem felizes ao mesmo que trucidá-lo, arrancar os pedaços, o que seria fácil devido a ao seu corpo trêmulo. O nadador lembrou nunca ter conhecido seu pai, e dele só ter hipóteses. Dele só ter uns cinco pais diferentes, possíveis diferentes, cada um com uma casa, um local de origem e uma profissão ruim - nisso todas as versões concordavam. Assustado o nadador deu no pé. O povoado não deixou por barato, e mesmo sem saber quais eram as verdadeiras intenções daquela gente se pôs a correr, e a cidade atrás dele, todos em uníssono jogando-se atrás do corpo em fuga do desparecido filho de Egídio, como se fosse o único imune a algum tipo de vírus capaz de exterminar tudo. Algumas pessoas na linha de frente do corre tropeçaram em uma carcaça de pinguin, e esta foi sua sorte, como um boliche as pessoas de trás foram despencando, e pisoteando-se, e assim foi mais fácil se jogar ao mar e desaparecer.

o nadador agora estava mais triste ainda. estava acima de tudo confuso. depois de algum tempo de nado, lembro o mar ser um lugar com várias dimensões, e decidiu por mergulhar ao fundo. por procurar o barulho, talvez a fonte, o rugido, estivesse, claro, faz todo o sentido, perto do fundo do mar. ao invés de ir par ao lado o oposto deste lado, frente ou trás, se pôs abaixo. mergulhou com raiva, rápido, veloz com uma correnteza, adentro do profundo sem luz. a pressão da água cada vez ameaçava mais seus aguerridos pulmões e um pequeno rompimento de pacto, uma pequena bolinha de ar, poderia se formar como uma miniatura do próprio nadador, e nadar pelo seu sangue, parando em alguma veinha específica, alguma irrigação, a estourando para sempre. por imaginação ou não ouvia o rugido cada vez mais forte, pensava na porta batida indicando a mulher havia ido embora, pensava nas crianças brincando tranquilas no parque, pensava que saber fazer uma cuca salgada tão bem só era possível tendo uma família, uma longa receita de família, um grande cochicho que espalhasse com segurança uma mensagem cifrada durante os séculos de como aquela massa deveria ser preparada, era então a massa um século atravessado, um modo de não morrer totalmente. pensava em seu pai morto, não sabia se estava morto ou não, não sabia quem ele era ou seu nome, mas o desejava assim agora, e que principalmente, a parte mais verdadeira do inverno era uma sensação de ser inescapável. aos poucos o nadador foi sendo vencido pelo som que começava a aparecer também com mais nitidez, primeiro como um ruído ao rugido (falso ou não), e foi concentrando-se do próprio pulso onde conseguiu usar o ar que quase o faltava para imergir. quando chegou perto da superfície sentiu uma grande felicidade e criou ali uma falsa lembrança de seu nascimento há mais de 40 anos atrás. ficou asim, recuperando o fôlego, boiando, tentando ser o ponto de elo entre o mar e o céu enadou por mais uns dias, antes de se decidir pelo que deveria ser feito.

quinta-feira, 22 de março de 2018

esquecida

existiu uma palavra que por não ser lembrada no exato momento (o exato momento foi quando duas pessoas se conheceram pela primeira vez, houve outras, mas esta é a mais importante) fez duas pessoas se apaixonarem. era para ser uma reunião dos fornecedores de uma marca de um carro, um carro movido a energia limpa, cujos pneus ainda custavam muito caro para o mundo. as duas pessoas já sabiam que iriam se conhecer, sabiam seus nomes completos mas não separados, como assinavam seus e-mails, qual era o telefone do setor de cada, e claro, a opinião uma da outra. as duas pessoas estavam em pé de guerra e divergiam, embora as duas lutassem pela vida de um carro, um mesmo casso, tinham ideias bem diferentes sobre isso. acontece que quando estas duas pessoas foram formalmente apresentadas, todo aquele papo sobre a reciclagem da borracha ou um novo tipo de material baseado em uma nova geometrização dos átomos de carbono que uma start-up filandesa estava desenvolvendo, desapareceram e o que veio em suas mentes foi uma outra coisa, exatamente a mesma palavra, que por coincidência nenhuma das duas pessoas conseguiu lembrar. elas ficaram ali conversando sobre outras coisas, na tentativa desesperada de lembrar o nome da palavra perdida, o que era mesmo, como se diz mesmo, o que era aquilo mesmo, e por não lembrarem simplesmente se apaixonaram. depois disto todas palavras pareciam por assim dizer desarmadas, sempre chegavam atrasadas e dormir da porta para fora do quarto, assim como os gatos. nem é preciso dizer, mas depois de algum tempo ambos (embora em tempos diferentes) lembraram da tal palavra.

