era recém seis horas e eu já havia ido embora. não podia arriscar mais um mudança de última hora. as provas, as correções das provas, as provas que nem são mais provas. as cores do anúncio mudados na última hora, um segundo antes de um pensamento mais rigoroso terminar de chegar na cabeça de Wando, um pensamento em meio a tantos outros, como os papéis do divórcio, o presente de natal da filha mais nova, o telefone desligado por mais de dois dias da amante, a promessa de parar de beber indo e vindo nos lábios salgados, ainda molhados na maré baixa. meu chefe não era uma pessoal muito difícil de lidas mas também, era até mesmo simples demais, tirando os últimos dias onde todo escritório parecia ter sido rebaixado a um péssimo reality show, onde coisas apareciam quebradas na cozinha seguido de gritos estranhamente agudos de Wando, e a sala de reunião e a entrada foram cenários de pequenas brigas entre ele e a ex-esposa. e no meio disto tudo havia o trabalho, ampliado e entulhado, onde seu recente vício por péssimas decisões e apostas instáveis começava a também se mostrar presente.
de qualquer forma nem gostava de trabalhar ali. muito menos de quando Wando era ele mesmo antes de seu mundo trimilicar e ir ao chão, batendo em minhas costas logo depois de se sentir muito orgulhoso de ver meu trabalho, onde o que ele via era o seu trabalho é claro, tentando dar pistas de piadas que poderíamos dividir um com o outro, e tentando a cada pitada de minuto extrair alguma informação sobre a minha vida pessoal algo que o fascinava justamente por ele de nada saber, pela impossibilidade ou pelo que imaginava. eu sabia que ele gostava de mim, em parte porque se sentia sozinho com suas mulheres, em parte porque buscava algo de si, algo perdido, algo para se sentir menos culpado talvez. por qual outro motivo pagaria meu almoço em um restaurante caro ou, me liberava de uma reunião para fumarmos cigarros na sacada do prédio, se não fosse por isso? E em cada oportunidade de tempo, entre briefings, videoconferência com os clientes, ameaças de briga com as agências e tentativas de firmar uma comunicação eficiente com os redatores, ele abria a boca em um formato de O muito estranhinho, raquídico a pobre vogal, e de dentro dela se punha a me contar sobre sua amante, de como quase foram flagrados pelo irmão de sua esposa no Motel Reino Campeiro, de como ele tem o tipo de bunda que não é flácida mas se movimento como preenchida de vento quando tem que se movimentar, escorrendo pelas mãos, pelos dedos e se multiplicando, e de que estava ficando louco e para transar com sua esposa tentava assistir a algum vídeo pornô que os amigos do colégio volta e outra mandam pelos e-mails da vida, mas nem isso servia - não porque não a amava a não, isto jamais, mas porque estava cansado de tanto trepar, estava com as bolas murchas, e então chorava, e nisso era bom, chorava pelas bolas, pelo vídeo que não bastava, pela culpa de trair a mãe de seus filhos, por não a merecê-la, e a mulher preocupada o atendia, solene e então estava tudo resolvido. Eu escutava com a boca cheia de trufas, ou, de vieiras recém feitas, ou algo caro deste tipo, amortecida pelo fato de estarmos bebendo durante o almoço enquanto os outros funcionários recém estavam abrindo uma coca-cola diet, mas me limitava a não falar muito. Sei o que passava na sua cabeça, deveria achar que eu fosse uma dessas mulheres solteiras que gostam de transar com mulheres e só isso, sem nenhum tipo de envolvimento além de uma penca de trepadas que poderiam sair bem ou mal, que por isso o entenderia, e ali estaria posta nossa intimidade, nossa semelhança, ali nos encontrávamos. Ele ser assim só devia me dar mais raiva, mas a sua simplicidade era tão pequena, sua contrução da rasa, fácil e transparente que por vezes me via até mesmo tentada em tratá-lo com o que ele gostaria que fossemos, isto é irmãos, mas não de crime, e sim meu pequenino e trouxa irmão.
