terça-feira, 20 de março de 2018

um e-mail nunca escrito direto do ano de 1996

foram mais de quatro os quarteirões arrastados por seus cadarços desamarrados. no dia anterior ainda chovia, as poças demoram tanto para secar nesta parte específica da cidade, desatenta à qualquer força natural. o terreno úmido, o sol à degola, o corpo servindo de cansaço para a digestão do pesadelo de uma parte considerável da zona norte. foi ali onde decidiu-se por escrever uma carta, tão breve como um reflexo, um soluço, um espasmo. era o ano de 1996, Eugenio Trinto não dava sinal de vida ou morte há mais de três. era o ano de 1996, travestido no ano de 1992, onde em um final de semana o carro quase atingiu um cavalo, um caminhão, uma travessia para qualquer lugar desconhecido, também com uma pitada de 1990, onde tanto ela quanto Eugenio se achavam gênios incansáveis, capazes de redecorar qualquer cela, de curar tudo com um estardalhaço, afinar um violão no grito. foi ali, ao lado  da vendia de abacate e mamão, no mistura influenciada pela fala da senhora com alzheimer confundindo o engraxate com um primo morto na guerra agora vivo, segurando o peito como as mãos, faz de conta elas, dois ímãs gigantes, que entrou na lan house e mandou uma pequena mensagem.

na penúltima vez que se falaram, quando ambos deram por encontrar-se meio sem querer numa exposição de Chico Baltar, em algum lugar de Vitória, Eugenio recém tinha as passagens compradas. alguns meses depois mandava um longo e-mail, recheado de fotos de pássaros, e cocos de pássaro, e comidas de pássaro, alegre por morar perto de um viveiro, onde dizia: Madri é linda. Logo em seguida, enganchado a esta mensagem, havia um segundo e-mail onde escrevia atônito que engravidara uma mulher, que seria pai. o tempo dentre uma mensagem e outra era de não mais que dez minutos, dez minutos que Eugênio já era outra pessoa, pessoa que tinha perdido qualquer vestígio, e agora tudo que possuía eram rastros na mata seca. aquele intervalo, ela pensou, era como um bote fora do tempo, onde sempre é possível retornar, é o momento em que achamos não saber mais de nada, é portanto o melhor de nós - o que está por vir. os dois, ele e a mãe da criança, tinham se conhecido na boate onde ele trabalhava às terças e sextas e também as vezes aos domingos o que era triste, e aconteceu durante dividiam a cama, pela manhã, absolutamente sóbrios e conscientes, depois de um dia de trabalho puxado e uma raiva compartilhada por seu chefe em comum. meses depois de seu e-mail, o filho, o milagre do filho, é perdido e Eugenio se deprime. nunca achou que teria um filho, ou que transaria de novo com uma mulher. nunca pensou na possibilidade do primeiro. algo lhe dissera e este algo era praticamente o mundo todo, pode-se dizer, algo o chutara, o xingara, o arrastara certa vez no desnível de uma feira de interior dentro de algum buraco de são paulo, algo o comunicara com olhos, ou cartilhas, ou referências pops, ou cultos subentendidos, ou tanto faz, que deixar uma prova viva no mundo, uma criança, não fazia parte daquilo que ele era. este era o preço, o simples preço, e em pouco tempo aquela vidinha se mexendo em seus braços, estragando seu cabelo, capaz de alcançá-lo quarenta anos no futuro e agora, talvez seu único real confidente que havia superado tudo isto apenas desapareceu, para não dizer que seu pequeno corpo não aguentou. agora era, mas já foi. não a respondeu, diria até mesmo, quase um ano. não é sabido por onde andou, se andou, se tinha comida, fome, ou alguém que o cuidasse. sabia sim que ele estava mal. mas depois disso, algumas mensagens esparsas de uma viagem com um possível namorado sérvio, doutor em arte brasileira, fotos de Samara Silva, uma amiga em comum, enquanto os dois fugiam de um péssimo quarto de hotel, claro, sem pagar.

Pensava no filho morto de Eugenio, porque pensava no filho não vivo que a ela veio. pensava em Regina, a médica amável e cara que a recebeu em uma clínica embaixo de sua própria casa, onde seus filhos viam um desenho japonês na sala, onde os suportos palavrões eram traduzidos a palavras ridículas como carambolas, pensava em quão sem sentido era servir água frutada às visitas, pensava no sinal em forma  de coluna vertebral de conha (o que claro não faz sentido) que a médica tinha no pescoço e como o pescoço é algo que não podemos de jeito nenhum esconder. que a médica sabia disso, e para ela seu pescoço era feio ou bonito por isso, mas exatamente dela. pensava que embora soubesse absolutamente bastante sobre como fazer uma interrupção de gravidez, mesmo assim perguntou a Regina se deixaria alguma cicatriz à mostra, em parte porque sabia que sim, uma do tipo enigmática e misteriosa apenas para os que insistem demais, e também porque queria uma de preferência bem visível. e que seus olhos fecharam não com a medicação somente, mas com o chorinho que a médica cantorolava, que parecia em um muito algo vindo de paulo moura, mas lálálá de dentro. que paulo moura agora estava para ela arruinado, embora a imagem dos lábios da médica tivessem um tom tranquilizante. pensava no filho abortado e no filho desejado, que em sua cabeça, em uma suave piração, poderia ser o mesmo filho de Eugenio, tentando uma segunda vez, ao que ela recusou. e de certa forma, achava que o traía.

o que ela queria escrever naquela lan house talvez tivesse a ver com o medo de no outro dia as crateras da lua mudarem de lugar e tudo ser para sempre inconsistente. tem a ver com o momento em que ela acordou, sozinha, e gritou pela médica, e esta chegou de pantufas e cheirando a alho. que por uns segundos imaginou as duas viverem ali e aquela ser sua vida, dua família, embora o nome de Regina só veio a sua mente depois. que o filho havia nascido, a médica em parte o adotado como uma segunda mãe, e agora passava o dia passando roupas, checando lições de casa, cheirando a sopa, leite, talco, decorando as genealogias dos desenhos japoneses e que não havia nenhum problema que não se resolvesse naquela casa com uma conversa que duraria uma semana, uma semana que duraria pra sempre. queria falar de como foi sentir-se a mercê das patas dos bois, dos cabritos, das vacas, sentir-se o próprio campo, onde os animais, antes do abate amontoam-se, ser o pasto, ter seus pedaços retirados e o corpo todo doer, esta sensação enquanto acordava. saber que o mundo ainda funcionava pois o útero doía, raspado, enjaulado em pequenas feridinhas da raspagem, como se atingido por um asteróide comprado no mercado ilegal. sobre escolher entre a vida e a morte.

sabia que não poderia ter aquele filho, primeiro porque não o queria, segundo porque não tinha ideia de como aquilo tinha acontecido. aquele quase-filho era a marca de um roubo, era uma ameça de morte que poderia voltar quando bem quisesse e sempre chegar nos objetos antes que sua própria mão. não tinha lembrança do que poderia ter ocorrido, e não tinha ainda como dizer algo que não sabe. mas talvez escrevesse para Eugenio, talvez esse Eugenio que nem sabe se existe ainda mesmo, se gosta de comer calamares ainda, se rir do mesmo jeito, ajudassem. mas não falou em estupro, ou em aborto, ou nada. apenas escreveu estar com saudades. porque acreditava que a palavra saudade é a maior palavra que existe, que se faz medida nas cabeças daqueles que passaram por nós, na soma de todas distâncias percorridas. porque nela cabe um mundo, um outro mundo, e lá poderia quem sabe pensar em nada ou muito pouco em si.

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