quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

vamos falar sobre útero

Quando Julieta começou de uma hora para outra a se dedicar ao tricô, ela realmente foi longe demais. Volte uma semana e encontrará em seu quarto um estranho hálito de mumificar. Volte uma semana e encontrará em sua cozinha tentando maestrar os poucos dedos que não sofreram danos entre a faca e a tábua de picar. Volte uma semana e verá a cara de sua mãe, Vera, uma polaca cuja moral fora instruída pelo clima árido da depressão central, entorpecida de braveza por novamente ver a filha ser reprovada no exame da autoescola. Por isso a surpresa quando ela misteriosamente se descobriu uma ótima costureira. Ela cuja mesmo a habilidade mais simples como a de respirar fundo era passível de incapacidade. Ela agora conhecedora dos fios, das tecelagens, das grossuras exatas para se fazer um suéter ou até mesmo uma tiara de cabeça. Ela que em menos de uma semana conseguira arranjar uma capacidade para seus dedos antes tão próximos das rotinas da raízes e agora verdadeiros trabalhadores, e mais ainda, diriam uns, disseram alguns senhoras entre o bom dia e o boa noite, artistas. E é claro que eu fiquei puta da cara porque conheço Julieta poderiam fazer o que? cinco anos, quem sabe, mas na verdade faz quase um ano, quase um ano que convivemos e fazemos coisas que as outras pessoas consideram sinais de intimidade como tirar fotos com os rostos grudados para cabermos no mesmo ângulo, ou quem sabe tomar chimarrão na frente de casa em uma cadeira de praia cravada no concreto, com uma boa dose de surrealismo. Bem sabia ela que há oito meses eu já ensaiava o tricô, coisa que fora passada a mim por gerações desde quando na Lituânia minha avó fazia remendos na época da guerra em soldados, e todos eram soldados naquela época. Bem sabia ela da importância disso para mim, tanto é que até assinei uma revista pela primeira vez na vida a Linhas de Perto, da Casa e Gavetas Editores, e que imagine só até mesmo uma loja pensei em abrir no ramo (passei perto de uma criança no supermercado na terça-feira e o fato dela chorar agudamente com um rosto bolachento sabor cereja vencida magicamente sumiu após eu observar suas lindas tranças, então pensei Traços e Tranças, está aí o nome da minha loja, até o nome do lugar já tenho enfim). Tudo isso pensei em dizer para Marco, meu companheiro, mas não falei nada para não soar arrogante, porque estava na hora de deitarmos, e porque também eu não queria suscitar o rosto fino de Julieta, eu não poderia correr o risco de deixar Julieta em sua mente como um post-it grudento em vai e vem logo na hora que eu queria era ser comida por ele de luz acesa sem nenhuma concorrência imaginária em seu córtex cerebral. Mas acontece que quando Marco me rebateu com seu gordinho pênis tonteante, por mais que eu quisesse brincar de fazenda ou jorrar suores e coisa do tipo, eu não conseguia pensar como fora que Julieta decidira se interessar pelo tal tricô, pelo meu tricô, aquilo tudo era uma sacanagem comigo, de certo a louca me espionava as escondidas ou coisa do tipo, eu devo ter mencionado algo para ela mas não lembrava exatamente qual momento fora esse e se envolvia ou não aquelas margueritas do chá de fralda de Flávia, eu estava quase certa de que essa não era uma simples coincidência essa mulher devia estar armando algo, daqui a pouco eu veria o caminhão de mudança trazer uma piscina oval igualzinha a minha para a casa dela, que fica no outro lado da rua, daqui a pouco ela estaria pedindo ovos com um decote filho do caráter mais explicito na minha porta, o exibindo para Marco, logo depois de eu sair para deixar as crianças no colégio, não me surpreenderia em nada ela pular em cima dele, nas suas noites de tricôs Julieta deve sim pensar em Marco a fodendo de costas como uma máquina de costura, rápida e forte, deve imaginar como será o seu pau, o mesmo pau que agora me atinge por dentro sem jeito, com um ritmo indeciso porém energético, o pau que me cava aos poucos até o ponto de eu duvidar que ele realmente está lá e porque ele está lá para me abrir ou para me fechar. Será que Julieta gostaria, aposto que sim, gostaria de estar aqui com suas duas agulhas rosas enrolando a lá com ferocidade enquanto Marco erra meu clitóris e sua saliva é desperdiçada no meio das minhas pernas, enquanto eu o empurro para longe e faço nosso ponto de contato ser apenas meus dedos esquerdos e sua glande careca e viscosa, se Julieta estivesse eu mesma lhe daria um ensinamento importantíssimo sobre a arte do tricô – primeiro que uma agulha sozinha não faz o ponto – abrindo um caminho com os dedos entre as nádegas molengas e fugidas de marco – segundo que para um bom tricô o importante além de movimentos repetitivos é surpreender – encontrando uma abertura na junção de seus pelos grossos e avançando por trás vagarosamente cada vez mais dentro do dentro –e terceiro, tudo pode ser agulha, tudo é agulha, todo material é útil se temos a vontade necessária de trabalhar. Eu fodia Marco e ignorava seus pequenos rugidos de asas batendo ao vento forte enquanto imaginava Julieta a costurar na poltrona ao lado de nosso closet, eu não conseguia ver o que ela estava tecendo, se era uma blusa ou um blusão, um biquíni ou uma boina e isso me deu muita raiva, muita raiva por não saber ou não poder saber o que era, então quando eu e Marco acabamos e ele se entregou a sua própria poça de suor como um peixe exausto de tanta energia gasta em uma fuga inútil de um anzol estrangeiro, eu percebi que me parecia um pequeno traje, talvez para um bebê ou uma criança.

Foi então que me veio uma estranha sensação de querer ser muito pequena para poder caber naquela peça de roupa.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

não fora mais encontrada a irmã de charlotte

embora a manchete do the times
alegue desaparecimento
aparentemente entre as  2pm e 3pm
a irmã de charlotte teria se perdido
em seu próprio apartamento um tipo londrino van der rohe
embora a insistência da mãe
de que ela esteja lá em algum lugar
gostava tanto de tirar uma soneca
no armário de talheres para mariscos
às vezes dormia com os tapetes
quando se despistava dos olhos
sem falar sua paixão máxima
pelas expedições nas luminárias
herdadas da família
(num tempo em que a índia era mais interessante)
o que dizem mesmo por aí
é que a irmã de charlotte
encontra-se morta mesmo não se sabendo exatamente onde
onde ficam os mortos
onde ficam os mortos
a irmã de charlotte sabe
mas tirando a grã bretanha
no resto do mundo a pontualidade é uma questão
de coreografia

grafado em uma parede de tijolos à vista, embaixo do rio Hughes, há uma frase que explica
quando se desaparece quem some primeiro são os ouvidos

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

você já ouviu falar em nebulosas?

