o nadador acordou com um estranho barulho. parecia um animal, um rugido, mas no final havia este estranho som pipocante de engrenagens misturado com o que em sua imagem mental era um saco de bolinhas de gude. bolinhas de gude hoje em dia estão proibidas em nosso país, pensou, e voltou ao sonho. depois de alguns minutos, acordou definitivamente. o complexo rugido havia também sido acompanhado de um cheiro, um rugido de uma flor de inverno, uma flor que lembrasse o casaco de seu tio Alfredo logo depois de retornar de uma viagem a Assunción, misturado com algo indecifrável, disparador de uma sensação semelhante a baunilha. dessa vez o nadador realmente acordou. o rugido de uma flor de inverno, lembrou, e foi aquecer o fogo para fazer um café enquanto lembrava que durante o sonho esta tal criatura materializou-se. tinha pétalas largas, era uma planta alta. e o principal: latia.
tentou ler o jornal mas parecia o jornal de antes de ontem. tentou se concentrar em exercícios matinais como o de fazer o minguinho de seu pé direito se mexer, uma obsessão recém adquirida, um incômodo falante cuja presença era vista como um pequeno rebelde, disposto a sozinho colocar em fino lençol, o lençol no vento, em ruínas, desafiar todo seu grande corpo. não conseguiu se desvincilhar, o barulho, ainda estava ali. cada vez mais fraco, mas também presente porque na ameaça de desaparecer por completo. o nadador então colocou sua sunga de banho, os óculos de mergulho. foi até o armário, um armário herdado junto com a casa, onde sempre esperou em um medo portátil encontrar coisas de um outro morador, um morador fantasma, provas de que ele, mesmo sem saber, não era o único a morar naquela pequena casa. abriu a gaveta e deixou um pequeno bilhetinho dentro dela. depois saiu.
o local onde morava ficava de frente para a praia. o nadador agora estava de frente ao mar. agora as águas salgadas pareciam um amplificador daquele desconcertante barulho, o rugido incessante. eram os primeiros dias de inverno a mar estava gelado porque havia o sul ainda, as mesmas correntes em seu trajeto ancestral conseguiram convencer a si mesmas de continuar, e embora frio a cor dele era linda. era a cor da terra. porque era transparente. e o céu, onde espera-se que o mar imite em um jogo de reflexos como dois espelhos que duelam sem parar, e é o duelo a verdadeira estratosfera, estava cinza, branco, cinza e um pouco mais de branco. o nadador colocou o pé direito primeiro no mar, em parte porque queria punir como podia, nos detalhes é mais poderoso o gesto, gelar o espírito revolucionário de seu minguinho. depois, enquanto o calor ia se perdendo durante a viajem por toda a perna, até encontrar a barriga, já estava com a espuma salgada, a espuma do cão raivoso à mando da flor, pelas canelas. o nadador olho para o horizonte, depois olhou para seus pés, completamente legíveis, completos fidedignos à realidade. quase não havia refração o que era impossível, quase que a imagem de seu pé não se deformara com a ação da luz naquele outro material. porque o mar sim é um material. nós podemos construir coisas com o mar. objetos. nós podemos usá-lo, vendê-lo, chutá-lo. nós o usamos por exemplo para mandar produtos de um país a outro, e isso se chamam rotas comerciais, e foi uma das primeiras costuras, um dos primeiros pontos doloridos da agulhas, que o planeta sentiu. nós podemos o usar para se matar. para meditar. o mar é cabível. em aquários, em perfumes, em conversas no skype, nas construção das casas e na matança da sede. naquele específico dia, sem refracionar, parecia ele querer dar a real especificidade das coisas. então, além de suas canelas submersas, o nadador testou colocar outras coisas no mar para ver se o efeito continuava, para ver se exibiria também sua real natureza. o nadador não teve escolha, se abaixou, e agachado com as mãos em conha como se também estivessem agachadas e fosse dois corpinhos, mergulhou na água os últimos dois anos que se passaram. foram os anos que o nadador achou ter encontrado a felicidade e a felicidade ter cabelos que ultrapassam a bunda, e que conseguiu convencer a felicidade a morar com ele, comer com ele, dormir com ele. até que um dia a mulher foi embora sem avisar, o fazendo duvidar de tudo, inclusive de sua presença, de sua memória, inclusive da materialidade de uma mesa, de um garfo, perder a confiança até mesmo a dureza de uma porta. os dois anos foram então postos submersos, e depois de alguns segundos começou a flutuar mar a dentro, levados pela correnteza. aos poucos eles começaram a virar uma mancha cinza, o que isso quer dizer pensou o nadador, que tipo de verdade lúcida é esta, e lá adiante, já longe da focagem de seus olhos, os dois anos viraram uma espécie de peixe, talvez um filhote de tubarão, ganharam corpo e desapareceram rápido demais por meio de suas afiadas barbatanas. o nadador agora estava mais triste do que estava antes, aliás, nem sabia que estava se sentido assim na hora de acordar, mas agora constatou: triste. respirou fundo, e foi se acalmando a medida que escutava de novo o rugido.