alameda potiguar

em alguns locais desta cidade ocorre um fenômeno estranho, em lugares esparsos, com certos moradores. as pessoas vão dormir cansadas, pois é isto que esta cidade também faz com as pessoas, depois de um dia de trabalho, tomam leite ou cachaça, vão na igreja, no samba, no terreiro ou tiram uma noite sabática, deitam-se em suas camas. quando despertam ainda estão no sonho, mas demoram para descobrir. faróis de carros gritam alto, carros feito para o deserto ou a selva, carros que são eles a própria ferocidade do deserto e selva, a sobreposição unificadora de ambos, ou assim buscam sua identidade. canhões de luz pescam certos tipos corpos miados, entre os prédios, em fuga manchados de noite escura, arranhados nas radiações dos postes, pescam como seus antepassados pescassem marisco, tainha, mas sem a fome. ou a fome sendo uma outra coisa. alguns alegam escutar juras de morte, batidas seguidas de berros explosivos, o berro da mão é diferente do berro das costas, e pasme, contam alguns, o grito do pé pode ser quiçá o maior de tudo, ninguém desconfia, mas é uma barulho pisoteado, seguido de uma família de ruídos, como uma espécie inteira que agoniza. às vezes, uma das pessoas reconhecem alguém. parece o tio, ou o avô, muito jovem, muito bonito, ou muito ensanguentado, quase irreconhecível se não fosse aquele sotaque ranhoso de dizer chega, tanto tempo ouvido em um almoço de infância. às vezes é um dos poliças, e em outras até mesmo, qualquer um que por ali passou no momento do baque, do choque, do pulo, do que dizer ser o azar de um momento infeliz, como uma prostituta, um vendedor de jogo de loteria ilegal, um jovem que sai à noite para comprar cigarros a avó, ossos: pedras desajeitadas na terra a chacolhar. o sonho acontece de novo e de novo. há aqueles que se cansam, mudam de casa, não aguentam a repetição, os gritos, o barulho das armas (armas que riem até os dentes caírem, eis os disparos). outros já se acostumaram e usam este lugar, o sonho, para conversar com pessoas que não estão mais aqui, para pagar seus pecados, para chorar, para rezar pelo alma de alguém cujo o corpo é o infinito. o infinito mistério cuja posse é usurpada. também existem aqueles que usam este sonho, este portal, como um lugar de encontro, e lá conversam com as outras pessoas que também moram na mesma cidade, aproveitando que lá o preço do metrô ainda não é tão caro, e a velocidade do tempo não faz os carros ficarem tão parados, usam isto para jogar conversa fora e tal.

terça-feira, 20 de março de 2018

um e-mail nunca escrito direto do ano de 1996

foram mais de quatro os quarteirões arrastados por seus cadarços desamarrados. no dia anterior ainda chovia, as poças demoram tanto para secar nesta parte específica da cidade, desatenta à qualquer força natural. o terreno úmido, o sol à degola, o corpo servindo de cansaço para a digestão do pesadelo de uma parte considerável da zona norte. foi ali onde decidiu-se por escrever uma carta, tão breve como um reflexo, um soluço, um espasmo. era o ano de 1996, Eugenio Trinto não dava sinal de vida ou morte há mais de três. era o ano de 1996, travestido no ano de 1992, onde em um final de semana o carro quase atingiu um cavalo, um caminhão, uma travessia para qualquer lugar desconhecido, também com uma pitada de 1990, onde tanto ela quanto Eugenio se achavam gênios incansáveis, capazes de redecorar qualquer cela, de curar tudo com um estardalhaço, afinar um violão no grito. foi ali, ao lado  da vendia de abacate e mamão, no mistura influenciada pela fala da senhora com alzheimer confundindo o engraxate com um primo morto na guerra agora vivo, segurando o peito como as mãos, faz de conta elas, dois ímãs gigantes, que entrou na lan house e mandou uma pequena mensagem.