isto é o som de algo passando
fffffffffffffffffffffffffffffffffffffff
começa com f e termina com f
(e intui-se que no meio há um número incontáveis de fs)
você já ouviu falar em nebulosas?
dizem que tem a ver com isso
(desconfio ser incontáveis o ponto de encontro)
você já tomou um café no posto público 9?
como é estranho não é mesmo
levar uma xícara na boca num lugar espirro de doença
manter-se acordado e ter que manter-se acordado
para ver os outros dormirem depois de um longo espirro
cairem assim one is a thousand 

que você mastigue sem tocar

olhe essa laranja ela é para você
eu já vesti vitrines e troquei Berlim por um avião
tantas foram as vezes que um mês era a duração de um bocejo
comecei a vender lingerie antes de ter os seios crescidos para as fotos
Hebert Tobias uma vez me disse que nossas maças do rosto são o estoque onde fica a quantia exata de nossa gravidade
eu não acreditei naquela época
por isso essa laranja aqui trouxe para você
você é jovem muito jovem
mas não para saber onde realmente nasceu
há uma idade em que mudamos de cor comigo aconteceu cedo
meu braço direito começou a azular e o esquerdo preferia o cinza
eu tinha medo do encontro dessas duas cores no meu peito
eu preferi a música do que as fotos
por isso mandei fazer na Hungria uma abertura de lábios que não denunciasse
as palavras que acertava de primeiro
provavelmente eu deveria ter parado para costurar os botões no caminho
nessa época eu achava que catarata era um tipo de borboleta dócil mas falante
houve até um dia no Muddy Days que eu reconheci o seu pai justo por isso
não se via homens com olhos de larvas naqueles dias
eu descobri que toda música é onívora
que só a música mesmo é ovípara
que os verdadeiros carteiros usam o uniforme nos ouvidos
ele poderia ter sido Philip ou Alain
mas naquele tempo esquecer me excitava
há muito confundi minhas costas com um prédio
eu coloquei a nudez na cara
e o resto do corpo todo ficou sem-teto
por isso depois de um ano uma nova geração de cometas retorno
e essa laranja aqui eu trouxe para você
é importante não confundir desaparecer
com movimento

o título da cara

há sempre uma esperança que haja café na cafeteira
embora a esperança não espere pelo café
assim como as semanas rasteiras
oliveiras frias extraídas nas ligeiras barrigas
é fevereiro para todas as mãos não inteiras
assim como a letra ó
em que cabem as quilometragens esteiras
em que cabem as semanas rasteiras
a esperança da cafeteira
assim como a letra ô
que agora uso no lugar da boca
a letra que uso como boca
ali na cara uma letra na cara


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

posição dos quatro

eu queria muito tirar os sapatos porque a verdade é que dentro deles eu diminuía> mas eu estava sendo o domingo naquele dia e o tempo tirava as cores dos objetos> imediatamente era noite> e eu lá esperando uma carona desejando ter mais de uma boca para dar conta do café do cigarro de são josé tudo na mesma hora> e ainda tinha a chuva que não estava caindo mas podia cair o que era bem pior> então ao invés de ficar descalça eu resolvi olhar para uma menina cuja a idade uma vez eu tive> talvez durante algum mês da vida eu tive 16 anos talvez> ela era muito alta em compensação ao seu número de aniversários> e de costas isso devia soar como desapontar para uns ou piscadela de iluminador para outros> eu resolvi pensar que o nome dela era Marina> e que ela preferia acreditar nos horoscópos do que na balança> e que de longe seu cabelo ou o que ele esconde pode ser enxergado bem melhor> ela tinha esse rosto de passeio> onde as pessoas em geral podem caminha correr ou até mesmo acampar porque não> a terra recém revirada como ficam as construções quando vão embora> essa menina tinha o rosto de alguém que foi embora e isso me doeu profundamente até porque com 16 anos ninguém chega perto o suficientemente para ir embora> mas então me lembrei que a sua idade era uma invenção> a minha> seu nome poderia ter sido Angélica> Angélica a atriz do pornoposse> Angélica a pisca olho das câmeras> e nenhum sofrimento fez mais nenhum sentido> porque só a dor física é real> como por exemplo a mesma tomada de quatro por quatro horas com uma lubrificação saara> mas a julgar pelos corredores de seu ouvido> Marina não foi Angélica nem em sonho nem em> eu sabia que a olhava só para me fazer de início> porque olhar para alguém, nessas situações, é como fazer um retorno para si mesmo só que blefando a quilometragem toda> era uma desculpa a noite que era> eu sabia que logo não haveria mais aquele museu> e a maquiagem forçada de tribo floresta> de alguma forma eu carregava o futuro ali mesmo> entre o anelar e o indicador vai saber> tem essas horas que toda roupa sobra> nessa hora o ideal seria não avisar a previsão do tempo> mas então você não lembra quem veio primeiro a cadeira ou você>

domingo, 6 de outubro de 2013

para tirar o ouvido da tomada

pensando agora não faz nenhum sentindo nós que nunca nos víamos decidirmos respirar ar puro justamente no dia que a chuva não oferece intervalo um dia em que a cidade é pequena e no excesso que sobra uma ou outra lembrança esquece de nascer mas era noite e o pior de tudo parecia que sempre seria naquele tempo eu testava figurinos porque acreditava fielmente que assim que se começa a escrever uma peça primeiro as roupas depois os personagens eu queria escrever tanto uma peça de teatro eu lia a biografia da lillian hellman e suspirava serpentes contra meu ócio manso mas eu era tão ruim em diálogos lembra o que será que se diz mesmo na hora que você mente não recordar de ninguém exlido é uma palavra que existe será hein e nesses momentos uma caverna surgia e juntas apostávamos uma corrida até onde o chão subia quando eu conheci vocês eu demorava o que quase um minuto para terminar de falar uma palavra porque nunca sabia se ela realmente ou se eu tinha inventado será uma deselegância parir uma nova palavra e não avisar ninguém eu pensava enquanto falava tão devagar esssseee éééééé ooo llluggaarrr onnndee dessapreeendii aaaa assobiiarr vocês escutavam tudo com uma paciência gigantesca em 8 minutos muitas pessoas poderiam ter decidido me deletar de uma memória com gosto de pêssego ou açúcar mascavo mas não vocês apenas ficavam ali conversando sobre cesare pavese e ana hatley jurando um para o outro não se atirar da janela do apartamento de um amigo ou atender o telefone sempre do mesmo jeito aos poucos eu ia lendo seus textos escrevíamos cartas e ficávamos calados quando nossos amantes entravam na sala porque eles não poderiam saber de jeito nenhum que só o beijávamos para ficarmos mais sozinhos enquanto isso uma enchente acontecia na minha boca e depois em casa eu criava umas cem espécies diferentes tentando entender o que eram aqueles textos porque ninguém nunca me disse que um varal de roupa também tem família fazia tanto frio naquele dia e a mochila estava pesada com todos os livros que eu decidi que vocês deviam ler então vocês finalmente chegaram demoramos para pedir o café eu lembro de pensar nossa é como se ele tivesse agora me dando 40 anos de sua vida mas ao mesmo tempo na bochecha direita estava aquela conversa tida com o avô quando ele contou que resolveu ser arquiteto para poder velejar e você tinha 8 anos quando entendeu que não precisava entender nós fumamos muito e eu disse algo do tipo "eu me recuso a chamar uma colher de talher " ou "tu não vai acreditar mas todos os meses no fundo são outubro" você deve ter rido e passado a mão em minha cabeça chamado atenção para um descuido de caráter do tipo "quando começou a usar saias e acreditar em flores" eu lembro que chovia mas chover era como habitarmos uma mesma cabeça e eu estava orgulhosa de nós dois lá lutando contra o mal tempo eu te olhava e era como ganhar uma lucidez gigante do tipo nós dois sabemos que a pangeia sempre foi imaginária e que no fim só vai sobrar isso nosso mapa íntimo para nos perdemos debaixo de qualquer escada de qualquer parte no fundo eu achava que se não fossem as roupas poderíamos usar o nome um do outro atrás de assinaturas e que o único problema de dividir um mesmo guarda-roupa com alguém é ter coragem de sair dele

