nessa época sua mãe recém tinha saído de casa pela primeira vez, recém tinha pego um ônibus, no que poderia ser um primeiro dia da escola. depois, foi preciso essa pólvora chegar até o sul do nosso país, a carga de chumbo vinda de Araça demoraria mais três semanas, e nesse tempo sua mãe ja tinha uma melhor amiga, a Dilce, você deve lembrar, que tudo mundo dizia que ia ficar cega, e provavelmente foi isso a primeira coisa que ela disse para sua mãe e depois foram brincar, mas nunca ficou porque um diagnóstico não é uma coisa exata.
em Chuí, extremo sul de nosso país, o chumbo da cápsula, retirado das entranhada na terra em uma mina na divisa do Brasil e Paraguai, à séculos sendo gestado, a pólvora, as 200 toneladas do lote ficaram prontas e exposta por meses no galpão da fábrica Meltra, com mais de 100 anos de atividade, e seu tio Patrício recém nascia, o último e mais mimado, imerso em um choro suspendido só solto após os três tapinhas atrás das costas dado por sua avó, desesperada, retirando a criança das mãos da parteira.
quando você nasceu o lote do projétil foi despachado para alagoas, comprado pelo governo federal. o projétil ficou por muito tempo em um navio, preso a cordas, balançando sem parar até chegar ao norte. lá, foi içado, pegou auto-estrada, estrada de chão, até encontrar a sede de treinamento da polícia militar do estado. a ideia era que o projétil fosse usado como treinamento para os novos soldados. mas naquele tempo a necessidade era muito grande de se colocar novos agentes na rua ou assim queria o governo, e embora houvesse um tempo previsto, de teste, estudo e prática, cada vez menos projéteis eram usados no treinamento. o desperdício também não era bem quisto, e uma bala custa dinheiro diziam os gestores militares pois assim teriam dito os gestores civis. o projétil então acabou em um outro cenário, melancólico a altura do anterior, no subsolo do centro de comando, caixas e caixas entulhadas, pressionadas, e ao lado peças de carros, caminhonetes da força que possivelmente estragaram antes de sair as ruas.
na hora que você veio o mundo ninguém mais esperava boas notícias. as hidrelétricas tinham parado de funcionar por hora, e metade dos estados aumentavam o coro da noite, amargurados, sem energia elétrica. parados. então você veio, no clarão dos olhos de sua mão, de sua irmã, que tremia ao candelabro sem parar, sem ver que se queimava sem querer, fazendo tudo voltar a funcionar. porque tudo cabia em uma salinha.
aos doze anos de idade você queria estudar música. queria ser cantora mas não sabia cantar. então queria tocar piano, mas era muito grande e você tão pequena. seu pai teve que trabalhar dois meses em mais um bico a noite, para no fim, conseguir comprar um violino de segunda mão. você nunca tinha visto um violino então não sabia se gostava ou não. na dúvida, dormia com ela ao lado, como um urso de pelúcia, como um guardião. aos poucos a intimidade entre vocês crescia, timida, misteriosa, e você ia o apalpando, na madeira, nas cordas, no arco, e descobrindo o som que poderia vir dele. quando você finalmente começou a fazer aula de música, em uma associação ao lado de casa, onde poderia ir a pé e comer um sanduíche ao mesmo tempo, parte da carga do projétil partiu para Vitória, no Espírito.
o seu projétil estava do lado esquerdo, a do lado direito ficou, esta se foi. em Vitória o projétil seria usado pela polícia rodoviária. o projétil pegou carona de um caminhão da polícia militar, onde o soldado responsável ouvia sem parar Leandro e Leonardo. se o projétil fosse gente, chegaria exausto a seu destino. se não fosse, mas pensasse e amasse, pensaria que há algo de errado com nós, com nosso jeito de amar, porque até mesmo para a tristeza se necessita trabalho. o projétil ficou lá por um bom tempo, intocado em meio há tantos. algumas caixas do mesmo galpão foram embora. até mesmo para o Haiti. o seu ficou, abaixo de todos, o primeiro no contato com a terra úmida.
quando você estava estudando para entrar na faculdade seu projétil foi parar em Salvador. parte foi desviada, pelo próprio chefe do batalhão, falsificando simples documentos ou não fazendo a prestação de contas devida. o responsável vendeu o lote em troca de uma quantia em dinheiro e haxixe. naquela época era difícil encontrar haxixe por aqui, e o chefe do batalhão era esperto.o lote foi mandando em meio a uma carga de bolas de vôlei e futebol par ao público infantil. Ia escondido, no meio da carga, para que ninguém desconfiasse. quando você recém estava terminando a escola, quando decidia-se entre continuar com a música ou apenas vê-la com uma paixão a mais, uma chance de amortecer os dias e torná-los mais belos sem esforço, o lote com o projétil estava em uma garagem, atirado, e passava as semanas ao som do barulho do mar.
você se formou na faculdade, você foi a primeira pessoa da sua família a entrar em uma. na sua turma, só você era do leste da cidade, e foi o leste que falou no discurso de formatura. destes, você era das poucas mulheres em um curso onde havia praticamente homens. depois da cerimônia, foram a casa dos seus pais, cada dia uma casa mais nova pois você a reformava. estudara, entendia da onde vinham os equipamentos, a matéria prima de construção, de onde vinham o preço alto, o preço baixo. você poderia construir uma casa do zero e de certa forma sua vida não era só sua, era também a vida das casas. pequenos remendos foram responsáveis para que a calha não mais inundasse, e a rua não mais alagasse. coisas simples.
