sábado, 22 de agosto de 2020

diários do dia 27 de agosto

Zuvenir do frigorífico

Saio do frigorífico correndo, não tomo banho nem troco as botas. Cortei porcos o dia inteiro, tenho a impressão que o mundo é uma baba branca, como a luz sobre o galpão. No ônibus, não vejo direito a parada, o clarão avança. Uma mulher me olha com agrura, tenho os pés no sangue, a vida é assim, e ela sabe. Não paguei o Bernardinho, nem confirmei a janta lá na prega nove.  Tenho essa impressão que algo escorre em mim como uma graxa. Que deixo um rastro inconfundível. Que na noite quem brilha sou eu.

Anacleta do ginásio

Ignoro a diretora. Tenho manter qualquer palavra ao alcance, sou ligeira, já dizia minha avó. Sei limpar um sapo durante o pulo. Estou atacada da mesmice, queria dar-me por caidinha, em qualquer beco que meu desse de convite. Meus alunos se gabam de empurrar as tarefas como nós os adultos empurramos os anos. Eu também já fui jovem. Fiz reza em banco de praça, achei poder trocar uma desculpa por desconto na venda. Eu também já disse além da conta, ralei os joelhos, e me achei a número um do juízo. Tenho cabelos embaraçados pelo pesadelo da sesta. Vou incomodar minha amiga Rose, ver se ela topa dar um perdido.

Isaura a estudante

Ímpeto e isca. Qual o disfarce? Lira e Lanterna. Qual é a pegadinha? Não como há nove dias mas não cairei deitada, tenho fé. Vou ser escrita da fome, veja só. É aí que a língua verdadeira aparece. Esse e o país da dança, diz ó meu pai, pois vou dançar e cair em pé. Porque essa é a comida do país, e a escrita é o adiantamento que não pagamos jamais. Pagar com o que? Entre o mísero e o suposto, resta o que?

Lira a musicista

Ato de fé é não botar o olho. Meus pais caíram porque não rezaram. Digo, não sou religiosa. Mas boto altar onde der, invento um púlpito em uma laranjeira, numa fatia de engano, num canto do banco. Tenho de prova meu momento único: essa flauta doce. Hoje eu rezo a amoreira aqui de casa, rezo dona Sebastiana, com o chorinho dos indomáveis. Faça o que quereis, diz minha música a dona Sebastiana, seja seu próprio azar e se defenda. De pé ao muleque, de asa, a tua curvatura, diz o chorinho da flauta. Faço encomendas de trufa, pra lembrar de apegar-me ao dinheiro. Nem tudo é guia pra solução.

Plínio o comediante

Hoje as pessoas riem diferente. Riem sozinhas, depois de muito tempo. O tempo é precioso o malabarismo do palhaço são as horas. Tirei nenhuma nota no metrô, um tipo alto me encarou feio e passei malos bocados. Eu o disse para tomar um jasmim, o chá, ele por fim não falava minha língua. Queria é briga, esse idioma comum. Nós os palhaços inventamos a briga mas a piada é a fuga. Se a piada não funciona, ficamos com uma cara cem por cento maior e mais acertável. Uma vez li que a diferença de um poeta e de um palhaço é que o primeiro finge não falar nada para falar tudo e o segundo acaba com tudo dizendo nada. Eu só rio no trabalho e o poeta só ri sozinho, diria a Ciro, meu ex-companheiro de quarto, que largou o circo muito antes, antes do circo ser ele mesmo a piada, para virar professor de letras.

inverno

fazia anos que não tínhamos um inverno tão rigoroso, me havia dito minha mãe. desde quando eu era pequena, meu contou minha avó, não via o gelo chegar no campo dessa maneira. vivíamos em uma casa de madeira, na fazenda de meu avô e era difícil se aquecer. usávamos um fogão à lenha, de ferro, muito antigo, que estava instalado no centro da sala. dormiámos em volta dele, aninhados, contra a noite. lembro da última visão do olho antes de dormir, a janela suada com a umidade, os pinheiros se agitando ao longe, sobre a luz única da lua. a respiração de meu avô lembrava a de um avião monomotor, e de vez em quando, minha avô falava algo dormindo, normalmente, uma discussão ou um pedido de perdão a sua irmão Nelgésia, com quem não falava há muitos anos. às vezes, nas noites raras que se deu sua presença, eu podia ver uma geada no início da manhã lambendo os vidros e nossa pequena casa se convertia em um submarino celeste. acontecia muito cedo da manhã e eu gostava de acordar e contemplar aquela imagem. era um outro tipo de frio, um frio muito acolhedor. parecia que nadávamos em meio as nuvens, que durante a noite, em minha imaginação, a casa havia dado voltas pelo mundo, e durante o sol nascente, retornava silenciosa. parecia que eu e a casa tínhamos um segredo.