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

quando sonhei que esqueci meu nome se foram 30 quilos

no ocaso se levar de brinde

eu tinha 22 anos e estava fugida. perdida. decepadas todas as cabeças. inclusive as da vitrine. liquidação. eu tinha certeza absoluta de que 49 é o número posterior a 22. eu tinha esse emprego e arrastava minhas roupas para lá. ficavam as roupas trabalhando enquanto isso eu ia tomar um chá de clima temperado, ler Auden e enrolar o cabelo para testar minhas nada táticas de convencimento. não conseguia prestar atenção nos lembretes de bom comportamento como por exemplo "olhe para o lado antes de atravessar a rua". eu sempre pensava que as ruas tinham tantos tantos mais lados do que aquela singela impressão proporcionava que diante da impossibilidade imediata de captura nem me dava ao trabalho de, ao trabalho de tentar. eu tinha um par de botas. era verão. e eu com aquelas botas. as pessoas falavam comigo. 17 minutos depois eu percebia que haviam falado comigo. 17 minutos depois é um tem inválido para voltar atrás, para resolver seguir alguém depois de perder de vista, nesse tempo essa pessoa já pode ter ido da zona sul a zona norte ou inventado 287 apelidos novos para você. meu cabelo era mais comprido na esquerda e por isso sempre achava que tinha alguém atrás de mim. isso me deixou neurótica por um tempo. eu fugia de qualquer lugar se pensasse que uma situação de perigo é aquela que você não precisa se desculpar. você simplesmente vai embora da exposição do seu amigo, do aniversário de sua sobrinha, da aula de fotografia. depois diz, é que pensei que estava em perigo. aquele cara tinha cara de acidente. aquela mulher tinha 30% de chance de me confundir com uma de suas antigas minas de ódio. senti cheiro de gasolina. fui prudente. sou responsável. quem saberá o que poderia ter acontecido se eu ficasse lá? sabe quem ficou lá? john lennon. e veja só o que aconteceu com ele. eu usava desculpas ridículas como essa o tempo todo. eu voava de um lugar para o outro por causa dos cigarros. ou porque acabava, ou porque não era permitido fumar. e se eu me apaixonasse por alguém eu errava a direção da fumaça, de propósito, nas últimas semanas de término eu sempre saia com alguém com cara de nuvem cinza. era assim, não sabia se ia ou vinha, ficava pouco tempo nas pessoas, lugares. usava roupas muito coloridas para não ser atropelada já que eu sabia meu comportamento errante nesse meio. mas então um dia acordei com a sensação de que tinha a ideia de um texto muito bom. porém logo a esqueci. então lembrei de meus últimos relacionamentos. eles também tinham parecido uma boa ideia. resolvi parar de escrever,a hora, eu olhei o relógio na hora: 16:59. foi quando eu me senti realmente livre na minha vida, um minuto antes. antes, desde de tinha uns cinco anos e aprendia sobre miguelângelo nos tartarugas ninjas eu sentia de que eu tinha que escrever. era uma obrigação terrível que roubava todo aquele suor reservado especialmente para o mercado de trabalho ou a lucidez no supermercado ou na hora de convidar alguém sério para transar. isso era passado. e fui discutir kracauer ( o alemão não o norte-americano é claro) e adotar um sonho antigo de cultivar oliveiras. eu usava um chapéu de pescador para as pessoas não me classificarem como interessante ou me reconhecerem. tinha medo que soubessem que na verdade não sei desenhar um anzol e confundo ele com a letra J. fazia exatamente 1 ano que eu tinha comprado aquelas botas. aquelas botas que eu gastava ao tentar correr atrás dos 17 minutos perdidos. 1 ano fazia que eu tinha deixado minha bicicleta em uma oficina e nunca mais ter ido pegar porque eu não sabia pedalar chorando. fazia um ano que eu tinha esfregado a minha voz contra um paredão de pedra-granito para que ela tivesse medo de sair de casa. que eu não tinha mais barba nenhuma porque meu antigo namorado resolveu ficar velho sozinho e que na verdade eu só gostava da barba dele porque eu não tinha nenhuma e isso era uma coisa com a qual simplesmente eu tinha que lidar. eu não percebia mas a paisagem atrás da foto realmente estava mudando, eu comecei a gostar de rosa. às vezes eu conseguia sorrir para as pessoas e conhecia as suas casas. mas era como habitar um estômago. então eu sentia nojo, a biologia me detestava. mas aí eu coloquei um anúncio no jornal. o anúncio dizia: "ninguém lê jornal". ninguém me ligou na mesma hora. combinamos de dividir nomes para uma bergamota, eu chamava de bergamota ele de tangerina, tudo isso enquanto as comíamos (eu detestava bergamota mas a chamava mesmo assim por orgulho). com vergonha da vergonha, tive que engolir as sementes, seis semanas depois minha amiga riu quando disse estar com medo de estar grávida de uma árvore. ninguém me contou que era homem e mulher que trabalhava e não trabalhava e que a única certeza que tinha era que nunca mais usaria calças. detestava. mas sua voz era muito feia e paramos de nos falar. contudo ele/ela tinha um sinal na bochecha que parecia uma castanha. aquela pequena impressão de unicidade me deu revitalizou o teatro bombardeado. me deu vontade de voltar a escrever. eu tinha 22 anos e não tinha conseguido ser surfista, nem patinadora, baixista ou redatora de cartas de rompimento anônimas ou pesquisadora de onomatopéias. mas eu tinha a ideia para um livro. para isso, tinha que escrever, em tese. mas eu não me dava bem com meus pais e morava com eles. todos meus amigos eram gays e naquela época talvez eu fosse e meus pais faziam cara feia para isso. eu nunca estava em casa. e só conseguia dormir no sofá porque não tinha forças de subir as escadas e encontrar sempre a mesma coisa: um lugar onde não havia ninguém nem eu mesmo. eu cheguei para meus pais e disse: vou estudar história da arte. minha mãe está surda até hoje e eu minto que sou loira ainda. nós brigávamos porque eu usava blazer e não era os anos 80 mais faziam 20 anos. depois de uma briga minha pele concretava toda e eu não conseguia flexibilizar os ângulos necessários para escrever. eu estava confusa. meu gato fazia xixi nas roupas que estavam no chão do meu quarto. eu não tinha mais o que usar. eu jogava tudo no chão. tinha decidido parar de fazer sexo. não concordava com o fato de não poder inventar novas palavras na primeira conversa com alguém. era muito exigente ou nada exigente. uma vez cheguei em casa e pensei quem é essa mulher? é tua irmã respondeu meu pai. eu não fazia ideia. todo dia eu colocava um relógio no pulso para enganar a todos que eu era íntima do relógio. eu não sabia nem ler os ponteiros. mas tinha a impressão de que o braço cairia se  não usasse algo assassinadamente realista como um relógio. eu só sabia que precisava aprender russo e parar de procurar nos reflexos dos restaurantes alguma conversa que eu tinha esquecido de ter com alguém. eu saía por aí recolhendo qualquer material de construção e dizia, no futuro, esse cupom de pipoca será importante. um dia irei decorar toda minha casa com tudo que eu esqueci de dizer para aquela mulher. teve uma vez, estava eu e mais três amigos, todos tido o figurino escolhido por um terremoto. nós abrimos uma cerveja, naquele tempo bebíamos muito e dissemos em voz alta: o que acontece se nós levarmos uma sacola dentro da sacola? eu tenho 22 anos, uma bagagem só de malas, e um dia só sabe existir tropeçando no outro.

domingo, 15 de setembro de 2013

as perseguições

1.
oi você não lembrará de mim amanhã. nunca nos conhecemos, isso é fato. mas semana que vem a previsão para o Marrocos é de ida. fazem dias confundo regatas com confessionários. tenho uma forte impressão de que em 1871 fomos amantes, onde você me comeu numa paisagem verde que depois de dois anos virou uma estrada. pode ser que nos matamos ao tentar trocarmos de pescoços, isso ainda é dúvida, a questão é que nunca me engano. pressentimentos são a base do suor. você é alta e eu tenho seios pequenos. podíamos ser guias turísticas em montanhas. eu estava lá quando de madrugada seu cabelo ganhou o rosto do close. irrefutavelmente combinamos. peço desculpas pelas mãos na garganta. prometo. deixo você falar só se mais tarde descutirmos o menu da janta. só se. qualquer coisa sempre teremos o arrependimento.