se jogou ao mar, passou as primeira ondas muito rápido, e agora nem sentia mais a falta de calor que a estação luta para instaurar. estava no mar aberto, nadava, nadava. passou horas nadando sem parar. as horas viraram dias. em alguns momentos, nadava dormindo. nadava de costas, borboleta, nadava sem saber que estava nadando, por puro reflexo. cada vez o som ameaça fugir, e depois, aumentava consideravelmente, e o cheiro descrito na manhã daquele dia se tornava físico, grudando em sua pele mole e chupada. o corpo do nadador estava ficando irreconhecível, sua pele parecia incapaz de segurar qualquer toque, qualquer coisa em sua superfície. então o nadador avistou uma pequena ilha ao longe, e para lá foi. se atirou na pequena areia seca que encontrou e dormiu sem noção do tempo passado. o nadador estava praticamente nu,em uma ilha que não sabia onde, sem nenhum documento, ou roupas, ou formas de convencer alguém que era uma pessoa.
o nadador foi acordado por uma barba. a barba roçava seu rosto, e ele segurou para não espirrar. era um senhor, afinal, com a cabeça deitada no seu corpo esguio, procurando sinal de vida naquele corpo depositado na areia. o senhor se surpreendeu ao vê-lo acordando, e o contou que precisou de muito tempo de insistência para ouvir o ronco de seu peito. muito baixinho, baixinho, quase parando. o seu coração estava quase no mute rapaz, é um milagre disse o senhor e o convidou para tomar um banho quente em sua casa. o nadador consentiu com o tantinho de energia que o restara. o senhor, com aspecto de ancião, o serviu uma cuca de linguiça e uma porção de queijo. o nadador o julgou muito bom anfitrião, um tipo respeitoso, uma vez que não trocaram quase nenhuma palavra. apenas durante a noite, enquanto se reuniram antes de dormir perto do fogo ao lado de fora da cabana, onde o anfitrião o fez uma estranha pergunta como se tudo que rezasse fosse para o mar lhe trazer uma companhia, um ser qualquer, capaz de estebalecer com ele este exato diálogo, uma possibilidade de resposta. a pergunta era: você acha que alguém pode jogar uma maldição em si mesmo? o nadador então olhou para a lua, metade escondida entre as nuvens, metade a mostra e soltou um simples talvez. talvez, tudo é possível respondeu o nadador. depois, o homem o perguntou se gostaria de passar a noite na sua sala, onde havia um sofá muito confortável, mas ele respondeu levantando, sim sim sim, falando, e indo deitar na areia onde passaria a noite. o senhor logo entendeu que o nadador era um péssimo contador de respostas e passou pela sua mente se era louco ou estava apenas casado. cansado, concluiu. tal como todos.
no outro dia o nadador foi embora. voltou a nadar por várias horas. quando enjoava um tanto, colocava a barriga para cima, tentando mirar seu umbigo exatamente debaixo de uma estrela como Beltalguese. como uma ponte, imaginava, como uma torre, uma corda bamba, um telefone-sem-fio, imaginava, entre sua barriga e o vermelho daquela estrela cujo o vermelho de sua luz denuncia que em algum lugar ela já havia morrido. então batia os braços, remodelava as costas, batia as pernas. por vezes pensava que o barulho aumentava de dentro da água, e seguia para uma tal direção, as vezes era fora da água que o escutava melhor. o nadador acabou por chegar em um pequeno porto, de uma minúscula cidade. quando deixou a água, desta vez de corpo firme, os barcos recém regressavam da última pesca. qual o nome desta cidade, gritou para um tipo friorento, encapsulado em conchas e lenços, que dobrava sozinho uma rede. esta é a cidade antes de Bentavos disse o homem. o nadador cochilou um pouco perto dos navios e quando acordou se direcionou a primeira lanchonete que pode achar. na entrada lembrou que o dinheiro era algo que existia, e que não havia com ele sequer um tostão, sequer um local para guardar uma ou outra moeda. mas a cidade parecia gentil, e uma das garçonetes ou se deparar com o home magro muito magro com as costelas saltadas como a parte de cima de um desfiladeiro, de onde, algo ou alguém poderia s e jogar e tentar se matar, recolheu algumas sobras da refeição do turno anterior que iria ao lixo e o deu. a mulher o questionou o que fazia naquele lugar, ninguém nunca ia aquele lugar. ela disse que o restaurante era muito ruim, que se quisesse comer bem mesmo, em um dia que tivesse dinheiro consigo, deveria ir ao restaurante de Bentavos. O restaurante de Bentavos é muito bom, ouvi dizer que eles assam um porco inteiro, e também, há uma espécie de milho que só tem em Bentavos. Alguns até dizem: só nascem em Bentavos. Terminado o caldo com pão que a mulher o oferecera, ele a perguntou qual era o nome da cidade onde ele estava pois não havia como saber. É a cidade que fica antes de Bentavos, disse a mulher. Estamos ao norte? soltou o nadador. Tecnicamente, disse a mulher, estamos também no sul. Pois nossa cidade fica ao norte e ao sul de Bentavos. Bentavos fica no meio. Ainda sujo com pedaços do creme de abóbora manchando a boca e o nariz o narrador agradeceu, embora alimentado também em parte frustado. Em frente havia uma praça, e sentado na areia, entre os brinquedos, observou por um tempo as crianças brincando. Se levantou e voltou ao mar.
