sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Repolhos não dão a vida às lagartas depois de Merian desembarcar na América

- "Você sabe muito bem, a linha do equador é um rabo de saia" - disferiu o coronel Heshinball, enquanto procurava um local para deixar a colher à pouco mergulhada no chá.

Era de manhã, mas difícil convencer Merian disto. No dia anterior a este não dormiu, embora o responsável pela troca do querosene dos postes estivesse bêbado mais uma vez, e a rua rulminou noite a dentro completamente escura ela própria como um animal que dorme abraçada em seus pequenos brinquedos, as casas, podiasse notar um pequeno candaleiro aceso na terceira quadra. Era Merian lendo o livro contrabandeado por sir. Kruvon, do arquivo pessoal do palácio Prussiano, pela quarta vez durante aquela semana. Merian copiava qualquer figura desconhecida em seu próprio caderno, como quem busca salvar uma espécie da extinção. Ali dormiam seres nunca antes vistos pelos germênicos, seres de duas cabeças? oh não, o lampareiro está fraco outra vez, seres alces, metade gente? porque a mitologia grega sempre toca a campainha primeiro?, insetos de oito patas, gigantes perto de uma folha, ou sera a folha tão minúscula quanto um seixo? seres irreais por porsuposto, pois estes rabiscos da corte imperial possuem quase cem anos, o ambiente tropical dizem, é como cavalgar em nuvens e os sentidos são mudados. "acreditar no sonho é acreditar no mundo", lembrou da fala de sua mãe tantas vezes antes de dormir. detestava este tipo de falsa arquitetura, onde o conhecimento prático é tão nítido quanto tentar desenhar um animal pela visão da gaiola vazia. "esta não é a verdade, é apenas o começo de uma delas", e no findar dos calcanhares no inverno, os casacos cumpridos são os reis. para o mistério a ciência aluga as chaves. a ciência aluga? isto caberia em um discurso na associação de especies exóticas de Hamburgo? a ciência alaga..., é o último pensamento consciente antes de pegar no sono em cima de sua mesa de trabalho. na mão um caso de besouro resteia em meio ao toque exato para que não sofra nenhum dano. não havia como negar é isto, na hora de dormir, surgiam os traços da mãe, por hora via-se extremamente poética.

- "Eu sei aonde tu queres chegar com isto sr. Heshinball. A américa não é lugar para mulheres".

- "A américa não é lugar para ninguém, não é lugar para gente alguma".

-"Não é em gente que estou interessada. O sr. sabe muito bem. Mas em bor.."

- "Borboletas! Borboletas, oh céus. Pelo coração de Maria. Sim, eu sei, querida Marian"

- "Oh que surpresa. O sr. me ouve afinal de contas" - falou rapidamente enquanto usava os olhos para espionar qualquer coisa que Doroteia estava fazendo na estante de livros perto dos dois.

Marian tinha 52 anos quando desembarcou no Suriname, junto com sua filha no ano de 1699. Desde os 13 anos de idade, sendo capaz de manejar o lápis com uma precisão indomável, enquanto as crianças corriam de um lado a outro, passava a maior parte do tempo parada. Observando. Como se parte da paisagem. As flores, os ramos, as folhas, o botão das flores, seu desaparecimento no solo. Um louva-deus. Suas pernas cumpridas, hora menos, hora mais, seu meteórico ritual de casamento, uma peça shakespeariana. Como se o mundo coubesse em uma peneirinha e depois de muito balanço, naturalmente, se depurasse, até as peças fundamentais ficarem presentes. E elas eram belas, e assim, construiam outras peças, como por exemplo a seda inglesa que constituia o jogo de cama herdado dos avós, só usado em alguns momentos especiais do ano. os bichos fazem a seda, quando dispostos de maneira particular. mais tarde a seda compre os bichos, digamos, nós mesmos. entre uma coisa e outra existem os mais diversos passos coreográficos que poucos se despuseram a anotar, decorar, decifrar, e em seus desenhos eram relatados de modo obssessivo. Foram estes mesmos o resposável por, anos mais tarde, por via da publicação deles em forma de livro, ter dinheiro para esta viagem.

Antes de Marian existir ninguém se interessava em saber da onde vinha as lagartas, ou as borboletas, e ninguém, absolutamente ninguém, havia ligado uma coisa a outra. As lagartas vinham dos repolhos, como seus soldados, como se fosse seu deus. As borboletas eram presságios, um dia bom, riqueza, mal agouro, dependendo se viva ou morta aparecesse, a cor que carregasse. Marian estava obestinada a não perder um momento só da vida de ambas, e com  a ajuda de sua filha, as quatro se encontraram. Antes um casulo foi necessário ser usado para isto.