não avisei ninguém da empresa, apenas bati meu ponto e me fui. comprei um pedaço de pão e um pouco de humus, sentei embaixo de uma árvore em um parque que fica ao centro, a algumas casas do meu trabalho. passou pela minha cabeça o quanto era engraçado meu chefe achar tudo aquilo de mim, logo eu, há tanto tempo sem ver ninguém. estar absolutamente sozinha. fiquei ali, cansada, mexendo nas pedrinhas perto das raízes da árvore, tentando entender o que ainda estava fazendo na mesma cidade onde meus país um dia fugiram, desesperados, loucos para desaparecer, e me negaram o nascimento, me tendo no outro lado do país. o porquê eu resolvi voltar a um lugar que nem conhecia e talvez isto nem fosse voltar, mas tentar engordar uma mentira a qualquer custo. também quis tentar compreender o que faz uma pessoa como Wando ter tudo e perder tudo tão fácil, tantas vezes, o dinheiro herdado dos pais, a primeira empresa fracassada, e terceira em certo grau de sustentação, o casamento, suas mulheres, sua ordem natural e transpor tudo a lógica de uma gangorra de um jardim de infância. a sua vontade de destruir, e ainda, o seu desejo que parece inescapável de erguer algo. tentei também analisar se algo ali acontecia pelo jeito que costumava agir, eu costumava ter esse efeito nos homens, eles olhavam pra minha cara e se abriam, não pensavam em me comer - o que se costuma fazer, ou, não titubeam em cima da possibilidade de uma paixão existir, apenas falam, falam coisas que não costumam dizer, por vezes agradecem, choram, se revigoram e vão embora. ir para a casa não era uma opção. o que estava sentido é uma espécie de tristeza, mas bonita, sedosa, como se pudesse ser penteada para gerar em troca calma. e ainda, era o fim da primavera, a vida insistia em sair pelos cantos, o horário de verão jogava possibilidade sobre nossos costas junto com uma vontade de caber no calor tomando uma cerveja leve.
nas outras semanas Wando não veio trabalhar. algo muito ruim ou muito bom poderia ter acontecido com eles e isto não importava muito ele sempre daria um jeito. pessoas desse tipo nascem assim. o novo gerente tinha muita gana de conseguir um cargo fixo acima do seu, e os trabalhos começaram a fluir de acordo com os prazos, sem precisar de horas extras e sem um clima confuso no escritório. um desses dias fiz algo fora de costume e sai para beber com dois colegas de trabalho que a pouco tinham entrado na firma. raramente saia de casa, e porque o ano acabava, e eu ainda era a mesma, resolvi arriscar. eles me levaram em um bar de tapas, um bar que devia em tese herdar algo da cultura espanho sendo que, o que é a cultura espanhola, de que lado da rosa dos ventos estamos falando, que grau, que latitude, em qual século exato, em qual árvore genealógica, mas sim não parecia em nada com o que entendi era a cultura espanhola. eles eram muito gentis e me falaram se conhecerem há muito tempo. desde o colégio, não não, desde aquela vez que o Mauro seu tio, nosso vizinho, roubou um bolo de aniversário da outra vizinha, não não, desde que o Olavo foi eleito prefeito pela primeira vez, ou o Ciro teve o primeiro filho, desdo do maternal talvez, mas com certeza, desde da dança de quadrilha da primeira série onde você quebrou o braço porque tentou dar um mortal e o que devia ter quebrado mesmo era a cabeça mas o corpo é mais inteligente, e o reflexo da mão quis chegar antes. eles era muito simpáticos e só assistir os dois falando sem parar, se interropendo colocando a mão no ar, uma sobre a outra como quem acha que assim para o carro de um pensamento, me fazia rir. imaginei que eram um casal ou que já tinham sido mas que ficou chato porque afinal eram muito mais, e podiam ser muito mais, e se davam muito bem até mesmo para serem um casal. imaginei que de vez em quando ainda podiam transar, mas uma transa sem querer, ou uma transa de última hora, uma transa coringa, e era como assistir um filme da sessão da tarde, e era algo muito engraçado, que os dois tinham que parar para recuperar o fôlego de tanto rir, tão fácil, e ao mesmo tempo, pareciam transar eles com eles mesmos. poderiam tambem ter sido desses casais que no meio do caminho se descobrem menos héteros cada vez mais, e se apaixonam por pessoas do mesmo gênero mas juram um para o outro nunca deixar de amar, você