2.
oi. você provavelmente nunca viu uma ilha nascer ou levou meu rosto para passear em uma receita de boa vida. não lembra de Eva ou Lívia naquela festa da qual elas nunca saíram. você nunca transou com o tédio por paisagem. você nunca voltou com o deserto embaixo da língua depois de sair da casa de seus pais e qualquer palavra trocada com alguém escapava com pequenos grãos de areia, (que para o mundo microscópio atendem pelo nome de pedraas), que arranhavam completamente o rosto de seus ouvintes. você nunca esteve na Ilha da Madeira em 1987, fingindo gostar de frutos do mar por medo de desapontar seu anfitrião, um homem largo e arrogante porém com uma filha bonita. você nunca convidou alguém para um café na expectativa de engordar um esquecimento. ou estudou gastronomia curda por ver o estômago como proteção divina. você não estava no aeroporto Tom Jobim quando percebeu que quem chorava por um adeus pesado eram seus olhos e não você. ou tentou convencer alguém que era feliz só para não ficar no escuro sozinho. você provavelmente nunca leu Gombrowicz em uma situação de emergência ou achou que entendia todo o peloponeso por empatia a situação de estilhaço. provavelmente não era você presente em todas essas situações comigo mas mesmo assim gostaria de dizer que ontem a noite passei um sua casa e enchi sua geladeira com congelados sem glúten para que passe uma boa semana. se um dia nos conhecermos te conto de onde vem o que você come. prometo.

3.
oi tudo bem? só gostaria de dizer que tentei te conhecer. tentei te conhecer naquela viagem espiritual que você fez a Tiradentes mas não deu muito certo porque você me confundiu com uma garçonete. tempos depois comprei sua antiga casa de veraneio mas infelizmente só conheci sua conta bancária. eu estava lá no Supermercado Max & Co quando você comprou três uísques e muitos limões mas seus olhos estavam tão inchados que nem mesmo eu! te reconheci. gostaria de dizer que fui eu que acidentalmente deixei cair 50 pratas perto do seus pés naquele dia que você não tinha como voltar para casa. uma vez tentei te ligar mas na hora a vergonha mudou o conteúdo da minha voz: o jeito com o qual você me disse que não assinaria tv à cabo foi docemente magnífico. já tentei te deixar bilhetes no espelho do banheiro, mandar cartas para o século XVII, e-mails para uma manhã de trabalho mas você nunca me responde nenhuma palavra sequer. já tentei puxar conversa em meio ao trânsito das seis horas mas você escutava Leonard Cohen e não achei propício, anos depois, em uma festa vi você e seu cabelo auréola de novo mundo, mas você estava feliz demais. até houve uma vez que enfim tivemos mais contato: eu estava saindo de um bar quando você me confudiu com alguém. transamos por quatro horas depois fui embora e quando nos revimos você não me reconheceu. ainda pretende matar o trabalho para ir no cinema assistir Garrel? de qualquer forma nos vemos lá. 

4.
oi  tudo bem? não sei se tu lembra de mim te conheci em 1976 era verão e tu usava uma gola em v verde com pipas laranjas enquanto atravessava a rua. não sei se tu recorda, mas me marcou muito um cheiro de ex-alecrim stripper. tenho a impressão que já te vi dentro de mim mas não confirmo. enfim. tu estás muito diferente nessa foto, mas, topas um café?

5.
oi. nós nunca falamos diretamente mas preciso dizer. você precisa falar para sua amiga parar de beber tanto. e dizer a Otávio que Marta não presta ( já passam de nove os amantes sendo dois os abortos confirmados). também acho sua mãe neurótica. e que sua tia já deve ter sido lésbica por 1972 ou 73, por aí. você tem que parar de esquecer as chaves de casa toda vez que vai no banheiro de alguém recém conhecido. comprar urgentemente mais um casaco de inverno porque seu único tem um furo que equivale a Índia para as formigas. pelo o que eu entendi seu LDL está alto então evite massas folheadas. na última foto que tirei de você estava muito pálida, faz um ano e pouco que não vai ao médico, não custa nada relembrar dos rins. qualquer coisa meu número é 8967392. se você desmaiar lembre de mim no sonho: sou morena com cabelos pretos e lisos, olhos melados com amarelo. quem sabe nos leve para conhecer a história da escócia quando nos imaginar por lá. seu minguinho esquerdo é muito bonito. naquele acidente peguei parte dele. a última imagem antes do sono é ele iluminado pelo abajur. se cuide e fique bem. por favor.
desconfia que há uma hora específica que o tempo nunca marca e confia fielmente nisso. por isso no dia que é hoje decide abdicar de suas habituais frequências. não deixará os olhos em prateleiras. não colocará selos em qualquer palavra. não amará duas vezes uma mesma tentativa. está absolutamente convencida de que embora seus ancestrais ou contemporâneos não tenham percebido existe sim uma falha exuberante nesse sistema de contagem - observando melhor o mundo dos relógios tudo ali é uma aventura para o erro - basta alguns graus de concentração, um desperdício atento e o princípio de atenção de uma guerra talvez para poder denunciar sua inútil imperfeição.





não irá regar as plantas da casa de Vilma, a senhora com os parentes irreais que agora está a fazer uma viagem inexistente

sábado, 14 de setembro de 2013

eu me preocupo com os pulmões dos fumantes

a primeira vez que eu sumi minha garganta ganhou um resort novinho em folha >qualquer pausa era férias e você vinha me visitar lembra> aquelas camas bem dobradinhas e a bagunça do sonho descartado fazendo resto no carpete> eu contava que uma floresta é como olhar uma fuga você dizia que gostaria de ser um marinheiro porque nunca acreditou que a cor branca é pura> ficavamos bem apertados colados> sua barriga era via de comunicação expressa com minha orelha e as pernas cabiam em três voltas no pescoço> nos guardávamos em armários gavetas de banheiro e bolsos de jaquelas feitas para dias de chuva> se por acaso um cliente fosse bonito como nos filmes que nossos pais não nos deixavam ver nós virávamos um botão a mais em suas bolsas e íamos embora com elas> um dia conhecemos uma mulher que havia perdido a vontade de convencer as pernas a dançar e agora tinha uma escola de dança> mesmo ela e as pernas não se dando nada bem memo ela> vocês brigaram quando fomos comer camarão com os dedos> você queria dizer para ela que não podemos confiar num dia que morre> que se até o céu aterrisa não há desculpa para largar a boca por aí> o desperdício adora ser família> ela nos deu a visão das costas irritada xingou nosso futuro todos os cinco mil e quinhentos> não tínhamos como pagar a conta> tivemos prometer dar ao chefe da cozinha ao dono do restaurante todas nossas roupas e figurinos do dias que virão> inclusive os que já foram como os de nossa infância> até mesmo aquelas fantasias da apresentação do País das Maravilhas dos 6 anos de idade> aquela que a professora de teatro foi logo expulsa do colégio> porque achou que sexo era uma brincadeira de criança> onde dois menininhos se beijaram porque um fazia papel de mulher e acreditou tanto tanto que virou um sonho próximo ao seu pescoço> desde aquele dia meu sonho tem muito a ver com as sobrancelhas dele> o fato é que tivemos que prometer doar todas nossas roupas> infelizmente mentimos tão bem que a verdade como sempre fora desnecessária> você lembra que aqueles dias naquele hotel era como acordar com a sede roubada por uma escavadora> acordar com um furo ao invés do olho> as coisas entravam e caíam para dentro desse poço desse olho se estrangando com a alturaqueda> afinal conhecer algo é estragar> mas então aconteceu toda aquela confusão toda aquela> pegamos carona com um carro verdeoliva renault anos 80 deluxe season> com um senhor que tinha uma sombra ao invés do rosto> então a estrada era cada vez mais deslizante zante zante zante tudo tão rápido> eu que pensei que morrer era uma piada> eu a que ria> eu lembro das curvas de sua testa sendo marionetes para o medo> vi teus todos seus dentes ao mesmo tempo pela primeira > você tinha cheiro de metal quente e parede antiga cheiro de assombração da última vez que vivemos> você lembra do caminhão parecia uma baleia ou lobo marinho> eu disse onde estamos mesmo onde fica o oceano> nunca pensei que um dia caberíamos dentro dos nossos olhos