de dia, ajudava minha avó os afazeres, enquanto meu avô e minha mãe manejavam os animais, cuidavam do rebanho. era um rebanho pequeno, mas que dava muito trabalho. cozinhávamos pão e biscoitos e vendiamos para os vizinhos nos dias de sol. à medida que o frio aumentava, cada vez era mais difícil encontrar madeira seca para o fogão. aos poucos meu avô começou a usar o antigo galpão como combustível para o fogo. cada dia retirava um pedaço da parede, ou do telhado, até que queimamos tudo. depois, começou com nossa casa. primeiro, o segundo banheiro, depois, o quarto de minha mãe, o meu e de meus avós, de movo que a sala, que era junto com a cozinha, virou o único cômodo que restava. ficávamos entranhandos, comendo sopa, bebendo quentão, enquanto víamos as paredes se perderem no fogo, enquanto um velho guarda-roupas de repente nos aquecia por noites a fio. minha avó chorava baixinho enquanto ninguém estava vendo, à medida que as paredes de seu antigo quarto, onde passaram mais de 30 anos, se desfalecia em sua frente. impossível imaginar o que sentia nesse momento, mas imagino que o fogo liberasse junto com seus gases diversos tipos de memórias, e que as memórias se soltavam em nosso pequeno e único cômodo, de modo que, não era apenas mamãe que estava lá mas mamão com dois anois, com dez anos, mamãe gripada, vovó jovem, vovô desaparecido, vovô aparecido, meus avós recém casados e brigados, todas nossas versões acumuladas em pequenos metros quadrados, o que deveria ser um tanto doloroso mas também um tanto bonito, de alguma forma. meu avô era o responsável por separar a madeira e a cada dia que passava tornava-se mais silencioso, não sabia dizer se era indiferença ou um chamado nato a praticidade.

para mim, tenho memórias muito diferentes desse tempo. gostava de dormir com toda minha família junta, embora perdesse meu quarto. gostava de ouvir as histórias contadas por noites à fio por minha avó e minha mãe, com diferentes versões de como nossa família foi parar naquele pedaço de mundo, de como cada um tomou o rumo que tomou. não passava pela minha cabeça que teríamos que reconstruir a casa, um uma hora, depois de queimarmos tudo que conseguirmos, e de que estávamos cada vez mais pobres e mais à mercê de uma possível tragédia. naquele momento a casa era tudo que tínhamos mesmo que necessitando ser queimada, havíamos uma casa para queimar. além de tudo, havia algo em minha mãe que me deixava tranquila. enquanto nossa residência se desmontava, a cada noite que passava, eu via seu humor melhorar. quase como um alívio, possuía um ar de satisfação desenhado em seu rosto, como se a tirassem o peso do mundo. talvez fosse coisa do calor, pensava naquela época. logo no início do verão, nós duas fomos embora.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

pólvora

Estavam na casa de Elvira, em seu quarto, tomando refrigerante e comendo salgadinhos.

Ana Clarice tinha falado que já tinha deixado uma agulha no estojo da professora, e Inês admitiu, já tinha beijado, nas férias, um menino que conheceu na praia, mas nenhuma acreditava na história, os elementos simplesmente não batiam.

A mãe de Elvira a obrigou convidar sua vizinha, Lúcia, para o pequeno evento e durante o tempo todo Elvira tutelava a menina com medo que estragasse sua pequena festa com as amigas. Detestava a pena que a mãe tinha por sua família, que a transferia para ela. Embora vizinhas eram famílias muito diferentes. A mãe trabalhava muito e criava duas filhas, sozinha, com a ajuda eventual dos avós, que tinha um certo dinheiro.

Eu matei um homem, disse Lúcia.

As meninas deram uma gargalhada de deboche.

Lúcia é muito magra e tem uma voz fina, como dos ursinhos de pelúcia que quando você os aperta, soltam frases pré-gravadas.

Elvira ficou morrendo de vergonha. Aquilo não servia nem de piada. Nem engraçado era.

Você não mataria nem um mosquito, disse Elvira, tentando trazer um ar cômico prolongado.

Um mosquito eu nunca matei. Mas um homem sim, insistiu ela, séria, enquanto metia a mão comprida na embalagem de petiscos de milho.

As meninas ainda não acreditando, começaram a fazer perguntas, para ver no que aquilo ia dar.