Dessa vez o nadador passou muito tempo na água. Teve até mesmo medo. Medo de morrer, de seu corpo se decompor de vez, de todo continente do mundo o abandonar, de ser uma baleia que alucina ser gente. Medo de ser devorado por um ser marinho mitológico, medo de sentir tanto medo que o fizesse acreditar na existência dos Deuses. medo de se ir, de não perceber que se foi, de ninguém o avisá-lo, e passar a eternidade coberto sob o manto aquático. então, depois de dias, de cãibras, cansaço, ofegação, o nadador desmaiou. quando deu por si, estava dentro de um barco. quatro homens e uma pequena mulher o olhavam espantados. O filho do Egídio! Não acredito. Filho da puta, esbravejou um com felicidade como se tivesse ganho um prêmio. Os homens e a mulher, o deram cobertores, um colchão e o levaram até a costa.
Venham ver, é o filho do Egídio, diziam as pessoas do povoado ao vê-lo. É impossível, mas é real, comentavam senhoras. Este filho da mãe é a cara do Egídio, só pode ser. Olha o nariz desta criatura! O nadador estava tão abatido, fraco, sem sustentação calórica ou esperançosa, que sua mudez acabou consentindo por ele. Semi desperto, o levaram para uma pousada, o deram banho, todos felizes, e falaram coisas que não pode compreender bem. Por um momento, achou mesmo estar alucinando, estar sem oxigênio o suficiente, ter comido sem querer alguma alga alucinógena no caminho. No outro, dia, um pouco mais forte a situação o deixou inseguro. As pessoas pareciam estarem felizes ao mesmo que trucidá-lo, arrancar os pedaços, o que seria fácil devido a ao seu corpo trêmulo. O nadador lembrou nunca ter conhecido seu pai, e dele só ter hipóteses. Dele só ter uns cinco pais diferentes, possíveis diferentes, cada um com uma casa, um local de origem e uma profissão ruim - nisso todas as versões concordavam. Assustado o nadador deu no pé. O povoado não deixou por barato, e mesmo sem saber quais eram as verdadeiras intenções daquela gente se pôs a correr, e a cidade atrás dele, todos em uníssono jogando-se atrás do corpo em fuga do desparecido filho de Egídio, como se fosse o único imune a algum tipo de vírus capaz de exterminar tudo. Algumas pessoas na linha de frente do corre tropeçaram em uma carcaça de pinguin, e esta foi sua sorte, como um boliche as pessoas de trás foram despencando, e pisoteando-se, e assim foi mais fácil se jogar ao mar e desaparecer.
o nadador agora estava mais triste ainda. estava acima de tudo confuso. depois de algum tempo de nado, lembro o mar ser um lugar com várias dimensões, e decidiu por mergulhar ao fundo. por procurar o barulho, talvez a fonte, o rugido, estivesse, claro, faz todo o sentido, perto do fundo do mar. ao invés de ir par ao lado o oposto deste lado, frente ou trás, se pôs abaixo. mergulhou com raiva, rápido, veloz com uma correnteza, adentro do profundo sem luz. a pressão da água cada vez ameaçava mais seus aguerridos pulmões e um pequeno rompimento de pacto, uma pequena bolinha de ar, poderia se formar como uma miniatura do próprio nadador, e nadar pelo seu sangue, parando em alguma veinha específica, alguma irrigação, a estourando para sempre. por imaginação ou não ouvia o rugido cada vez mais forte, pensava na porta batida indicando a mulher havia ido embora, pensava nas crianças brincando tranquilas no parque, pensava que saber fazer uma cuca salgada tão bem só era possível tendo uma família, uma longa receita de família, um grande cochicho que espalhasse com segurança uma mensagem cifrada durante os séculos de como aquela massa deveria ser preparada, era então a massa um século atravessado, um modo de não morrer totalmente. pensava em seu pai morto, não sabia se estava morto ou não, não sabia quem ele era ou seu nome, mas o desejava assim agora, e que principalmente, a parte mais verdadeira do inverno era uma sensação de ser inescapável. aos poucos o nadador foi sendo vencido pelo som que começava a aparecer também com mais nitidez, primeiro como um ruído ao rugido (falso ou não), e foi concentrando-se do próprio pulso onde conseguiu usar o ar que quase o faltava para imergir. quando chegou perto da superfície sentiu uma grande felicidade e criou ali uma falsa lembrança de seu nascimento há mais de 40 anos atrás. ficou asim, recuperando o fôlego, boiando, tentando ser o ponto de elo entre o mar e o céu enadou por mais uns dias, antes de se decidir pelo que deveria ser feito.
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