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

cidade das baleias

4.

seu gravador acordou gordo dor de barriga. dentre as bordas de seu recheio estomacal frases como: "queria não ter sentido o sonho dentro de John Crowford" ou "como você disse que se chama mesmo?". Ele, ao contrário dela seja ela o lugar qualquer onde esteja agora, recorda tudo. ontem saíram os dois - e num bar local estacionado em grama fofa - a deram uma garrafa de popka. na primeira dose ela mentiu que era prima distante da Albânia. na terceira que era a Albânia. e depois esqueceu de regar um outro pensamento - só os mortovivos viam à tona - nem de desligar o pobre ela se deu conta e nisso deu: a noite inteira com os ouvidos abertos remando trabalho. em dias como esse, ele o gravador, tem saudade de sua velha vida. embora alérgico a areia, embora descrente do sol "era tão bom aquilo", aqueles dias de morar na bolsa de um arqueólogo.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

vamos falar de estômago


um grito deu duas voltas na casa e aterrissou no centro da mesa > todos estavam proibidos de se levantar> até que a refeição até que não tivesse mais refeição jantar> dizia o grito> eram uns 4 ou cinco> em processo ou produção prefácio de amigos> suas idades não combinavam altura> mas as cabeças conheciam o teto>um parecido sem forro e com cheiro de maduro sem prova> um deles Vitor> pintor ou talvez desconhecido> de fato era gordo de relance> não parecia se importar> falava de figos que na infância adorava> mas hoje, terremotos no ventre só de imaginar> perto dele >Clea> não parava de conversar> o que é estranho porque o que? há dois meses não comia> supostamente o pai era para ser curandeiro ao invés disso virou uma foto> ela contava de quando plantou oliveiras na tunísia mas nunca as chegou a vê-las realmente> e hoje isso é a tunísia> cadê tunísia?>por saudade não se refiria a nada duas vezes> na coreia como estaria o sexo> comentou arthur> ao perceber o assunto ganhando limbo mudou assunto>Arthur que ao falar de sexo na verdade falava dos figos> os figos de Vitor falava de terremotos falava de ventre e não queria imaginar> Arthur nunca haverá em Arthur uma tunísia> que triste sabia Clea> mas não arrotava denúncia > hoje já não sei acordar como antes> hoje só durmo no chão> deixa escapar Lúcia> a confissão piora> saio com homens e mulheres> digo que vou os levar ao chão> aos pés> e e os levo mesmo> mas não do jeito que invetam> tenho medo de altura e por isso no quarto meu quarto não tem cama> só posso dormir em casa> de sexo gosto> mas só embaixo bem embaixo> equilíbrio em todos os lados> todos são silêncio e qualquer escape deslize é vulgar>passam-se dias> semanas> anos> o presidente muda> o mar vira nuvem e mar de novo> quando a comida ficará pronta> vitor pergunta> ele que é gordo> ele que adorava figos> mas hoje não transa> mas na verdade transa muito mais do que pensam> quem fez a comida pergunta Lúcia> quem irá trazer a janta diz Clea> Vitor lha para Clea> quantos anos faz que não ela não fode> pensa mas não diz> já é gordo mas não indelicado> daí já é demais> quem finge que não ouviu o pensamento de Vitor é Arhur> ele evita olhar para Clea> não quer passar o recado outro o errado> ele não transará com ninguém hoje> muito menos levará um cu na memória na casa> ainda mais com ela a pena máxima> ele não transaria nem com o próprio pau> na verdade gosta mesmo é da vida dos sabonetes e não o contrário> Lúcia só escuta> e aperta os bicos dos seios para amansar um frio na barriga> nas pernas> na tudo> então é isso Vitor acusa> não há comida não há janta e não podemos sair da mesa> Arthur os lembra> nunca saíram jamais dessa mesa> as pernas estão dormentes> é mesmo> concordam as mulheres> enquanto comem a fome> juntos comem a fome> até Vitor tirar do bolso> uma trufa> e comer sozinho> devagar.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

cidade das baleias

1.

na chegada não perguntaram sobre seus bolsos : o que levavam ou esqueciam. um asiático - fã de árvores magras e medo portátil (tom jobim) a buscou na rodoviária. "tudo o que você precisa saber aqui é que não importa aonde esteja, as garças chegaram primeiro". o sol destemperou a conversa e na sombra em falta tal realidade perdeu os pés. havia só uma rua. nessa rua só uma direção. "telefones, há não"contou a sobrancelha salgada do homem. ela se sacudiu, alguns nomes cairam, um juntou do carpete e entregou para a recepcionista do hotel. ela sentia que sua mala era diversão para o chão. no ouvido esquerdo um zumbido. do seu quarto se via o mundo quando se deita.

2.

um senhor, um de grandes longitudes, a pergunta o que faz. "estudo grosálias marinhas" responde. é cedo, é café, é da manhã o café e o continente nunca retorna ligações. o homem tinha jeito de quem não sabia mais ouvir sobre o mar. não retornou o convite aos olhos dela, com um guindaste no rosto se serviu na mesa de frutas, quando comia uma fruta com romã, uma parte da boca se concentrava somente em se apoiar nos cotovelos do ar, e justamente por essa gruta natural, o sabor transparente escorria. aquela deveria ser a feição da falta de interesse.

3.

no primeiro dia ela conta ao gravador "até agora, não identifiquei nenhuma grosália marinha". Não o diz - par exemple - que tem medo de mergulhar; que depois de molhada tem medo: nunca secar completamente. ali é a colina Cascatu, e sua parte mulher sente a perna esquerda fraquejar ao lidar com a ausência de nuvens. quase que explica, é apenas a diferença de temperatura, ou o cansaço, que na última mudança guardei abaixo da cintura. mas não há ninguém por perto e são nessas situações que ela, a perna, perde o controle de seu humor.

4.

seu gravador acordou gordo e com dor de barriga. dentre as bordas de seu recheio estomacal frases como: "queria não ter sentido o sonho dentro de John Crowford" ou "como você disse que se chama mesmo?". Ele, ao contrário dela, seja ela o lugar qualquer onde esteja agora, recorda tudo. ontem saíram os dois - e num bar local estacionado em grama fofa - a deram uma garrafa de popka. na primeira dose ela mentiu que era prima distante da Albânia. na terceira que era a Albânia. e depois esqueceu de regar um ou outro pensamento - só os mortovivos vinham à tona - nem de desligar ele, o pobre, ela se deu a lembrança e o resultado foi isso: pela noite inteira com os ouvidos abertos ficou remando trabalho. em dias como esse o gravador tem saudade de sua velha vida. embora alérgico a areia, embora descrente do sol "era tão bom aquilo", aqueles dias de morar na bolsa de um arqueólogo talvez tenham sido os melhores. dói muito levar por dentro o que para outros desvirou até mesmo recordação. hoje cabe a ele restabelecer a manhã.

domingo, 28 de julho de 2013

cachoeiras não são conhecidas pelo seu silêncio

Depois do expediente, mesmo sem muita sobra de dinheiro, gosto de entrar em uma loja como quem não precisa de nada, mas quer ser impressionado mesmo sem nenhuma imaginação pronta para ser substituída por realidade.

 Entro em joalherias e vejo as formas cilíndricas e octogonais dos colares, examino as fendas em ouro como quem relembra a pele por trás deles, como quem já tivesse o pescoço só faltasse o presente para dá-lo. Mas no fim os pescoços e as mulheres que construo são sempre mais belos e belas do que um relato pronto, e me coloco a pensar nelas indo embora com facilidade e deixando os vendedores inseguros com a qualidade de seu estoque.