Como? Você o envenenou? Ou fez um pedido pro papai noel?

Eu dei um tiro. Eu não queria matar. Eu dei um tiro na perna dele. Mas havia uma artéria, disseram, uma veia, algo assim, muito importante. Ele sangrou e morreu. Não vi, fui embora antes.

Então, nesse momento, Lúcia puxou a manga e mostrou no pulso direito pequenas machas cinzas, pequenas bolinhas. Viu?, ela disse. Foi da pólvora. A arma era velha, não tava funcionando bem.

Nesse momento as meninas titubiaram. Lúcia começava a ficar cada vez mais estranha. Nesse ponto, era também, a única a comer e beber naquele quarto, como se nada tivesse acontecido. O tom de piada já havia se desfalecido e as meninas estavam agitadas. Elvira trouxe pizza e tentou amenizar colocando qualquer desenho bobo na televisão para elas verem, mas ninguém se importava.

Ana Clarice, nesse momento, levantou a voz e disse eu tirei a agulha. Eu botei a agulha mas eu tirei antes da professora voltar, eu achei errado, confessou chorando. A verdade é que a família dela não ia muito bem financeiramente, os pais temiam perder a casa, ela teria que sair do colégio privado, e rapidamente se deu conta de que a professora não tinha nada a ver com isso.

O restante das meninas em um gesto de solidariedade abraçaram a amiga e olharam para Lúcia, esperando que ela também desmentisse sua história, ou fizesse os ajustes necessários a fidelidade.

Eu matei um homem, disse Lúcia novamente, enquanto desenhava com lápis de cor. Olha, eu estava aqui, tá vendo? E apontou pro desenho, o gramado em volta da casa (Lúcia desenhava muito mal). Ele ia machucar minha irmã, ele entrou na casa, quando foi agarrá-la, dei um grito. Ele saiu, e voltou. Nesse momento eu já estava com a arma do meu avô, que ficava no cofre. Eu sei a senha do cofre, eu sei a senha de tudo naquela casa. Pedi para que fosse embora. Quando ele avançou eu atirei.

Minha mãe nunca soube direito o que aconteceu, nem a polícia, falou enquanto as meninas a olhavam sem piscar, mudas, em um misto de medo e admiração, a firmeza de Lúcia era de se invejar de tão natural e cristalina. Tem coisas que só as crianças sabem. Que só as crianças passam, só elas sabem, nem eu e minha irmã, disse largando os lápis e se aconchegando no colchão.

Elvira a este ponto já estava completamente devastada. Sua festa do pijama tinha sido um terror. Ao invés de vídeos de dança, gravações, fofocas de namoradinhos, de falar mal dos adultos e das meninas da outra turma, estavam ali em um clima de sepulcro, falando de morte, separação, problemas financeiros. Para não pior a situação, com medo que outra delas entrasse em um rompante de choro ou que Lúcia continuasse com suas besteiras, mentiu que a mãe tinha mandado desligar a luz e irem dormir, pois já era muito tarde. Nesse ponto, todas já estavam silenciosas como a madrugada mesmo.

Nos dias que se seguiram, várias amigas vieram falar com Elvira, em separado, para comentar sobre Lúcia. Queriam seu número, queriam dicas, queriam seu serviço. Cada uma tinha um problema diferente, mas muito parecido. Elvira começou a acreditar que a história era verdade. Mesmo se não fosse, as meninas acreditavam e agora a idolatravam. Mesmo se não fosse, Lúcia tinha aberto uma porta impossível de ser fechada, tinha se tornado uma espécie de mártir.

Elvira ligou para Lúcia e contou sobre as amigas.

Meus serviços? Disse ela. Acho que elas não compreenderam muito bem, não é sobre mim. Tudo bem, também gostei de suas amigas, falou. Elvira não deixou escapar um que bom, um tanto entusiasmado.

Sexta-feira de noite, na sua casa, logo depois da aula de spin de minha mãe, diga a elas para estarem lá. Começaremos o treinamento, complementou antes de desligar o telefone.