na penúltima vez que se falaram, quando ambos deram por encontrar-se meio sem querer numa exposição de Chico Baltar, em algum lugar de Vitória, Eugenio recém tinha as passagens compradas. alguns meses depois mandava um longo e-mail, recheado de fotos de pássaros, e cocos de pássaro, e comidas de pássaro, alegre por morar perto de um viveiro, onde dizia: Madri é linda. Logo em seguida, enganchado a esta mensagem, havia um segundo e-mail onde escrevia atônito que engravidara uma mulher, que seria pai. o tempo dentre uma mensagem e outra era de não mais que dez minutos, dez minutos que Eugênio já era outra pessoa, pessoa que tinha perdido qualquer vestígio, e agora tudo que possuía eram rastros na mata seca. aquele intervalo, ela pensou, era como um bote fora do tempo, onde sempre é possível retornar, é o momento em que achamos não saber mais de nada, é portanto o melhor de nós - o que está por vir. os dois, ele e a mãe da criança, tinham se conhecido na boate onde ele trabalhava às terças e sextas e também as vezes aos domingos o que era triste, e aconteceu durante dividiam a cama, pela manhã, absolutamente sóbrios e conscientes, depois de um dia de trabalho puxado e uma raiva compartilhada por seu chefe em comum. meses depois de seu e-mail, o filho, o milagre do filho, é perdido e Eugenio se deprime. nunca achou que teria um filho, ou que transaria de novo com uma mulher. nunca pensou na possibilidade do primeiro. algo lhe dissera e este algo era praticamente o mundo todo, pode-se dizer, algo o chutara, o xingara, o arrastara certa vez no desnível de uma feira de interior dentro de algum buraco de são paulo, algo o comunicara com olhos, ou cartilhas, ou referências pops, ou cultos subentendidos, ou tanto faz, que deixar uma prova viva no mundo, uma criança, não fazia parte daquilo que ele era. este era o preço, o simples preço, e em pouco tempo aquela vidinha se mexendo em seus braços, estragando seu cabelo, capaz de alcançá-lo quarenta anos no futuro e agora, talvez seu único real confidente que havia superado tudo isto apenas desapareceu, para não dizer que seu pequeno corpo não aguentou. agora era, mas já foi. não a respondeu, diria até mesmo, quase um ano. não é sabido por onde andou, se andou, se tinha comida, fome, ou alguém que o cuidasse. sabia sim que ele estava mal. mas depois disso, algumas mensagens esparsas de uma viagem com um possível namorado sérvio, doutor em arte brasileira, fotos de Samara Silva, uma amiga em comum, enquanto os dois fugiam de um péssimo quarto de hotel, claro, sem pagar.

Pensava no filho morto de Eugenio, porque pensava no filho não vivo que a ela veio. pensava em Regina, a médica amável e cara que a recebeu em uma clínica embaixo de sua própria casa, onde seus filhos viam um desenho japonês na sala, onde os suportos palavrões eram traduzidos a palavras ridículas como carambolas, pensava em quão sem sentido era servir água frutada às visitas, pensava no sinal em forma  de coluna vertebral de conha (o que claro não faz sentido) que a médica tinha no pescoço e como o pescoço é algo que não podemos de jeito nenhum esconder. que a médica sabia disso, e para ela seu pescoço era feio ou bonito por isso, mas exatamente dela. pensava que embora soubesse absolutamente bastante sobre como fazer uma interrupção de gravidez, mesmo assim perguntou a Regina se deixaria alguma cicatriz à mostra, em parte porque sabia que sim, uma do tipo enigmática e misteriosa apenas para os que insistem demais, e também porque queria uma de preferência bem visível. e que seus olhos fecharam não com a medicação somente, mas com o chorinho que a médica cantorolava, que parecia em um muito algo vindo de paulo moura, mas lálálá de dentro. que paulo moura agora estava para ela arruinado, embora a imagem dos lábios da médica tivessem um tom tranquilizante. pensava no filho abortado e no filho desejado, que em sua cabeça, em uma suave piração, poderia ser o mesmo filho de Eugenio, tentando uma segunda vez, ao que ela recusou. e de certa forma, achava que o traía.

o que ela queria escrever naquela lan house talvez tivesse a ver com o medo de no outro dia as crateras da lua mudarem de lugar e tudo ser para sempre inconsistente. tem a ver com o momento em que ela acordou, sozinha, e gritou pela médica, e esta chegou de pantufas e cheirando a alho. que por uns segundos imaginou as duas viverem ali e aquela ser sua vida, dua família, embora o nome de Regina só veio a sua mente depois. que o filho havia nascido, a médica em parte o adotado como uma segunda mãe, e agora passava o dia passando roupas, checando lições de casa, cheirando a sopa, leite, talco, decorando as genealogias dos desenhos japoneses e que não havia nenhum problema que não se resolvesse naquela casa com uma conversa que duraria uma semana, uma semana que duraria pra sempre. queria falar de como foi sentir-se a mercê das patas dos bois, dos cabritos, das vacas, sentir-se o próprio campo, onde os animais, antes do abate amontoam-se, ser o pasto, ter seus pedaços retirados e o corpo todo doer, esta sensação enquanto acordava. saber que o mundo ainda funcionava pois o útero doía, raspado, enjaulado em pequenas feridinhas da raspagem, como se atingido por um asteróide comprado no mercado ilegal. sobre escolher entre a vida e a morte.

sabia que não poderia ter aquele filho, primeiro porque não o queria, segundo porque não tinha ideia de como aquilo tinha acontecido. aquele quase-filho era a marca de um roubo, era uma ameça de morte que poderia voltar quando bem quisesse e sempre chegar nos objetos antes que sua própria mão. não tinha lembrança do que poderia ter ocorrido, e não tinha ainda como dizer algo que não sabe. mas talvez escrevesse para Eugenio, talvez esse Eugenio que nem sabe se existe ainda mesmo, se gosta de comer calamares ainda, se rir do mesmo jeito, ajudassem. mas não falou em estupro, ou em aborto, ou nada. apenas escreveu estar com saudades. porque acreditava que a palavra saudade é a maior palavra que existe, que se faz medida nas cabeças daqueles que passaram por nós, na soma de todas distâncias percorridas. porque nela cabe um mundo, um outro mundo, e lá poderia quem sabe pensar em nada ou muito pouco em si.

