I
Helenita, com você não posso mentir. Pois você me escuta e além disto é um mistério, não sei onde você começa ou termina, quantas são, quantas perdeu, quantas já tiveram a coragem para pular do alto de uma cachoeira, quantas morreram à nado. Não posso mentir para você pois não sei onde você está, e assim, você está aqui a todo instante e daria muio trabalho encobrir a verdade ao vivo, sem cessar uma vezinha. Não é fácil ser quem eu sou.
Fujo de Euclides, como se em um milagre, os troianos pudessem ter visto o futuro. Digo Euclides, pois me diverto sozinha, Euclides o matemático, chama-se Jonas, e é apenas um professor desses jovens e pacatos, que moram com a mãe e andam por aí, encomendando partes de mulheres, um bom par de peitos na santa efigênia, uma conversa sobre Salvador Pellejo, pernas elásticas no Paraíso, uma boa mão que como tenda o coloque para dormir na zona sul. Não é fácil ser quem eu sou e quem eu sou diz respeito a você também, a nós todas, não está fácil ser mulher. Quando não é Euclides, é Toni, quando não é Toni, é Jaime, quando não é Jaime é Bráulio. Outro dia saímos do centro de estudo e porque é com eles que vivo, que durmo, que como, que almoço, mas nunca que choro ou deixo escapar qualquer tipo de riso sem vistoria, porque é eles infelizmente o que tenho, principalmente a promessa de ajudar-me em uma questão tão específica como esta, fomos jantar no Salgueiro.
Pois não é que a promessa, por óbvio se desfez, como a palavra licor e a pele de uma prostituta numa metáfora da péssima poesia byron-brasileira? Bráulio de novo, me enrolou, falou de um tal de Jeremias, nascido na fazenda de seu avô. O Jeremias agora era traficante, muambeiro, comerciário, o Jeremias falava chinês e vendia barro, mas não era barro, eram pedras muito antigas embora bem a vista do solo pois a terra, em sua competição contra o tempo vence pela confusão, e de repente lá estão, a vida encarcerada dos antigos bichinhos, não menos vida por isso, a pedra, o barro, o esqueleto do peixe do terciário impresso nas mãos dos acadêmicos chineses e Jeremias no meio, ganhando uma nota, dizendo, do barro viemos não é mesmo, aqui é a seca, não é mesmo, eu tiro leite de pedra mamãe, não sou burro. E eu olhando pro tal do Bráulio, eu dizendo, puta que pariu Bráulio, e eu com isso, um traficante de merda, eu não tenho tempo pra essas coisas, e ele pedindo um conhaque, quatro conhaques, babulciando, o Jeremias um dia explodiu o trator do meu pai enquanto foi mijar e deixou ele ligado, depois aprendeu a mijar do trator mesmo, era como um arcoírizinho, o jato amarelo contra o sol, o Jeremias tinha 13 anos quando engravidou a irmã do Lindomar, mas isso ninguém sabe se é mentira ou verdade, e chegando mais perto de mim, com seus olhos de preguiça enroscados em uma hipotética palmeira, eu no caso, em sua imaginação pelo menos, o Jeremias gosta de comer feijoada na terça-a-noite, e hoje é terça-a-noite, e por isso estamos aqui, se explicava enquanto fechava a braguilha após vir do banheiro. Afinal esta é uma cidade pequena e embora o tenho seja pouco, não há muito o que se fazer por aqui, mas mesmo assim me pergunto, enquanto abrigo um crustáceo asfixiado no pulmão direito, o que faço dia e noite, bebendo com esses homens, uma gangue de homens com quem tenho pouco ou nada a ver, desejo de estar, e só me escutam à prestação, com suas línguas de cobras sendo afiadas, à espera de uma troca esquiva, uma trepada, uma indicação futura na acadêmia, o meu nome copiado como carimbo, enquanto sentamos perto demais no balcão e nossas peles se tocam unidos pela mesma luz tímida do salão, ou apenas isto, uma mulher, qualquer que seja, que ache que pode ser mais do que isto, um animal entre nós, que nos dê uma liberdade de virar bicho, pelo imediatismo, fome, desejo, loucura.