casa

Amo minha mulher mas faz muito tempo que não nos vemos. Começou aos poucos. Depois de uns três anos de casados, ela me disse, pimpão, me chama assim minha esposa, vou passar uns dias em Nova Petrópolis, para trabalhar nas minhas anotações. Apareceu duas semanas depois. O livro sobre arquitetura rural do século XVIII não estava acabado mas faltava muito pouco. Depois, ficou mais recorrente. Passou as férias fora, viajando com as amigas, três meses ao todo. Me mandava postais, sempre, com pequenas frases que eu guardava como amuletos, joias, de suas aventuras. Como nos víamos cada vez menos, tinha vezes que me avisava quando já tinha partido, depois de um longo tempo. Eu cuidava da casa, mantinha nossos móveis limpos, as contas pagas, sempre fui do tipo caseiro, e lá pelas tantas, recebia um e-mail seu ou um telefonema dizendo que estava no recôncavo baiano, mas que antes, tinha passado um período no peru. Eu respondia perguntando como ela estava, era sempre importante para mim, saber se minha mulher estava bem. Por vezes, a vida dificulta vivendo assim, demorava até conseguir contatá-la, e assim fica difícil seguir as pendências no cotidiano. Agora não posso, estou em uma vernissage, mas sim, o blazer azul é o melhor mesmo para seu evento pimpão. Me mande os papeis por correio, que eu assino, pimpo. Diga pra mamãe que a amo. Quando voltava era como se nunca tivesse ido, comíamos espaguete caseiro, víamos filmes antigos, limpávamos o apartamento. Por um período fiquei mais de três anos sem falar com minha esposa, até que ela enfim mandou uma mensagem dizendo que passou por um período difícil mas estava melhor. Raras vezes a fui visitar, não gosto de aviões, ficávamos abraçados por um fio de horas, olhando a cidade onde ela morava, respirando o ar que ela respira, tentando imaginar como se é viver no pacífico, no atlântico. Às vezes penso que temos um amor açucarado com a calma, e agradeço por isso. Todas as vezes que pedi que retornasse, ela veio, que foram umas duas ou três, na morte de minha mãe, em um período que fui demitido e me senti extremamente doente. Um dia me ligou e disse que tinha conhecido alguém, isso já havia acontecido outras vezes, mas nunca havíamos falado. Minha mulher me perguntou se havia problema estar grávida de outro homem, nunca falamos de ter filhos, ela disse, eu falei, eu sei, e eu disse, que ela que deveria saber. Ela acabou perdendo o bebê, o relacionamento não aguentou, ela me disse, só me disse isso, já em nossa casa, chorando com um rosto nublado. Passou-se uns anos e dessa vez fui eu que fui até ela, e a pedi um filho. Estava me sentindo sozinho, acho que ela intuiu. Demorou um tempo para engravidarmos, nossas tentativas eram por vezes engraçadas e por outras lembravam nossos tempos de adolescentes, me deixando muito emocionado. Logo que deu a luz, minha esposa voltou ao seu apartamento, faria uma residência na cidade do México. Amo muito o menino, tem os olhos da mãe, olhos vivos e angulosos. Sempre o mandou presentes, retratos, livros, lembranças de suas viagens, e quanto as festas de fim do ano sempre tentamos estar juntos, às vezes vamos a visitar, as vezes ela vem. Agora já está maiorzinho, um pivete, doze anos. Nos divertimos muito nesta casa.

porta-malas

Começou comigo perguntando, Flávio, você confia em mim Flávio? E foi isso, ela disse, virando as última gotas de chope. Então o Flávio, esse meu amigo, ela disse levantando o braço imediatamente pro garçom, ele disse sim, claro, que confio, ela contou interrompendo para pedir duas cervejas a mais. Ó, eu disse pra ele, ó Flávio, se confia em mim então entra naquele porta-malas. E foi isso ela disse. Eu era muito parecido com esse Flávio, aparentemente. Barba comprida, cabelo crespo, escuro, enrolado, vinte e poucos anos, cara de tédio, falo pouco. Enquanto ela falava, olhei através da janela um carro vermelho, que poderia ser o dela. Fiquei imaginando o interior daquele porta-malas, o cheiro de gasolina misturado com goma de mascar, com desodorante de florais. Os fiapos de luzes que entravam pelos pequenos buracos.  Será que ela ficou em silêncio durante todo o percurso? Ou durante essa viagem, que ela não disse nem para mim nem para ele par aonde era, não calou a boca por um segundo? Seus dedos eram muito comprimidos e as unhas muito bem feitas. Será que ela estava falando metaforicamente, este tempo todo? Penso se poderíamos ter algo em comum a ponto de aturarmos as manias um do outro e trocar confidências. Talvez se fossemos amigos de infância, ou se ela estivesse se afogando ou eu me afogando, e tivéssemos esse elo dos sobrevividos untando nossa amizade. Talvez se tivéssemos a mesma história, portanto, o mesmo lado da história, um pai que nos abandonou na tenra idade, um chute na bunda depois de ser traído, este é o tipo de coisa que imediatamente liga as pessoas, como uma marca de nascença, dá uma origem visível aos olhos. Talvez ela estivesse ali naquele bar em meio da estrada me contando as coisas mais estapafúrdias para que eu faça o que os amigos fazem e diga você está maluca, isto está errado, pense melhor, e sirva como um sinal de alerta. Ela era bonita mas se esforçava para ser feia, com a maquiagem semi-acabada, sendo grossa à toa, quando estava agradando demais. O Flavio entrou na mesma hora, nem foi no banheiro antes, contou séria, olhando a tv atrás de mim onde passava o reprise de uma luta de UFC. Será que Flavio estava ali, naquele Monza vermelho? Quem tem um Monza com uma tintura tão nova, tão bem cuidada, com certeza, é alguém com apreço a certas coisas especiais. Senti um reflexo breve de abraça-la até que ela parasse de falar, nada sexual, apenas a oferecer uma pausa. Alucinei sentir o roçar do metal na minha nuca, do carpete, no meio das minhas pernas, sentir o ar rarefeito. Limiar a minha visão a pequenos pontinhos de luz perdidos na estrada e confundir o silencio da noite como um ar a mais, que de pouquinho em pouquinho, enchia meus pulmões, enquanto sentia o balancear do carro durante as curvas, relaxando nos abalos de seus movimentos, sem saber aonde estou indo.