 Gosto de andar pela rua, meu terno, uniforme de trabalho alinhado, feito exatamente para o homem que me tornei. Quem me enxerga com uma gravata borboleta, os sapatos engraxados, nunca imagina meu trabalho e sempre me trata como se eu existisse, com um cumprimento, uma oferta de flores, um convite.
 Quem me enxerga imersos em linhas de giz nunca pensaria por exemplo que ganho a vida a tocar piano, e todo dia acordo muito cedo, porque a morte nunca descansa, e chego em meu local de trabalho, ou seja, o hospital. Que trabalho num hospital.

 Há alguns anos atrás fui internado lá, tempo em que eu bebia demais e uma infecção levou parte de meu fígado. Sem ter dinheiro para pagar, o diretor do hospital me ofereceu outra saída. Esse lugar é muito triste, me disse ele, talvez se houvesse um piano. E assim foi que comecei a usar esse terno, esses sapatos, e a tocar no saguão de recepção do Hospital Fonte de Luz.

Todos que aqui chegam, desde o táxi, desde a esquina, já são surpreendidos pelos cordas altas, por um Bach e eles não sabem nomear, mas lembram seus avós ou pais, já são guiados pela minha música e ficam curiosos por saber quem é o responsável por essa distração. Este não é o lugar onde eu imaginava estar quando crescesse depois de inúmeros noites de estudo ao lado de Neuza, uma mulher baixinha que me deu a impressão de que tudo pode ser portátil, e com muita força nos dedos, que me injetou a capacidade de não errar e mesmo se errar um ou outro reflexo e combinações de notas, continuar.

Fora Neuza também que me deu lições sobre a mística dos pianos. Há certos pianos que tem o poder de ensurdecer algumas partes do corpo das pessoas, de controlá-las por assim dizer, mas apenas os muito bons, ou muito ruins, conseguem isso. Nunca pensei ser um nem o outro.
Sempre lembro de Neuza uma ou outra vez no meu dia. Seja porque alguma flecha aguda de choro percorreu três corredores intacta, Neuza nunca demonstrava falar com as dobras do rosto, seja porque alguém reclamou do serviço dos atendentes de recepção, Neuza possuía uma severidade que em outro mundo seria um navio de guerra.

Como meu senhor disse um hospital é um lugar muito triste mesmo, mas não precisava ser visto assim. É claro que existe a presença das unhas sujas da morte, infectando os lenços brancos e feridas de acaso, mas também há os eventos de nascimentos, e fomos criamos para achar que bebês e crianças são coisas boas, portanto a esperança aqui anda nua. Mas este é um lugar diferente. Colorido, com lustres grandes, detalhes bem talhados ao redor das portas janelas, cores vivas como o vermelho sendo usada na maioria das paredes sem medo do que ela possa despertar. Esquecer aqui ganha de qualquer descuido.

 Quando comecei a tocar por aqui, uns achavam um absurdo, o barulho, a  perturbação dos doentes, dos familiares.  Como se meus dedos soletrassem desafinassem seus instrumentos de percussão, deformasse a imagem dos parentes doentes, os fizessem sentir culpa por lembra de uma viagem à uma cachoeira, a visão do mundo por trás de uma cachoeira, achar lindo e se acostumar com os traços da beleza. Mas depois de um tempo percebi o meu dever ali. Antes de eu chegar havia gritos, choros, muitas mulheres em desespero por seus parentes mortos, homens calados pela  gravidade de seus peitos, criancinhas sem volta, uma dor a vista de todos como um forte de uma guerra que não existiu: inútil.

 Depois do piano desabafar, era como se os mortos deixassem de viverem para seus amigos e familiares, as pessoas tomavam um tom de serenidade com um grande gole, e outras, por mais que gritassem e sofressem, era impossível ouvi-las pois meu piano era muito alto e denso, como uma nuvem de areia. Era esse meu ofício ali afinal, espantar a dor dos falecidos, algo que nunca imaginei que um instrumento fosse capaz de fazer. No final do dia, as pessoas chegavam em casa com grãos de areia entre as camisas e os casacos, entendi que arte é esfarelar-se e a música é sempre alguém fugido e não necessariamente procurado.
Um dia desses como de habitual fui dar meu passeio depois do trabalho. Quando saio de lá, de forma desastrada me atravessa uma pena daquelas pobres pessoas que não terão o consolo da minha música e estarão sozinhas com suas próprias nevadas de dor, um frio conhecido por mim que já passei por isso em frases curtas de minha história. Eu estava a ver camisas da qual nunca poderia comprar, me divertindo com suas estampas tão parecidas e ridículas dos detalhes mínimos, quando espichei a atenção para uma conversa.

 Dois homens conversando, um deles, o que eu reconheci, contava que a esposa estava seriamente doente. Embora eu fique a maior parte do tempo de costas para meu público no saguão, tenho que fazer as horas passarem então me divirto em deslizar os olhares pelas roupas de invernos dos visitantes do hospital, ouvir seus relatos tristes que ultrapassam a barreira do som de meu piano.

A mulher dele, muito bonita, me marcou não só pelos traços indianos mas também por sua mãe ter ido muito jovem, o que muito lembrou minha própria história pessoal. Senti um pesar na garganta, como dar a luz à um iceberg, que se converteu em uma aspas de longo choro.

A futura morte senti como se toda minha mobília fosse solta fora. Precisava saber mais sobre o que estava acontecendo, talvez salvar os móveis de minha sala íntima. Aquilo tratava-se de uma injustiça. Educação ainda me resta, não falei com o homem de rosto em falta.

 Noutro dia no hospital, em meu intervalo conquistei um pouco de coragem e bisbilhotei a ficha médica da mulher enquanto ela saíra do quarto para um exame. O pâncreas decidira parar de repente, mesmo sem nenhum sinal desse mal na família. Depois disso, toquei o piano por uma hora além do meu expediente, em uma tentativa ridícula talvez de reencantar o órgão suicida pela vida.

Foram talvez duas semanas que vi o homem na sala de recepção. Colocava atenção em suas roupas, eu queria saber se ele estava se cuidando. Perto da morte da esposa, ele parecia bem melhor. Ficava o dia inteiro olhando para o grande lustra da sala, abrigando-se no que saía de minhas partituras, imagino. A mulher faleceu e nesse dia eu consegui estragar meu uniforme. Não parecia justo, depois de tanta bagunça, sujeira, caos aplicado, eu retornar todo dia impecável, com as dobras da roupa bem passadas, e perfume entre as camadas de roupa. Tomei alguns remédios para conter a garganta de sua fuga, tonto me depositei no chão com agressão, me dei um furo de tecido na altura dos quadris.

Pelo menos nunca mais veria o homem, e isso me saudava. Esqueceria desse espetáculo familiar e poderia assim fazer o que o diretor do hospital, aquele homem saudável apenas em teoria (sua barriga parecia apenas possível de ser pensada por um chargista, era muito grande) e abastecer o ambiente com o consolo que a arte promete. Porque a arte é o ato de empregar veludo nas espadas e morteiros, de suavizar as derrapagens, de soldar a beleza até mesmo nos terrenos mais abandonados pelos planos. A vontade da música, a  única legislatura real da arte, é a de nos promover a bancos de carona, colocando a suavidade no controle. O conforto, o pequeno conforto que eu poderia fornecer a qualquer um, me dava vontade de abrir filiais de olhos até nas costas para enxergar mais a vida ao acordar.

Depois de recuperado, e com meu rasgo e quadris devidamente costurados, me entrertia a ver as enfermeiras, sempre firmes em suas panturrilhas mais do que nos humores, em observar o movimento da porta de entrada, sempre maior no inverno. Mas logo, minha leveza se desmanchou no ar. Por esses  dias, apareceu aqui foi o marido da mulher, o marido da morta, que é filha da morta. Como pode, deus do céu, um sobrenome quase inteiro desaparecer. Descobri, que o coração do homem estava parando aos poucos. Logo aquele coração que tanto se fez de público para nossas tardes de Wagner, de Dvorak, agora se silencia.