quarta-feira, 14 de março de 2018

o tradutor viaja

houve uma vez um tradutor. o tradutor se deparou com uma palavra muito esquisita no meio do texto. acabou que por anos e anos o tradutor perseguiu esta palavra. o sentido da palavra fugiu, e embora tivesse um primo inglês vivo, foi parar no norte da alemanha. o tradutor viajou até o interior da alemanha, onde encontrou antigos registros da palavra. no inglês a palavra queria dar a dizer algo como saciado. contudo, no interior do ex-mosteiro, ex-hospital de guerra, ex-restaurante chiquérrimo, ex-bordel, ex-museu, em terras germânicas, o texto dava a entender que ali indicava vontade de agir. seriam as planícies? o arroto específico do joelho de porco ao mel? mas o tradutor encucado não parou por aí. anos depois, descobriu um parente da tal palavra, um parente finlandês e viajou para a finlândia. a palavra fugida lá queria dizer inquebrável. por anos e anos o tradutor viajou em busca do sentido de sua palavra, e o sentido era sempre outro. em macal, havia uma irmã distante, furtada, que significava pote para guardar sopa, guardar e não comer - note bem. na américa, mais recentemente, a palavra quer dizer pessoa ingrata. um dia alguém levou o que restou desta palavra até a polinésia, que virou um espaço inconfundível por ser muito grande ou muito pequeno ou por apenas não existir o que não o impede de ser notado. sem se dar por realizado, deixando o texto incompleto no meio da tradução, um dia o tradutor cansou. abriu uma loja cujo o nome é a palavra fugida. pode-se dizer que o comércio não anda tão bem nas pernas. mas é inegável, vende muito no inverno.

as caras

uma família tentou contar aos jornais sobre o desaparecimento de uma rua. os jornais telefonaram para a prefeitura a prefeitura telefonou para os jornais que disseram o que já achavam que sabiam: naquele ponte exato ali nunca teve rua alguma. ali é um rio. os jornais telefonaram para o setor de língua portuguesa do próprio jornal, que fica ao lado do setor jurídico, embora todos eles, incluindo a redação metropolitana, fiquem um ao lado do outro no mesmo andar. contou o setor: uma rua é um lugar que possui uma ou duas calçadas. é considerada rua o local com a) espaço de passagem e b) espaço de permanência. uma rua é uma alocação onde é possível ir e vir, vir e ir. e o mais essencial: uma rua só pode ser considerada rua se existe a presença de pedestres. há alguém lá? perguntou o jornal. agora não tem mais mas antes tinha. a rua tinha, respondeu a família. esta rua, pode até ser um córrego, pode até mesmo ser um canal, destes que cortam a nossa cidade, água sobre terra. mas não é uma rua e portanto não pode desaparecer respondeu o repórter do jornal e desligou o telefone na cara deles. só que eles, a família, ainda estavam ali, pessoalmente em sua frente, e não usavam o aparelho. ficaram algum tempo olhando a feição do jornalista virar outra coisa, enquanto imaginavam para onde tinham sido levadas suas casas, inteiras ou despedaçadas?, imaginavam com a barriga para auxiliar a caber tal imagem. um dia os telefones também deixarão de existir, seja à mando ou à natural, tudo terá que ser coletado do rosto, aí eu quero ver.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Repolhos não dão a vida às lagartas depois de Merian desembarcar na América

- "Você sabe muito bem, a linha do equador é um rabo de saia" - disferiu o coronel Heshinball, enquanto procurava um local para deixar a colher à pouco mergulhada no chá.