Mas apesar de tudo Helenice, há neste mundo Eustácio, e ele é a cópia não da chave, mas da casa, que levo nos ombros, é ele que me salva, pois onde nossas palavras combinam de se encontrar é um cenário com um medo muito parecido, e por isso sincero, e eu ele dividimos algumas coisas. Este é também o tipo de intimidade que faz eu, alguém da minha posição, passar trabalho, não vou dizer que não dói, ter Toni pagando almoços, e eu pagando dobrado para o garçom logo em seguida, de qualquer forma ridícula tentando me impressionar, não como Bráulio, com mãos na coxa como uma pulp pornô italiana, nem sei se existe esta denominação, tentando me vencer pelo cansaço, pela eletricidade independente que cada corpo possui, postanto lembretes aos poucos do tipo, você tem pele, cabelos, seu corpo sua, fode, come e caga, não há como impedir isto, mas sim com pequenos gestos que chegam a dar vergonha, como conselhos para lidar com uma ex-namorada inexistente ao telefone antes de dormir, receitas de massaroca de mandioca, versos de Gilka Vargas nos momentos mais impróprios, como quando sento para escrever e-mails aos parentes, como se ler uma mulher praticamente esquecida, como se ler uma poeta, fizesse dele um ser duas vezes mais presente, mais fiel. Mas esta dor falo pois tem a ver principalmente com aquele cenário meu e de Eustácio que te falo, este véu desbotoado acima de nossas cabeças, onde nos encontramos, e lá, uma mancha mais escura em uma escada pode ser, por exemplo, a memória do sangue, lá por exemplo, embora nossas frases sejam sempre trocas aparentes de amenidades, o dia em que perdeu um dos dentes de trás para um sujeito mal-humorado, que durante um encontro por ambos aceito, ou chamou de bicha, o deu socos e pontapés, e o deixou pingando envolto em um tipo de nuvem polvorosa que de vez em quando aparece em nosso secreto lugar. E me dói olhar para Toni, e olhar para Eustácio, e saber que Eustácio deseja Toni naquele ponto onde um acidente chega a ser programado, isto é, onde não há controle, ou lógica,a vida é em si a própria obsessão, e apesar de prometer a si não deixar escapar nenhum pequeno sinal, nem uma resmungada ao ser ignorado, ou sorriso esticado trazendo um silêncio exagerado consigo, apesar de puxar todas as redes do mar, fechar seus cadernos, há momentos em que algo se sobrepõe e tudo se justifica. Até mesmo a surra, até mesmo a solidão. Este é o Toni que nos apresenta, mas o Toni mesmo, tenho certeza que pode ser capaz de qualquer coisa principalmente matar em um devaneio. Duvido de homens que insistem desta maneira, duvido daqueles que fazem promessas a si. Eu tenho compaixão por Eustácio e talvez até mesmo amor, principalmente porque nos encontramos sem conversarmos, darmos nomes aos objetos, nos limparmos no mesmo segredo. Eu sei que ele é bicha, ele sabe qualquer coisa de mim, e imagino que deva estar certo. Quanto aos outros, ao duelo carinhoso entre Bráulio e Toni, este bar com areia de chão batido onde juro devíamos escutar o rio, mas há algo que bloqueia, apesar de estarmos tão perto da costa, há algo de misterioso que funciona como um muro, que interrompe o ar, a sua vibração, e com toda certeza faz parte do motivo pelo qual estou aqui, o pouco que guardo é uma indiferença quase que geológica. Por que nesta parte específica do país, um solo se degradou a tal ponto, as camadas sedimentares se enroscaram de tal forma, o vento faltou ou exagerou, a erosão, a força da maré, isto é: os tempos do mundo coexistem, os mortos voltam a superfície, e em minha cabeça, estes homens e este lugar muito poderiam ser resultado deste fenômeno. Este é o Ariripe agora.
Sinto falta de você Helenita, mas sei que falo por todas mulheres do mundo. Aqui quase não há mulheres. Há sim pencas de mineradores, jornalistas eventuais que farejam a dor destes tais mineradores, há acadêmicos com eu e esta minha gangue de homens que em um fraquejar de cordas podem me devorar em um instante. As mulheres dos políticos estão nas cidades ricas, as dos trabalhadores em outro estado, onde ainda há água, e a terra é tão espremida para dar em algo, que abandoná-la é como deixar um pedaço da própria mão. As poucas que aqui habitam ou são muito religiosas ou os maridos as impedem de sair de casa. Passo em frente a janelas, elas se fecham para mim, antes levo junto um rasgo, um borrão, é uma mãe de alguém, uma avó, com quem converso apenas mentalmente, e imagino, é por isto que esta cidade é tão silenciosa, é por isso que o cemitério, grande demais, guarda. Alguém pra puxar papo, alguém para chorar por uma bobagem como uma cor imprevisível do céu, alguém para eu confundir com minha irmã, com a mulher no trem de Lisboa que juro que amei, embora nós tenhamos trocados apenas um minuto de olhares cruzados, desbrocando o parafuso da sanidade, sempre retornando em momentos como esse como um fantasma de estimação a me por contra a parede. Alguém para dividir uma escova de cabelos, pedir o absorvente emprestado,e rir pois, não é possível emprestar um absorvente, e a cólica afunda mas nosso corpo não tem centro e tudo bem. Um par de seios, céus, para emagrecer as retas destas pedras e balançar o mundo. Um par de pernas, que acentue. Uma puta a nos lembrar este nome, e me faça sentir mal por ouvi-lo e ter saudade do que remete.
Estou só com nosso passado. Cansada de ser perseguida, treinada na fuga das armadilhas, aprender com a ferrugem a descercar uma palavra exata para um momento continuar sadio. Não é isto com que me importo, desde sempre foi assim, existe o medo, mas o medo é aquela camada vagabunda do afresco, a tinta que descasca rapidamente quando precisamos ser sérios, sei me proteger. Mas para que mesmo preciso? Eu penso em Lucy, penso na Eva mitocondrial, pensou em você, minha maior amiga por mais chegar próximo de me odiar tão completamente e o que seria isto se não não temer conhecer alguém de verdade? Imagino que em outra vida fomos piratas, mulheres piratas, moramos nas Bahamas, e, depois de algumas aventuras, nos dobremos a vida pacata, abrimos escolas, ajudamos prostitutas, tivemos muitos filhos. Mas agora é isto. Estou no interior do Ceará, absolutamente desfalcada. Ainda não sei se tenho raiva de você naquele ponto de querer te ver de novo, como fazem os amigos, pequenos cafés, pequenas dormidas um na casa do outro, lembrando de ex-amantes que esquecemos, de palavras feias que já falamos, a anatomia do monstro estudada no choque do cheiro de torradas com geleia de jabuticaba. O fato é que falo é pra você, e assim corrijo os mapas, e juro, em uma versão deste mundo, estou no caminho certo.
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