Fiquei muito triste, nunca tive uma família tão grande, e esse homem estava perdendo tudo que nunca tive. Lembro de ter me socorrido em uma sala esquecida na lavanderia do hospital. Lá deixei um mapa hidrográfico de minha tristeza, chorei, horas ali como prova. Foi então que comecei a me dar conta de algo terrível. A maioria dos rostos que vinham ao hospital eram sempre conhecidos, familiares de familiares, sempre os mesmos, eu conhecia quase que todo meu público. Quando os pacientes saiam dos quartos, me obriguei a ler suas fichas. Os motivos que os levaram ao leito eram sempre parecidos, os órgãos começavam a parar de funcionar, como quem desiste, como quem cala do nada. Um dia eles iam ao hospital, visitar uma  vida ou o acabar de uma, no outro, entravam para nunca mais sair.

Saí no meio de meu expediente. Fui para casa, juntei todas partes de meu uniforme. Os queimei na lareira, o que não foi uma boa ideia porque os botões de plástico deram um cheiro terrível para as cortinas. Comecei a ver as paredes ficarem pretas, os cantos engolirem toda a luz. Olhei para meu piano como quem reconhece um assassino sem ter nenhuma certeza. Tive vergonha do que tinha me tornado. Extrema vergonha e um remorso de mil homens com o entusiasmo de quem recém tinha descoberto a pólvora. Houve uma época que eu pensei que ser música era uma boa coisa, houve uma época em que colocar para dormir o corpo, a vontade, o desespero era apenas metáfora. Neuza veio em minha mente e a odiei com todos hectares de meus anos de paz, a odiei por ter me treinado tão bem. Eu era um ótimo ´pianista, talvez o melhor. Agora tudo fazia sentido, o dono do hospital e sua insistência em me fazer trabalhar lá, no fundo me fez de bobo, me deu o tom escuro não só por fora mas por dentro do corpo também.


Comecei a tocar o piano sem planos de parar, com a raiva elucidando as notas, eu queria que o som fizesse tudo parar, eu queria que tudo calasse, por tudo quero dizer meu corpo, quero dizer minha vida. Mas para minha infelicidade, um assassino não pode se matar definitivamente com sua própria arma. Apenas morrer múltiplas vezes, apenas sofrer, e foi isso que fiz.

terça-feira, 23 de julho de 2013

como refazer laços com janelas

Você deve achar uma loucura terminar com uma pessoa só porque ela dirige rápido demais. Você provavelmente não sabe o que é pensar seriamente que vai morrer num domingo, numa ida  à padaria, com a barriga recheada de chá preto, o que ficaria lindo na hora do acidente, morrer inchada, depois de uma refeição, com o cream cheese de morango inteiro na sacola do sangue,  morrer num domingo, pensar em morrer num domingo é muito vergonhoso, um atestado de insignificância, um motim desmarcado por falta de motivo, todo dia ser domingo todo dia ser uma adivinhação fácil, uma angústia curvada aos pés da memória, todo dia domingo. Não me acostumei com o perigo. Mas não classificaria isso de covardia. Elogia à diferença, talvez. Apenas posso dizer que a velocidade é uma saída muito previsível e que meus ossos libaneses, acostumado aos desertos de meus antepassados, não foram criados para avançar o corpo antes dos olhos, nunca tive pressa, nunca tivemos pressa, e foi assim que forjamos tão bonitos sonhos como roupa de cama, tendo sempre a vantagem do acaso abrir uma porta em qualquer rocha, duna ou platô para que nos entregássemos ao silêncio. Minha família demorou eras para chegar neste lado no planeta. Não se pode andar rápido e enxergar silêncio, o movimento chantageia as coisas para que ganhem susto, o susto nunca é mundo, apenas rascunho pouco. Para onde íamos, íamos de carro. Para ele, era incômodo o metrô, as expressões ilegíveis lhe pedindo explicações, os cães trapaceiros que conseguiam engatar na carona, o jogo de peso dos olhares. Como era muito fraco para caminhadas, nada imune a um vendaval ou sopro de acaso, até no mesmo bairro pegávamos a direção do carro. Qualquer frio o retorcia, ou manobra de ar o despia fácil e ficava a fornecer careta irritáveis. Era fácil o ver irritado. Detestava a espera. Me deu um relógio de presente na primeira vez que investi no tempo no lugar oposto onde havíamos marcado. O tempo pode nos fazer ganhar ouvidos, gostava de dizer, não assim, com palavras, mas nos gestos que sobravam da fiscalização do rosto, no olhar abotoado nas testas curvas que sempre haviam por perto, e sempre haviam tantas testas curvas perto dele. Não mandava cartas para não esperar recebê-las, não pegava filas não experimentar o estado parado, a inutilidade com maior número de piadas ruins dos dias. Era pensar em ir a um cinema, confundir narizes com os dedos no escuro, embaçar a fome com as oferendas francesas, que já vinham a mim a sensação de velocidade recortada, os cabelos perdidos para o vento. Seu olhar grampeado no risco de caminho que a cidade asfaltara. Por várias vezes esse seu ânimo quase nos deu acidentes, já me vi morta de tantas formas, por baixo de estoques de madeira, dentro de uma agência bancário, comprimida nas ferragens como uma armadura espacial e inútil, assim ia me acostumando com a sensação de proximidade da dor última, achava normal colocar tudo a perder ao engolir a distância de um quilômetro de cidade, a cerveja era sempre a última cerveja, o beijo tomado a última vacina, a possibilidade de desejar o barco civilizado que restava. Uma vez, cansada, não resisti mais a imaginação. Ou nos mata agora, ou me deixe com as pernas úteis em qualquer esquina. Ele apertou quase 200 km por hora, era noite, era mini reino urbano, eu digo que se me ama largaria dos ponteiros, eu lhe digo que a pressa é o medo de conversar sobre a paisagem, que nós somos a paisagem, abandonada a 200 km por hora, onde enfim quer chegar com todo esse terrorismo, quer se ver morto e me levar junto como uma ajudante na pós-vida, tem medo de frear aos poucos e se acostumar ao balanço sumido, a cada bloco de segundos que deslizavam de minhas mãos, porque ele estava rebocando meu futuro ali aquilo era um roubo, estava me levando a idade que eu tanto gastaria com pequenezas, horas fazendo as unhas, banhos de 40 minutos, terapia com o sol que se vai, em pouco tempo estaríamos longe de Caxias, logo depois, ultrapassaríamos um hospital onde eu daria a luz, um casal de gêmeos talvez, o motor poderia engasgar, o líquido do freio secar, mas continuaríamos em constância velocidade, até uma pequena aldeia onde construiríamos uma casa, que mais adiante , alguns potes de percurso adiante, deixaríamos para os mesmos filhos recém acaronados a pouco, era ontem quando ainda os prendemos nos banquinhos de carona atrás de nossos bancos, antes da batida, porque sim em algum momento deveria haver uma batida a sorte não possui todas numerações, pararíamos para sempre mesmo a quilometragem tão ampla do para-choque, talvez por ironia, o carro permaneça inteiro, apenas nossos corpos provaram a imobilidade, nossos filhos bem educados o usarão para conhecer seus futuros amantes, fazer netos, pegar nossos netos nas escolas, e de nossa família tudo que lembrarão será desse carro, esse Corsa herdado dos teus pais, que poderia nos levar a lugares mais rapidamente do que o tempo que levei para contar essa história que de fato não aconteceu pois eu a deixei a tempo, por uma vez pelo menos fui eu a agarrar as barbas longas do tempo e desmontar a carroça a tempo de sua velha receita, enquanto ele, por estar atrasado, foi atrás de um posto de gasolina, sozinho, diz a física com menos peso menor é o gasto mais a rapidez, enquanto eu comia uma torta de maça numa lanchonete no cordão da estrada, eu a recém deixada, vi o carro adiante reduzir a velocidade, quase parando, provavelmente o medo de morrer sozinho, ou apenas uma necessidade de conserto no motor, vai saber a mim não importava. Mas a você tudo que eu tenho a dizer é que terminei com ele porque dirigia rápido demais. 

domingo, 23 de junho de 2013

A morte de Púshkin


I
Com uma lâmina
No lugar do sorriso
Aponta para você sorrindo
Dentro seu grito
Gangrena
O silêncio pedra
De afiar

II
Chegou em sua casa
Onde a língua russa alimenta
Deixou os olhos
Na abotuadura de sua mulher
Pouco importou o seio
De Tatiana e as palavras
em seu bojo
Amor um remo quebrado
Na geleira.