Era de manhã, mas difícil convencer Merian disto. No dia anterior a este não dormiu, embora o responsável pela troca do querosene dos postes estivesse bêbado mais uma vez, e a rua rulminou noite a dentro completamente escura ela própria como um animal que dorme abraçada em seus pequenos brinquedos, as casas, podiasse notar um pequeno candaleiro aceso na terceira quadra. Era Merian lendo o livro contrabandeado por sir. Kruvon, do arquivo pessoal do palácio Prussiano, pela quarta vez durante aquela semana. Merian copiava qualquer figura desconhecida em seu próprio caderno, como quem busca salvar uma espécie da extinção. Ali dormiam seres nunca antes vistos pelos germênicos, seres de duas cabeças? oh não, o lampareiro está fraco outra vez, seres alces, metade gente? porque a mitologia grega sempre toca a campainha primeiro?, insetos de oito patas, gigantes perto de uma folha, ou sera a folha tão minúscula quanto um seixo? seres irreais por porsuposto, pois estes rabiscos da corte imperial possuem quase cem anos, o ambiente tropical dizem, é como cavalgar em nuvens e os sentidos são mudados. "acreditar no sonho é acreditar no mundo", lembrou da fala de sua mãe tantas vezes antes de dormir. detestava este tipo de falsa arquitetura, onde o conhecimento prático é tão nítido quanto tentar desenhar um animal pela visão da gaiola vazia. "esta não é a verdade, é apenas o começo de uma delas", e no findar dos calcanhares no inverno, os casacos cumpridos são os reis. para o mistério a ciência aluga as chaves. a ciência aluga? isto caberia em um discurso na associação de especies exóticas de Hamburgo? a ciência alaga..., é o último pensamento consciente antes de pegar no sono em cima de sua mesa de trabalho. na mão um caso de besouro resteia em meio ao toque exato para que não sofra nenhum dano. não havia como negar é isto, na hora de dormir, surgiam os traços da mãe, por hora via-se extremamente poética.

- "Eu sei aonde tu queres chegar com isto sr. Heshinball. A américa não é lugar para mulheres".

- "A américa não é lugar para ninguém, não é lugar para gente alguma".

-"Não é em gente que estou interessada. O sr. sabe muito bem. Mas em bor.."

- "Borboletas! Borboletas, oh céus. Pelo coração de Maria. Sim, eu sei, querida Marian"

- "Oh que surpresa. O sr. me ouve afinal de contas" - falou rapidamente enquanto usava os olhos para espionar qualquer coisa que Doroteia estava fazendo na estante de livros perto dos dois.

Marian tinha 52 anos quando desembarcou no Suriname, junto com sua filha no ano de 1699. Desde os 13 anos de idade, sendo capaz de manejar o lápis com uma precisão indomável, enquanto as crianças corriam de um lado a outro, passava a maior parte do tempo parada. Observando. Como se parte da paisagem. As flores, os ramos, as folhas, o botão das flores, seu desaparecimento no solo. Um louva-deus. Suas pernas cumpridas, hora menos, hora mais, seu meteórico ritual de casamento, uma peça shakespeariana. Como se o mundo coubesse em uma peneirinha e depois de muito balanço, naturalmente, se depurasse, até as peças fundamentais ficarem presentes. E elas eram belas, e assim, construiam outras peças, como por exemplo a seda inglesa que constituia o jogo de cama herdado dos avós, só usado em alguns momentos especiais do ano. os bichos fazem a seda, quando dispostos de maneira particular. mais tarde a seda compre os bichos, digamos, nós mesmos. entre uma coisa e outra existem os mais diversos passos coreográficos que poucos se despuseram a anotar, decorar, decifrar, e em seus desenhos eram relatados de modo obssessivo. Foram estes mesmos o resposável por, anos mais tarde, por via da publicação deles em forma de livro, ter dinheiro para esta viagem.

Antes de Marian existir ninguém se interessava em saber da onde vinha as lagartas, ou as borboletas, e ninguém, absolutamente ninguém, havia ligado uma coisa a outra. As lagartas vinham dos repolhos, como seus soldados, como se fosse seu deus. As borboletas eram presságios, um dia bom, riqueza, mal agouro, dependendo se viva ou morta aparecesse, a cor que carregasse. Marian estava obestinada a não perder um momento só da vida de ambas, e com  a ajuda de sua filha, as quatro se encontraram. Antes um casulo foi necessário ser usado para isto.

Os peões carregavam a mala em uma trilha muito estreita na mata. "Mutucas", fala o tradutor. "Se chama mutucas". A trilha parecia menor ainda pela nuvem de insetos que tentavam desesperadamente entrar em contato. "Eles gostam de sangue doce", traduziu do francês desengonçado do indígena, novamente, o acompanhante alemão. Dorotea, assim como a mãe eu seus desenhos, pausou aquele momento. Nele imaginou as barriguinhas dos insetos vermelhas, com um pedaço de cada um que ali estava, tudo misturado, como uma receita de torta. Imaginou seu pedacinho seguindo pela mata amazônica, do extrato do inseto voltando para a terra, depois, vivendo no casco de uma seguingueira por décadas, até se, por azar, fosse roubados por borracheiros e voltasse para a europa em forma de um utensílio da moda completamente sem serventia. Eu quero ficar aqui, pensava Dorotea, enquanto a cada passo ia rasgando mais a barra do vestido, expondo-se ao calor, a umidade, aos insetos. Em sua frente, sua mãe flutuava. O vestido ia se aglomerando em terra, tropeçando em si mesmo, mas nada era capaz de tirar a satisfação que o corpo encarava sem problema algum. Ali eram pequenas, e como prédios, as árvores altas detinham a passagem da luz. Tudo era novo e um mistério temporário. Mas para existir precisava ser contado. Elas estavam no lugar certo.