águas passadas

Mais de vinte anos depois sinto que Mariana virou um outro tipo de companhia, e não entendo se é boa ou ruim. Quando alguém me manda uma mensagem e diz que precisa me falar algo, ou um velho conhecido relata, tenho algo urgente para de contar. Se uma pessoa se despede deixando soltar que tem uma surpresa para mais tarde. Quem aparece é Mariana. Na possibilidade de estar quase dormindo e começar a escutar sons estranhos, espirros na madeira, clacs vindos do telhado. Se estou dirigindo meu carro, indo para o Instituto, e um automóvel me corta quase levando o farol direito junto, é o rosto de Mariana que surge em minha mente. Jovem como o momento pelo qual me apaixonei por ela, intocável, como no momento que fui embora.

Me apaixonei pela juventude, foi por meio de Mariana. Os anos 2000 eram seus cabelos cumpridos e o medo do bug do milênio era seu joelho esquerdo, contundido no meio de um campeonato infantil de voleibol, onde nunca podia confiar completamente nas caminhadas, nas trilhas que fazíamos pelas montanhas. Seu dom de conversar com os estranhos era aquela sensação, de que tudo é possível, e a proximidade da morte, do tudo ou nada, muito tinha a ver com o arqueamento das pernas de Mariana, onde gostava de dormir e acordar, onde tantas vezes fantasiei perder a cabeça, a respiração, até o coração parar, enrolada em suas coxas, por livre espontânea vontade.

Imagino Mariana aparecendo em uma reunião, agora milionária, depois de casar com um suíço muito rico, oferecendo uma quantia irrecusável de doação para nossa organização, a imagino aparecendo em meio a minha aula e dizendo algo desconfortável, como, por exemplo, Rafael, Leonardo, eles não eram italianos porque a Itália ainda não existia, não aumente o poder dos estados nacionais de irem até o passado, quem se importa com o renascentismo, você sabia que ketchup é uma receita tailandesa? Mas na maioria das vezes, quando sinto sua presença imaginária na fila da farmácia, no estacionamento, dando uma entrevista, tentando escrever um texto, o que ela diz realmente é muito parecido com Por que você não avisou que ia embora? Sua aparição surge como um lembrete. De que eu sou uma pessoa terrível pelo que fiz com Mariana. E nesse momento meu estômago se fecha e sinto muita vergonha. Vergonha e um medo absurdo da existência dela, seja onde esteja, porque seria a prova viva de que eu enganei a todos. Meus alunos, meus colegas de trabalho, meus subordinados, meu marido. De que eu sou uma pessoa ruim. Um blefe.