sempre será a coisa mais importante para mim, você sempre será a primeira, eu sempre volto por você, eu transo com outros porque o resto já tive aqui, é só isso, foder caras me deixa louco, é só quem eu sou agora, quem eu sou para sempre, fazendo seus amantes sempre meros sub-personagens de sua história de amor principal porque vinda de uma promessa murcha e nostálgica que alguns chamariam até de religiosa. ele me perguntou se eu trabalhava há muito na empresa, eu disse que há dois anos mas pareciam muito mais, me sentia meio chata perto deles, mas não sentia julgamento. estávamos já na segunda garrafa de sangria e há muito não costumava beber, ele nos ofereceu para cheirar algumas carreiras no banheiro e eu vi que ela estava disposta a não recusar um pequeno ou grande tiro, mas algo a deixou ali. logo que ele saiu, ela terminou seu copo, e eu me perdi tentando reconstituir sua boca no que restou dela no fantasma da marca de batom deixada no copo, me disse você e o Wando, sempre você e o Wando, o que tem, larguei ainda de olho no vidro, vocês são muito chegados, alguns diriam que você é até mesmo a preferida dele, e nesse momento acordei, me endireitei na cadeira. O Wando gosta muito de ti, ela repetiu mais uma vez, querendo mesmo dizer o que rola entre vocês, como se eu fosse o centro de uma grande novela que poderiam entreter os dois por muito tempo em seu trabalho chato, ou como se eu fosse ela, a amante que todos sabiam que existia e somente eu sabia quem realmente era, eu a amante, veja bem, só faltava essa. O Wando é um canalha, falei, ele só gosta de mim porque acha que é isso que eu também sou. Um homem canalha, disse a mais alta verdade, e sinto que ela percebeu o que quis realmente dizer. Que ela e eu, nos falamos embaixo das frases, que nós somos o tipo de voz duradora, que se impõe mesmo quando são as pessoas que acreditam estarem falando, que eu e ela temos esse poder. Embora Wando achasse ter algum tipo de influência sobre mim, ele era o meu terreno. E é assim que mulheres como nós agem.
meu recém colega e maior recente amigo recém tinha voltado do banheiro, e sua colega o disse eu gostei dela, e eu ri, porque nesse ponto já procurava sempre coisas perdidas embaixo do tapete de qualquer fala, até a fala dos bêbados nos quais nos esforçávamos para ser. então me contaram de coisas sem muita importância coomo uma viagem que fizeram a India, e que um deles teve que comprar duas malas só para transportar esculturas da deusa Iapso, e que eram pesadas e custavam uma fortuna, e além disso era uma deusa muito feia ela acrescentou, cara e feia e frágil porque de vidro, e que mesmo depois do esforço a companhia aérea perdeu as bagagens, e depois de três meses, depois das mini Iapsos terem dado voltas no mundo inteiro, uma mala enfim voltou, mas aos pedaços, e que sim essa era uma história triste, mas também engraçada, mas pricipalmente: talvez espiritual porque envolvia os deuses e como não compreender isto como um pequeno explicito sinal? Eles não paravam de pedir comida, e mais bebida, e meu estômago estava embrulhado e pensei até mesmo em vomitar, mas talvez, talvez, fosse apenas um animal desacordado em minha barriga, nervosismo? falta de traquejo? e continuei enquanto eles me faziam perguntas e nunca relacionadas com meu estado civil, com minha vida amorosa, o que seria ridículo pois previsível até demais para eles, ou porque naquele estado não importava. perguntavam sim de minha infância, de onde eu tinha nascido, porque havia esse sotaque, talvez o L, sim, definitivamente o L, mas também o O, sim O às vezes, e eu os contei sobre meus pais gaúchos que fugiram de seus familiares, fugiram da divisão de fortunas e dívidas de seus genitores, fugiram do fato da mãe nunca os ter amado, ou do pai nunca ter sido amado por seu pai e o outro anterior também, e de todos os pais terem sidos o mesmo e como isso era cansativo, e assim, incubidos na promessa de cortar o cordão, romper a corrente, foram parar o mais ao norte possível de pindorama, trocaram porto alegre por porto velho, sendo porto velho mais nova que porto alegre, sendo que nenhuma das duas pareciam fazer sentido. meus quase amigos riram, não só pelo nome das cidades, mas por seu desespero. por saber que todos conhecem aquele desespero, ninguém pode negar isso.