O quão ridículo era, depois de séculos, a metamorfose das borboletas ser reduzida a uma metáfora tão pobre. A amazônia não é tão longe, e o Suriname está logo ali. Aqui é o lado oposto. A terra é como um talco, o verde é escasso, os animais são poucos. O que os bois podem me ensinar de novo? Radi pensou em como teria sido a primeira vez que Dorotea viu um casulo, com certeza era ela e não a mãe. Estava com as rouplas frouxas, embaixo de uma sequoia, segurando uma edição recente de Yeats. O suor corria como uma simulação de planeta, refrescando e acaolorando ao mesmo tempo, e se o corpo fosse um entrelaço sussetivo de cordas, como a dos barcos, o suor era esta força que as mantinha. Radi imaginou o corpo jovem da alemã, aos coxas resvalando na raiz da velha árvore, o pé, enquanto ninguém olhava, descalçado como o chão, os seios levantados como um animal a botar o rosto sobre a mata, procurando comida. Dorotea estava lá, fugida dos empregados, dos padrinhos do novo mundo, tentando fingindo para si mesma ler poesia inglesa, enquanto na verdade sua imagem folheva o rosto do servente indígena, de idade semelhante, de quem não entendia nenhuma palavra o que não a convencia a tirar os olhos de seu rosto. Então, por gostar de ser literal e viver verdadeiramente as situações fosse o modo de encarar a ciência na vida, se pôs de cabeça para baixo. E este foi o momento, onde na inversão da terra e do céu, acima do seu livro, de uma aparente folha seca muito esquisita, uma pequena borboletinha colocou a pata afora.

Depois, enquanto procurava um lugar para carregar seu celular, na sala da pousada, sentiu um leve pontapé no dorso. Marian relatou o mundo neste continente antes da nossa chegada. Marian era alemã, assim como parte de sua família. Ela também fazia parte daqueles que fizeram os desenhos da bióloga tão raros, pois, ela fazia parte daqueles que a destruiram. E se a mata, no caso aqui, o rio, o pouco pasto, a argila, o mangue, o deserto, tivessem consciência disto sua vida estava à perigo. Não pertenço a este lugar e é aqui também o que quero salvar. Talvez este seja o problema e haja um tipo específico de feição única capaz de relatar o quanto perverso este pensamento dobrado sobre si é.

Mesmo o esforço da imagem da filha de Marian envolta nos lábios de um ar tropical não salvou Radi de se distanciar do tempo seco. Do verdadeiro motivo porque estava tão sozinha neste vilarejo dentro da cidade, dentro de um relógco desacelerado. É verdade que senhorita Marian foi muito famosa. Mas seus desenhos eram bons demais, e ninguém ouvia o que ela falava. Ninguém acreditou no seu relato da tal metamorfose, tendo sido a descoberta atrelada a um homem, pouco tempo depois. Seus textos foram desaparecendo, e só as ilustrações restaram, várias e várias vezes reproduzidas. Meus seios parecem mais murchos, Radi pensou em Dorotea e seus 21 anos, naquela imagem fictícia da sequóia. Não sei quanto mais durarei neste lugar. Não sei se não descobrir o motivo de estar realmente aqui faz uma viagem não ter sido sucedida. Eu estou aqui pelo passado, isto é certo. Por tudo que já aconteceu.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

uma cidade sem mulheres

I

Helenita, com você não posso mentir. Pois você me escuta e além disto é um mistério, não sei onde você começa ou termina, quantas são, quantas perdeu, quantas já tiveram a coragem para pular do alto de uma cachoeira, quantas morreram à nado. Não posso mentir para você pois não sei onde você está, e assim, você está aqui a todo instante e daria muio trabalho encobrir a verdade ao vivo, sem cessar uma vezinha. Não é fácil ser quem eu sou.

Fujo de Euclides, como se em um milagre, os troianos pudessem ter visto o futuro. Digo Euclides, pois me diverto sozinha, Euclides o matemático, chama-se Jonas, e é apenas um professor desses jovens e pacatos, que moram com a mãe e andam por aí, encomendando partes de mulheres, um bom par de peitos na santa efigênia, uma conversa sobre Salvador Pellejo, pernas elásticas no Paraíso, uma boa mão que como tenda o coloque para dormir na zona sul. Não é fácil ser quem eu sou e quem eu sou diz respeito a você também, a nós todas, não está fácil ser mulher. Quando não é Euclides, é Toni, quando não é Toni, é Jaime, quando não é Jaime é Bráulio. Outro dia saímos do centro de estudo e porque é com eles que vivo, que durmo, que como, que almoço, mas nunca que choro ou deixo escapar qualquer tipo de riso sem vistoria, porque é eles infelizmente o que tenho, principalmente a promessa de ajudar-me em uma questão tão específica como esta, fomos jantar no Salgueiro.