Sempre planejei ir embora. Sou extremamente planejada, desde criança. Mesmo não querendo, sabia que era o que tinha de ser feito. Mas nunca imaginei que seria assim. Eu estava apaixonada por ela, sem dúvida. Arrisco dizer que foi a única pessoa pela qual me apaixonei. Sinto amor pelo meu marido, assim como posso ter sentido com um ou outro. O amor é mais fácil. É morno o amor, não em um sentido ruim, me propicia ir para o estado onde eu desejo em um cintilar de segundo. Me permite me dedicar a universidade, escrever meus livros, fazer minhas viagens, sem tanta agitação, mergulhar em meus próprios pensamentos. É como uma pedra fundamental, onde as casas são construídas. E a casa, no caso, é meu trabalho. Com Mariana, era o oposto. A ebulição, a novidade, o vapor, a explosão. Tudo era instável. Havia muitas distrações, tudo era interessante, os dias tinham cinco relógios, com quatro fusos horários. Estava imersa em uma solução animalesca, onde meus sentidos ficavam aguçados como um onça, a audição, os cheiros, a capacidade de enxergar os detalhes. Porque a conheci, posso dizer que já me apaixonei, mas que não é isto que pretendo para minha vida. Posso dizer que sou uma pessoa tranquila, que preciso estar no centro de minha própria atenção. Que sou até mesmo egoísta. Mas foi assim que eu escolhi.

Nos conhecemos em uma viagem à Ilha Bela. Foi a única vez que viajei sozinha, depois de um estágio estressante em uma galeria em São Paulo, de onde fui mandada embora por não saber matemática. Errei as medidas dos convites de abertura e o panfleto veio minúsculo, nem dava para ler direito e ninguém achou que cabia uma licença artística. Pelos milímetros e centímetros, me dei o mar de presente. Mariana vivia lá, com uns amigos, vivia na beira da praia e parecia que o mar tirava o sal de sua pele, não o contrário. Que o mar precisava dela. Plantavam, construíam suas casas, cuidavam da associação de bairro. A primeira vez que a encontrei, estava completamente nua. Nunca tinha visto uma mulher assim, nem mesmo minhas amigas. Três dias depois, apenas, a conheci de roupas. Fiquei horas pensando na cena dos seus seios à pouca luz, que apareciam quando pensei que ia engatar o sono. Por não conseguir dormir direito apareci um dia na sua casa, sem achar as palavras exatas, mas querendo entender o que ali havia mexido tanto comigo. Ela se divertia com a minha falta de graça. Passávamos os dias juntas, conversando sobre os moradores, locais, sobre o jardim, sobre a história da cidade, e não nos tocávamos, ela fez questão que eu chegasse sozinha, no meu limite, fez questão que eu tivesse certeza. Até que um dia, na cozinha, me perguntou, o que afinal eu queria, eu disse, eu, quero, entre um bocejo e outro falei. eu quero dormir, eu quero dormir com você, ela riu, me deu uma piscada e continuou fazendo a comida, e eu dormi ali, mesmo, na mesa, finalmente, depois de dias sem pregar os olhos, me sentindo mais leve, aliviada, e por isso mesmo feliz. Passamos o resto das férias naquela pequena casa de madeira e depois ela voltou comigo para São Paulo, de onde era. Durante a semana, morávamos na antiga casa de suas avós, Mariana tinha dinheiro embora recusasse a ideia, herança da família, que já nem mais existia, e nos finais de semanas íamos ao campo. Não contei nada para meus amigos mais chegados, que ficaram em Florianópolis. Não conseguia organizar as palavras corretamente. Sabiam sim que estava com alguém, mas não sabia nem que era uma mulher, a escondi como pude, deles, e do meu futuro.

Minhas notas na faculdade começaram a cair, nem sabia ao certo se gostaria de seguir o curso, e eu comecei a planejar minha fuga. Me inscrevi em diversas universidades no exterior, em uma tentativa de sair daquela cidade. Eu estava feliz, absolutamente feliz, como nunca antes ou depois, mas com o fim da graduação sentia que precisava acertar o rumo das coisas. Não falei nada a Mariana, o que poderia dizer? Depois de alguns meses juntas fomos a uma manifestação. Era para ser algo muito pequeno, uma obra que o governo queria retirar, que fazia ilusão a Zumbi dos Palmares. Iriam relocar para longe da cidade. Fomos nós duas, pensei que seriam apenas algumas horas e depois iríamos comer algum prato feito, na volta do centro. Aqueles dias eram véspera de sair um escândalo muito forte envolvendo o governador com a venda de imóveis públicos, e talvez por isso, ele quis testar a força em nós. Quando dei conta de mim, éramos umas cinquentas pessoas em volta de cavalos, policiais em cavalos, tropa de choque de animais e bichos. Os cascos vieram para cima e eu e Mariana fugimos pela lateral. Quatro policiais nos fecharam em um beco, um nos atacou, e ela revidou com um soco, gritou meu nome. Aquele longo segundo foi decidido muito rápido. Mariana tinha dinheiro, poderia ser solta quando quisesse. Poderia apanhar, mas duvido que eles fariam isso com ela. Eu tinha passado em uma universidade alemã, iria em breve sair do país, precisava ter um registro limpo para obter o visto. Fugi, sem saber o que aconteceu.