você pegava seu diploma e na calada da manhã o lote do projétil sumia. dessa vez, a mão armada, roubada por uma quadrilha especialista em munição. sabiam os tamanhos, tipos de materiais, diferenças de milímetros, velocidade, composição, tipos de armas, paises de origem, usos específicos conforme a necessidade da ação. o roubo foi feito em cima de outro roubo, o desvio, então não há como saber quem foram os responsáveis. apenas que sabiam de tudo, da localização, da quantidade, do tipo, da melhor hora, informações da melhor qualidade.
quando você estava prestes a dar a luz, o projétil que até então estava desaparecido ressurgiu em Embu das Artes, São Paulo. o mesmo lote da sua bala foi usado para matar oito jovens, uns praticamente crianças, que estavam na praça brincando em um final de noite. um deles estava no telefone na hora, ele roga por deus e o telefone vai ao chão. todos são mortos com um tiro no crânio e tiros subsequentes na região do peito, mais de 100 tiros ao todo. a câmera do telefone registra tudo. é possível ver três homens encapuzados, com roupas completamente pretas e armas semi-automáticas. um deles ri, outro só sabe uma palavra: filho da puta. o do meio é mais comedido, fala bandido e é o último a começar a atirar e também o último a parar de disparar. você estava grávida e seu projétil já tinha matado oito pessoas, em uma chacina, fora o que não se sabe. o seu projétil quase foi levado junto. mas na pressa ele foi deixado no carro.
quando sua filha tinha 9 anos você participava de se virava entre trabalho nos escritórios de manhã e dar aulas de violina a noite, na mesma comunidade onde estudo. na mesma associação. de noite, jantava com sua mãe. às vezes vocês brigavam, por simples desavenças na hora de educar sua filha. muito bolo, muito achocolatado. muito mimo. às vezes vocês só ficavam em silêncio, se abraçavam vendo um telejornal, ou então sua mãe acendia uma vela e assim você entendia. naquele dia alguém muito especial tinha morrido, morrido pro mundo mas não para vocês e era preciso estar atento a isso. era preciso estar juntos.
num destes telejornais vocês viram uma matéria que falava da morte de um assistente social. dois tiros na cabeça, a moda de execução. algumas das hipóteses trabalhavam em uma esdruxula história tapa buraco, de que o homem era gay e estava apaixonado por um viciado. na briga, na droga, na raiva, o homem o matara. outros dão conta de denúncias que ele tinha levado a cabo, denúncias transportadas de forma anonima dos próprios moradores, que o assistente, tomou coragem de ser porta voz. eram moradores que tinham sido saqueados por próprios policiais, em rondas, em alegações de perícia fraudadas e visitas sem mandatos. o assistente achava que nada aconteceria por ele, em parte porque não era da comunidade, em parte porque justamente por isso não sabia o risco que corria. quando seu irmão trouxe sua filha finalmente a casa da avó, você tentou de todos os jeitos tapar os olhos dela enquanto a matéria rodava, mas a imaginação da audição era mais forte. você tinha vinte e nove anos e o lote do projétil agora foi levado até Rio de Janeiro, onde parte dele acabou no corpo de um homem de pouco mais de duas décadas vividas.
foram questões de meses. o projétil agora e você já estavam na mesma cidade. o projétil era mais velho do que você, mais viajado, rodado todo o páis e voce nunca saido do estado. ele poderia estar até mesmo velho de mais, mas não é assim que funciona com os objetos, ainda mais do que os desse tipo. você saía cedo para trabalhar, o projétil saía da zona norte. você almoçava dentro do carro apressada, antes de uma reunião com a conselheira escolar, o projétil agora dormia em um porta-luva. dessa vez, da vez que vocês dois se encontraram, você e o projétil que a matou depois de uma longa e cara jornada, não foi tudo tão bem planejado com os dois anterior, não foi a prova de erros, ou incontido até certo controle. no outro lado da rua da associação de música, uma família fazia um churrasco na rua. havia balões, poucos, mas havia. um carro desceu, os homens de preto desceram, procuravam alguém, alguém que nem mesmo eles reconheceram. na dúvida e na vontade, começaram a atirar. na dúvida ou na vontade todos eram aquelas pessoas, sem distinção. alguns conseguiram se abaixar, apenas se misturando a toalha da mesa e fugindo de virar um alvo, outros que tentaram correr foram os mais atingidos. também haviam crianças. você estava entrando no carro nessa hora, estacionado de frente da associação. quando acelerou, um dos homens descarregou um pente no vidro do seu carro. os dois primeiros, um pegou no ombro, outro passou de rasão pelo braço. mas o projétil que matou você, que demorou quase cinquenta anos para ser usado e terminar ali em você, o que realmente tirou sua vida foi o terceiro. como da penúltima vez, muitos foram os buracos de bala, o barulho, os disparos. a raiva. os homens encapuzados bem que tentaram recolher algumas das cápsulas, mas eram muitas, elas não acabavam em frente as vistas. o resto do lote do seu projétil passou um tempo em uma casa alugada, em uma delegacia, continua vivo.
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