Pois não é que a promessa, por óbvio se desfez, como a palavra licor e a pele de uma prostituta numa metáfora da péssima poesia byron-brasileira? Bráulio de novo, me enrolou, falou de um tal de Jeremias, nascido na fazenda de seu avô. O Jeremias agora era traficante, muambeiro, comerciário, o Jeremias falava chinês e vendia barro, mas não era barro, eram pedras muito antigas embora bem a vista do solo pois a terra, em sua competição contra o tempo vence pela confusão, e de repente lá estão, a vida encarcerada dos antigos bichinhos, não menos vida por isso, a pedra, o barro, o esqueleto do peixe do terciário impresso nas mãos dos acadêmicos chineses e Jeremias no meio, ganhando uma nota, dizendo, do barro viemos não é mesmo, aqui é a seca, não é mesmo, eu tiro leite de pedra mamãe, não sou burro. E eu olhando pro tal do Bráulio, eu dizendo, puta que pariu Bráulio, e eu com isso, um traficante de merda, eu não tenho tempo pra essas coisas, e ele pedindo um conhaque, quatro conhaques, babulciando, o Jeremias um dia explodiu o trator do meu pai enquanto foi mijar e deixou ele ligado, depois aprendeu a mijar do trator mesmo, era como um arcoírizinho, o jato amarelo contra o sol, o Jeremias tinha 13 anos quando engravidou a irmã do Lindomar, mas isso ninguém sabe se é mentira ou verdade, e chegando mais perto de mim, com seus olhos de preguiça enroscados em uma hipotética palmeira, eu no caso, em sua imaginação pelo menos, o Jeremias gosta de comer feijoada na terça-a-noite, e hoje é terça-a-noite, e por isso estamos aqui, se explicava enquanto fechava a braguilha após vir do banheiro. Afinal esta é uma cidade pequena e embora o tenho seja pouco, não há muito o que se fazer por aqui, mas mesmo assim me pergunto, enquanto abrigo um crustáceo asfixiado no pulmão direito, o que faço dia e noite, bebendo com esses homens, uma gangue de homens com quem tenho pouco ou nada a ver, desejo de estar, e só me escutam à prestação, com suas línguas de cobras sendo afiadas, à espera de uma troca esquiva, uma trepada, uma indicação futura na acadêmia, o meu nome copiado como carimbo, enquanto sentamos perto demais no balcão e nossas peles se tocam unidos pela mesma luz tímida do salão, ou apenas isto, uma mulher, qualquer que seja, que ache que pode ser mais do que isto, um animal entre nós, que nos dê uma liberdade de virar bicho, pelo imediatismo, fome, desejo, loucura.

Mas apesar de tudo Helenice, há neste mundo Eustácio, e ele é a cópia não da chave, mas da casa, que levo nos ombros, é ele que me salva, pois onde nossas palavras combinam de se encontrar é um cenário com um medo muito parecido, e por isso sincero, e eu ele dividimos algumas coisas. Este é também o tipo de intimidade que faz eu, alguém da minha posição, passar trabalho, não vou dizer que não dói, ter Toni pagando almoços, e eu pagando dobrado para o garçom logo em seguida, de qualquer forma ridícula tentando me impressionar, não como Bráulio, com mãos na coxa como uma pulp pornô italiana, nem sei se existe esta denominação, tentando me vencer pelo cansaço, pela eletricidade independente que cada corpo possui, postanto lembretes aos poucos do tipo, você tem pele, cabelos, seu corpo sua, fode, come e caga, não há como impedir isto, mas sim com pequenos gestos que chegam a dar vergonha, como conselhos para lidar com uma ex-namorada inexistente ao telefone antes de dormir, receitas de massaroca de mandioca, versos de Gilka Vargas nos momentos mais impróprios, como quando sento para escrever e-mails aos parentes, como se ler uma mulher praticamente esquecida, como se ler uma poeta, fizesse dele um ser duas vezes mais presente, mais fiel. Mas esta dor falo pois tem a ver principalmente com aquele cenário meu e de Eustácio que te falo, este véu desbotoado acima de nossas cabeças, onde nos encontramos, e lá, uma mancha mais escura em uma escada pode ser, por exemplo, a memória do sangue, lá por exemplo, embora nossas frases sejam sempre trocas aparentes de amenidades, o dia em que perdeu um dos dentes de trás para um sujeito mal-humorado, que durante um encontro por ambos aceito, ou chamou de bicha, o deu socos e pontapés, e o deixou pingando envolto em um tipo de nuvem polvorosa que de vez em quando aparece em nosso secreto lugar. E me dói olhar para Toni, e olhar para Eustácio, e saber que Eustácio deseja Toni naquele ponto onde um acidente chega a ser programado, isto é, onde não há controle, ou lógica,a vida é em si a própria obsessão, e apesar de prometer a si não deixar escapar nenhum pequeno sinal, nem uma resmungada ao ser ignorado, ou sorriso esticado trazendo um silêncio exagerado consigo, apesar de puxar todas as redes do mar, fechar seus cadernos, há momentos em que algo se sobrepõe e tudo se justifica. Até mesmo a surra, até mesmo a solidão. Este é o Toni que nos apresenta, mas o Toni mesmo, tenho certeza que pode ser capaz de qualquer coisa principalmente matar em um devaneio. Duvido de homens que insistem desta maneira, duvido daqueles que fazem promessas a si. Eu tenho compaixão por Eustácio e talvez até mesmo amor, principalmente porque nos encontramos sem conversarmos, darmos nomes aos objetos, nos limparmos no mesmo segredo. Eu sei que ele é bicha, ele sabe qualquer coisa de mim, e imagino que deva estar certo. Quanto aos outros, ao duelo carinhoso entre Bráulio e Toni, este bar com areia de chão batido onde juro devíamos escutar o rio, mas há algo que bloqueia, apesar de estarmos tão perto da costa, há algo de misterioso que funciona como um muro, que interrompe o ar, a sua vibração, e com toda certeza faz parte do motivo pelo qual estou aqui, o pouco que guardo é uma indiferença quase que geológica. Por que nesta parte específica do país, um solo se degradou a tal ponto, as camadas sedimentares se enroscaram de tal forma, o vento faltou ou exagerou, a erosão, a força da maré, isto é: os tempos do mundo coexistem, os mortos voltam a superfície, e em minha cabeça, estes homens e este lugar muito poderiam ser resultado deste fenômeno. Este é o Ariripe agora.