Se foi presa ou não, ficou detida, fichada. Se passou a noite na cadeia, não sei. Não liguei para o advogado, não fui na DP a tirar da cadeia. Se teve que fazer corpo delito. Não voltei para pegar minhas coisas em sua casa, não a liguei. Não conversei com nenhum conhecido. Eu sabia que seus pais estavam mortos, seu tios moravam no exterior. Que seus bons amigos já tinham abandonado São Paulo. Sabia que não tinha ninguém e mesmo assim, fui embora. Era o mais fácil a fazer, era a ocasião. Voltei a Florianópolis, de lá, fui para Frankfurt, aonde passei o resto de minha década. Quando comecei a dar aula, em Curitiba, conheci meu marido, também professor. Não tive mais notícias suas.

Mariana se tornou meu ponto fraco. Eu tinha medo de meu ponto fraco. De estar sozinha com meu ponto fraco. Algumas vezes observava meu marido trabalhando embaixo de uma lâmpada no fim da noite e me dava uma vontade extrema de contar tudo para ele. De contar sobre Mariana. Mas isto implicaria contar o que eu fiz. Talvez significasse até mesmo perde-lo, por perder seu trato ingênuo comigo, sua complacência devotosa. Em outras, me divertia sabendo o quanto Mariana detestaria aquela cena. Meu marido extremamente chato aos seus olhos, repetitivo, uma vida quase celibatária. Seu desprezo por ele seria a certeza que eu tomei a decisão certa, porque me dava uma independência em relação a ela. Me divirto imaginando os dois conversando, tentando ter algo em comum, e fracassando, em uma festa de conhecidos, quem sabe.

No pior dos cenários, Mariana é amiga em comum com alguém que eu conheço. Meu corpo treme completamente, sinto que ela poderia acabar comigo com duas palavras. Sinto que o chão me chama, e que fico muito baixa, muito baixinha, e Mariana está muito distante, mas tapando o céu. Sinto que fui desmascarada e que nem sei mais rir sem soar falso, e todos me olham com desdém. Sinto que meu corpo se lembra do corpo dela vorazmente, e me puxa automaticamente para seus quadris, como uma âncora de navio. Mariana me reconhece, e sem demonstra-se transtornada ou desconfortável, me abraça fortemente e fala, senti sua falta, com sua doçura típica que manteve-se intacta durante todos esses anos. Mas no pior, pior dos cenários possíveis mesmo, me oferece seu rosto complacente, lúcido e irradiante, e diz, não fique assim, não foi nada, são águas passadas, éramos tolas e jovens, e nada mais. E depois, vai embora.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

o balde

você sabe limpar um peixe? disse o dono da barraca 42 do mercado público.

eu sei sim, senhor, ela disse.

primeiro, você tem que se livrar das escamas. você sabe tirar as escamas?

eu sim, senhor.

primeiro você posiciona a faca na transversal, à contra pelo, digo, contra escamas, certo? porque é um peixe. aí só vai, minha filha, só vai lixando.

o homem seguiu falando. parecia que fumava um charuto imaginário pois sua boca se mantinha aberta no canto direito, entortada. tabaco ou outra coisa, com certeza é um ex-viciado, pensou. enquanto ele mostrava o serviço, seu suor salgado encontrava o salgado do peixe, bem devagar, enquanto o sol levantava durante a manhã sobre a janela.

aí, as tripas do bode, bode não, porque é um peixe, tu joga ali naquele balde.

sim senhor. aquele balde?

nunca viu um balde, minha filha? sim sim, aquele balde.

as histórias de cozinha e abate normalmente vem com uma ligação afetiva, na maioria das vezes, familiar por trás. um avô que levava o neto para pescar, um pai que desangrava o bode para um churrasco de chão a mão que depena a galinha para o domingo em frente aos filhos atônitos entre o choro de pena e o choro de emoção. a pesca, a caça, as cebolas cortadas, os pimentões. nessa família o assado tem que ser feito com o sal posto depois. sempre depois. teu bisa fazia assim. no caso dela não havia nenhum rito geracional que envolvessem os bichos, seu sangue, seus interiores. aprendeu a limpar peixes porque precisou, porque era barato comprar peixe. era barato pescá-lo. se a perguntassem sobre o gosto nem sabia se gostava, mas comia. quem estava lá era o peixe.