Os peões carregavam a mala em uma trilha muito estreita na mata. "Mutucas", fala o tradutor. "Se chama mutucas". A trilha parecia menor ainda pela nuvem de insetos que tentavam desesperadamente entrar em contato. "Eles gostam de sangue doce", traduziu do francês desengonçado do indígena, novamente, o acompanhante alemão. Dorotea, assim como a mãe eu seus desenhos, pausou aquele momento. Nele imaginou as barriguinhas dos insetos vermelhas, com um pedaço de cada um que ali estava, tudo misturado, como uma receita de torta. Imaginou seu pedacinho seguindo pela mata amazônica, do extrato do inseto voltando para a terra, depois, vivendo no casco de uma seguingueira por décadas, até se, por azar, fosse roubados por borracheiros e voltasse para a europa em forma de um utensílio da moda completamente sem serventia. Eu quero ficar aqui, pensava Dorotea, enquanto a cada passo ia rasgando mais a barra do vestido, expondo-se ao calor, a umidade, aos insetos. Em sua frente, sua mãe flutuava. O vestido ia se aglomerando em terra, tropeçando em si mesmo, mas nada era capaz de tirar a satisfação que o corpo encarava sem problema algum. Ali eram pequenas, e como prédios, as árvores altas detinham a passagem da luz. Tudo era novo e um mistério temporário. Mas para existir precisava ser contado. Elas estavam no lugar certo.

O quão ridículo era, depois de séculos, a metamorfose das borboletas ser reduzida a uma metáfora tão pobre. A amazônia não é tão longe, e o Suriname está logo ali. Aqui é o lado oposto. A terra é como um talco, o verde é escasso, os animais são poucos. O que os bois podem me ensinar de novo? Radi pensou em como teria sido a primeira vez que Dorotea viu um casulo, com certeza era ela e não a mãe. Estava com as rouplas frouxas, embaixo de uma sequoia, segurando uma edição recente de Yeats. O suor corria como uma simulação de planeta, refrescando e acaolorando ao mesmo tempo, e se o corpo fosse um entrelaço sussetivo de cordas, como a dos barcos, o suor era esta força que as mantinha. Radi imaginou o corpo jovem da alemã, aos coxas resvalando na raiz da velha árvore, o pé, enquanto ninguém olhava, descalçado como o chão, os seios levantados como um animal a botar o rosto sobre a mata, procurando comida. Dorotea estava lá, fugida dos empregados, dos padrinhos do novo mundo, tentando fingindo para si mesma ler poesia inglesa, enquanto na verdade sua imagem folheva o rosto do servente indígena, de idade semelhante, de quem não entendia nenhuma palavra o que não a convencia a tirar os olhos de seu rosto. Então, por gostar de ser literal e viver verdadeiramente as situações fosse o modo de encarar a ciência na vida, se pôs de cabeça para baixo. E este foi o momento, onde na inversão da terra e do céu, acima do seu livro, de uma aparente folha seca muito esquisita, uma pequena borboletinha colocou a pata afora.

Depois, enquanto procurava um lugar para carregar seu celular, na sala da pousada, sentiu um leve pontapé no dorso. Marian relatou o mundo neste continente antes da nossa chegada. Marian era alemã, assim como parte de sua família. Ela também fazia parte daqueles que fizeram os desenhos da bióloga tão raros, pois, ela fazia parte daqueles que a destruiram. E se a mata, no caso aqui, o rio, o pouco pasto, a argila, o mangue, o deserto, tivessem consciência disto sua vida estava à perigo. Não pertenço a este lugar e é aqui também o que quero salvar. Talvez este seja o problema e haja um tipo específico de feição única capaz de relatar o quanto perverso este pensamento dobrado sobre si é.

Mesmo o esforço da imagem da filha de Marian envolta nos lábios de um ar tropical não salvou Radi de se distanciar do tempo seco. Do verdadeiro motivo porque estava tão sozinha neste vilarejo dentro da cidade, dentro de um relógco desacelerado. É verdade que senhorita Marian foi muito famosa. Mas seus desenhos eram bons demais, e ninguém ouvia o que ela falava. Ninguém acreditou no seu relato da tal metamorfose, tendo sido a descoberta atrelada a um homem, pouco tempo depois. Seus textos foram desaparecendo, e só as ilustrações restaram, várias e várias vezes reproduzidas. Meus seios parecem mais murchos, Radi pensou em Dorotea e seus 21 anos, naquela imagem fictícia da sequóia. Não sei quanto mais durarei neste lugar. Não sei se não descobrir o motivo de estar realmente aqui faz uma viagem não ter sido sucedida. Eu estou aqui pelo passado, isto é certo. Por tudo que já aconteceu.

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