Sinto falta de você Helenita, mas sei que falo por todas mulheres do mundo. Aqui quase não há mulheres. Há sim pencas de mineradores, jornalistas eventuais que farejam a dor destes tais mineradores, há acadêmicos com eu e esta minha gangue de homens que em um fraquejar de cordas podem me devorar em um instante. As mulheres dos políticos estão nas cidades ricas, as dos trabalhadores em outro estado, onde ainda há água, e a terra é tão espremida para dar em algo, que abandoná-la é como deixar um pedaço da própria mão. As poucas que aqui habitam ou são muito religiosas ou os maridos as impedem de sair de casa. Passo em frente a janelas, elas se fecham para mim, antes levo junto um rasgo, um borrão, é uma mãe de alguém, uma avó, com quem converso apenas mentalmente, e imagino, é por isto que esta cidade é tão silenciosa, é por isso que o cemitério, grande demais, guarda. Alguém pra puxar papo, alguém para chorar por uma bobagem como uma cor imprevisível do céu, alguém para eu confundir com minha irmã, com a mulher no trem de Lisboa que juro que amei, embora nós tenhamos trocados apenas um minuto de olhares cruzados, desbrocando o parafuso da sanidade, sempre retornando em momentos como esse como um fantasma de estimação a me por contra a parede. Alguém para dividir uma escova de cabelos, pedir o absorvente emprestado,e rir pois, não é possível emprestar um absorvente, e a cólica afunda mas nosso corpo não tem centro e tudo bem. Um par de seios, céus, para emagrecer as retas destas pedras e balançar o mundo. Um par de pernas, que acentue. Uma puta a nos lembrar este nome, e me faça sentir mal por ouvi-lo e ter saudade do que remete.

Estou só com nosso passado. Cansada de ser perseguida, treinada na fuga das armadilhas, aprender com a ferrugem a descercar uma palavra exata para um momento continuar sadio. Não é isto com que me importo, desde sempre foi assim, existe o medo, mas o medo é aquela camada vagabunda do afresco, a tinta que descasca rapidamente quando precisamos ser sérios, sei me proteger. Mas para que mesmo preciso? Eu penso em Lucy, penso na Eva mitocondrial, pensou em você, minha maior amiga por mais chegar próximo de me odiar tão completamente e o que seria isto se não não temer conhecer alguém de verdade? Imagino que em outra vida fomos piratas, mulheres piratas, moramos nas Bahamas, e, depois de algumas aventuras, nos dobremos a vida pacata, abrimos escolas, ajudamos prostitutas, tivemos muitos filhos. Mas agora é isto. Estou no interior do Ceará, absolutamente desfalcada. Ainda não sei se tenho raiva de você naquele ponto de querer te ver de novo, como fazem os amigos, pequenos cafés, pequenas dormidas um na casa do outro, lembrando de ex-amantes que esquecemos, de palavras feias que já falamos, a anatomia do monstro estudada no choque do cheiro de torradas com geleia de jabuticaba. O fato é que falo é pra você, e assim corrijo os mapas, e juro, em uma versão deste mundo, estou no caminho certo.