chegou uma hora na qual perebemos estarmos muito bêbados, e eles queriam ir para um balada que havia ali perto. não sou uma pessoa que goste de ir nesse tipo de lugar, mas formos, eu falei não, mas falei só na minha cabeça, tinha esquecido essa parte tão essencial, e quando vi já estavamos lá dentro. meu colega encontrou um cara que poderia ser um amigo ou um amante, e bebemos dois drinks e fomos para a casa de alguém. essa parte não lembro bem. mas recordo sim, estarmos na cama, os cinco, e eu pensando, há quanto tempo que não fodo, e olhar para eles em sua troca de carinho, muito bêbados para manter o equilíbrio, tão ousados que sem capacidade de tanta ousadia, tão íntimos, lembro de pensar sem para em Wando, e ter medo pela primeira vez na vida de que ele tivesse razão. que ele e eu dividiamos sem alguma coisa, mas ele, o mais esperto, o mais vivido, o mais malandro, sacana, precisa de um para reconhecer o outro, não? tinha diagnosticado isso antes de mim, e talvez no fundo ele falava porque de fato embora achasse que não, eu entendia Wando, entendia sua falta de satisfação constante, seu pau ser um termômetro eficiente, nada estar a altura do dia seguinte, sua vontade de mandar o que mais ama as favas, seu jeito trouxa de tratar as mulheres para se sentir melhor, para proteger sua possibilidade de ficar sozinho, meu pequeno irmãozinho, uma raiva, uma raiva daquelas ameaçava vir, mas era apenas medo, preocupação, neurose, culpa. lembro que dormimos e talvez alguém acordou no meio da noite e trepou com o que pode, e voltou, ou então alguém foi ao banheiro e voltou rindo, acordando outra pessoa, e então alguém teve um pesadelo, contou um segredo para alguém e naquela cama houve um juramento, e depois acordamos talvez os três, ou os cinco, ou talvez só nós duas, e trepamos até pegamos no sono, ou em vigília, ou primeiro no sono achando que trepávamos, e depois na realidade. ou sim, ficamos ali agarrados, abraçados, acarinhados, protegidos pela promessa do mundo de nos amar se fisicalizar no fato que mesmo os cinco naquela cama não faziam ela ir abaixo, pela noite e grande parte da vida.
isto foi em uma sexta-feira. quando a semana se iniciou, me mantive imersa em um desconforto, uma certa vergonha de encontrar meus colegas de trabalho, com quem dividimos algo sem saber direito o que, mas mais ainda, talvez, de Wando, de olhar nos olhos dele, ouvi-lo sem cessar, e ter algo para contar que fosse completamente tudo que ele achava que poderia acontecer comigo ou que fosse exatamente o que ele esperava. só tirei os óculos de sol quando cheguei na minha mesa, e esperei encontrar a sala de café vazia para me servir uma xícara. minha mesa ficava em um lugar privilegiado, e dali o fluxo era observável no meio de duas pequenas frestinhas a mim oferecidas. sozinha na sala, dei um gole no café preto e respirei muito fundo. não sabia que tipo de pessoa que era. era isso. senti uma mão no meu ombro esquerdo me puxar, me virando com prudência bem devagar. ficou sabendo? - era a secretária do atendimento, uma mulher mais velha do que eu, que trabalhava na recepção e só trocávamos conversas avulsas. O que, eu perguntei? por um momento pensei que poderia ter sido algo envolvendo meus novos colegas, amigos, o que fossem. A mulher fez uma cara estranha, no limiar da pena com o terror e a satisfação, e me disse em tom assertivo ele os matou. Está preso. Matou ela, a esposa, e a filhinha. Wando matou as duas com um revólver de caça, e quando tentou se matar também, o que costuma ocorrer nesses casos, nenhuma bala saiu. Passou pelo corpo das duas, procurou desesperado pela caixa de balas escondidas na estante de livros, manchando de sangue em especial a prateleira de literatura inglesa de seu falecido pai, onde achava que elas deveriam estar, mas demorou para encontrá-las. sempre foi muito bagunçado. quando a caixa de balas por fim apareceu, uma penca delas, havia tantas que poderia levar muita gente com ele. mas nessa altura não queria mais se matar, havia desistido, voltado a si.
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