trabalhava das cinco da manhã até as quatro da tarde. o mercado fedia a peixe, a sangue de porco, a boi passado, nas laterais. mais ao centro predominavam, quase como uma ópera, primeiro, os cheiros das ervas das lojas de religião brasileira, alecrim, sálvia, de mais para frente, o cheiro dos óleos concentrados, das vendas fitoterápicas. saía do sangue, da morte, e adentrando, buscava-se a cura, pensava, a medida em que caminha, e uma vez que chegasse exatamente no meio do enorme galpão havia uma sensação nula, até meio triste. de manhã ajudava a retirar os bichos dos caminhões que chegavam, limpava a calçada, despejava o gelo com sangue rosa para longe da construção. era uma cidade que parecia ter nascido velha, uma cidade que parecia andar de costas, às escondidas. os prédios antigos ficavam em maioria perto das águas e do mercado e tinham um aspecto de cansados. como um prédio pode parecer cansado? porque são deformados, pensou ela, lhe faltam pedaços que vão sendo consertados com materiais de construção de outra época, porque são sujos, porque parecem cópias de outros prédios, que existem em outros lugares, plágios sem motivação, vivendo a vida de outras cidades, querendo ser o que não se é. já nasceram podre, com essa graxa no granito neoclássico, e à medida que as árvóres, os parques, os bichos, os jardins, foram desaparecendo e cedendo ao pincel da pressa, dos automóveis, cada vez revelavam sua verdadeira natureza. uma coisa tinha certeza. o cheiro é o mesmo. antes de colocarem os primeiros aterramentos, a primeira pedra. esta cidade é este cheiro azedo, depois, o resto.

por último, sua missão era se desfazer do balde com as entranhas. pedaços de estômago, intestinos, de todos tamanhos, misturados em uma massa grudenta. seu chefe nunca a deu uma instrução exata do que deveria fazer com os resíduos. quando ela o perguntava, se esquivava com algo do tipo eu não vou fazer seu trabalho minha filha!. às vezes jogava no rio, noutras, colocava em uma caçamba do hospital municipal que havia ali perto, ou deixava no largo em frente, caso houvesse algum acúmulo de restos prévios, dando sopa. se o serviço de recolhimento não os levasse ficava lá por alguns dias, via as moscas surgindo aos poucos, em volta dos sacos que fechou. noutras vezes apenas jogava no bueiro, apressada, caso houvesse algum compromisso, o que era raro.

às vezes, no ônibus voltando para casa, morava em uma cidade perto da capital, pensava em todas as outras pessoas que poderiam ter trabalhos semelhantes. dos limpadores de galinhas, os limpadores de boi, de porco. imaginava-os fazendo sua rotina, largando as entranhas dos diferentes reinos por aí, esses animais se encontrando no esgoto, no rio ou atrás de um prédio, juntos no róseo mineral de seu sangue. imaginava entupindo as fossas na rua, imaginava os ossos dos peixes enfileirados embaixo da cidade, desde trezentos anos atrás, uma camada branca embaixo dos prédios ou acamando o solo embaixo das águas.

depois de algumas semanas começou a notar que o cheiro do balde estava diferente. a própria cor, também, estava mais viscoso, escuro. já não conseguia distinguir bem o conteúdo dele, o que era o que, parecia que havia sido reduzido, até mesmo moído, quem sabe. o patrão também andava estranho e cada vez mais nervoso, cada vez mais mandão. talvez fosse seu olfato que estava se deformando, mas bastava um pulo nas barracas de plantas para reassegurar que estava tudo em ordem. o cheiro era pesado e a densidade aumentava. tinha dificuldade de levá-lo para fora, se livrar dele. assim, começou a deixá-lo cada vez mais próximo do mercado. quanto será que é um curso de sashimi? pensou e foi embora. de noite, comendo uma sopa e vendo o jornal em seu pequeno e aconchegante kitnet, viu no jornal que haviam encontrado um dedo perto do mercado público. haviam encontrado também, um anel de ouro, por perto, mas ninguém sabia se o dedo cabia no anel, se um dedo morto muda depois de um tempo, se havia alguma relação entre um e outro. alguns especialistas discutiam o tema, a rigidez pos mortem e aspectos de joalheria contemporânea. no outro dia, não foi trabalhar. não voltou mais. pensou em conseguir um emprego em um shopping, em um bairro desses recém formado, longe do centro, um local fechado. um local com ar-condicionado. de certa forma, o cheiro, agora mais do que nunca, seria difícil de escapá-lo. mas pelo menos não veria o rio. você sabe o que é um balde? lembrou do patrão dizendo. você não sabe?