III
Sua espada feita de vento
Poesia respiração parada
Seu inimigo
Não temia temporal
Uma nuvem caída
Murcha
Carregava no peito
Durante o duelo
Foi o ferro contra o sopro
Seus golpes feitos de tempo
Você filho do voo
Esqueceu que a carne
Dentro do sonho
morre também
Seu amor a roupa verdadeira
O sabre dele acordou
Naquele jardim essa veste sem uso

Deflorava de seus pesos ossos.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

sobre os últimos acontecimentos meu cachorro não é silêncio

não há como não perceber. meu cachorro anda inquieto. hoje, em face de um prato de comida recém posto,   adicionou tal silêncio a cena que parecia querer era um diálogo com a tigela que só fornecia calorias. ficam os dois lá, a armazenar suas contusões. eu acordo, esquento um café. meu cachorro dorme com os olhos abertos. eu sento no sofá, observo o jornal. meu cachorro se senta mais perto. não emite um ruído, não denuncia uma fagulha, não quer saber de expressão. ele chega mais perto. esfrega aqueles olhos amarelos queimados na graxa da tipografia do impresso. meu cachorro não sabe ler. eu leio para ele. no final não me cumprimenta. adota uma parede como ponto de fuga. meu cachorro anda tão estranho. às vezes solta um berro, longo, adestrado. berros não são adestrados. exijo resposta. meu cachorro me segue pela casa, acha que lhe devo uma saída. uma explicação. ligo a televisão, escuto o rádio, suas notícias, me volto ao computador, salgada. deve achar é estranho meu cachorro me ver tanto tempo em casa, sinto vergonha da não fuga, mas finjo que não me pertence o abrigo. ele quer saber o que está acontecendo. quando ele abaixo o focinho, isso é uma pergunta. eu não sei o que dizer. eu não sei nem o que dizer para meu cachorro. nos últimos dias? é complicado, você não entenderia. ele desconfia de minhas reais preocupações. sim, tem muitas pessoas indo para rua. sim, elas estão com uma tristeza em labirinto. sim, elas se lembram que são pessoas na rua. sim, nesse país se mexer é desrespeito. você não compreende. meu cachorro quando não compreende algo vai para o jardim. faz coco nas mudas de manjericão, nas bromélias. depois de um tempo volta e relaxa no piso mais gelado do canto mais inóspito, meu cachorro se faz em confusão. eu ali, naquela casa, eu ali, naquela zona sul, eu ali, recheada de números. o que são números para o meu cachorro. meu cachorro só sabe o que vê. meu cachorro só vê a mim. sem ônibus, sem tarifas, sem tabela de superfaturas, construções. está visivelmente decepcionado a esse ponto. se antes me perseguia, como um comboio em tom de proteção, agora prefere ficar na rua. escutar uma mensagem que vem ao ar, algo do tipo. está triste. deve preferir ter outro dono, aliás, ter é dono nenhum. meu cachorro enfrenta a fresta da rua, debaixo do portão. de lá ele observa os carros passando, a bola das crianças correndo. de lá ele vê. não apenas escuta o que sobra dos canos submersos. pensei que estaria contente, eu aqui, sã, eu aqui salva, eu aqui. meu cachorro sabe que um mapa não é um ponto. que espaço é algo preenchido não desejado. nem sequer explicar as ranhuras da garganta eu pude, nem sequer depositar meu país uma palavra, numa frase, eu não citei Jango, eu não citei empreiteiras, eu não citei Mariguella. Não precisava. lembro que meu cachorro possui a herança dos lobos nas patas de trás, que de alguma forma ele reconhece uma pedra que poderá cair, um atalho a surgir, seu passado o deu o longo faro. eu poderia agora abrir aquele portão. deixar que ele descobrisse por si só. ao invés de ficarmos aqui, tomando uísque, declamando Murilo Mendes, o ensinando piadas de mitologia eslava, ou como os russos são bonitos. se eu realmente entendesse o que está acontecendo, o deixaria escutar a pimenta e decifrar o gás sozinho, depois ele me contaria, chorando chorando, voltaria a minha casa, daí sim o uísque, daí não a poesia, deitaria no meu colo imerso em um duplo sentimento, o de buscar asilo em meu tom de pele quente conhecido e  o de talvez me detestar pelo fato de minha humanidade me punir, que horror, que horror, me diria, chorando com a mesma coragem que não tive. mas cachorros não choram. preciso começar a desensinar coisas. pelo bem das espécies. a distância colabora com o cristal do olho, a mina do corpo.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

bem que tentou Clarice não me amar
debaixo das medalhas
ervas pagãs
no cigarro apagado do
próximo fogo
mas seu desamor era engenheiro
duas cidades construiu
para a dar um começo
mas todas as ruas vinham até minha casa
bem que tentou Clarice esquecer minha casa
mas sua infelicidade
era uma motorista hábil
as duas jantavam no meu quarto
naquele tempo comíamos carne vermelha
a primeira vez que Clarice tentou me deixar
quem gritou foi sua sanidade
mas a sanidade de Clarice também a abandonou
depois de duas semanas de choro roxo entupido
extraí seu pequeno rio em minha cama
enquanto em coro o dia
caia lá fora
a segunda vez que Clarice tentou me deixar
quem foi embora foram seus olhos
ela voltava com a mão no rosto
fazíamos amor com
a mão no rosto
trocamos a o rosto pela mão
contávamos piadas para o escuro e quem
ria éramos nós
Clarice deixa os cabelos crescer
começa a fazer mímica e diz para eu ir embora
um lugar longe talvez Hungria
em Budapeste depois do um mês de aulas em húngaro
aparece imersa a casacos e mantas
às vezes acho que ela só queria era
passar férias na Hungria
Clarice vai para a natação e esquece de trazer vinho
junta as palavras de paixão que deixou
pelas estantes da sala
diz para eu esquecer o seu rosto
se passam três dias ela me liga para me perguntar
como é o seu rosto
bem que sabe Clarice que o melhor para Clarice
seria ela não me amar
não ler minhas cartas poemas que são só desculpas
não engolir meus beijos meus braços que são só desespero
mas o impossível sempre a caiu tão bem.

domingo, 2 de junho de 2013

dança para dois de junho

Acordar, sofrer pelos dentes parados, lavar a cara, engolir almoço. Os índios, no Xingu os índios incomodam muita gente, no Xingu do Brasil, do mundo, um índio é morto, um índio é mortos. Lavar a louça, colocar um cd do Leonard Cohen, sentir os barulhos do estômago de Leonard Cohen em sua garganta, cantar para a Suzanne de Cohen, lavar mais a louça. Escutar Anos Dourados, lembrar do rosto dela na mesma cozinha, no mesmo dourado, olhar par ao pai mentindo ao dizer que sabe nada sobre o que diz essa música. Ligar um incenso, lavar a travessa de carne, parar tudo, parar tudo e dançar Clube da Esquina na sala vazia, convidar a cachorra, alegrar a cachorra, dançar com a cachorra, convidar o gato, o gato assiste mas não entende, os passos, a música, o cheiro de café, a alegria da cachorra. Doer o peito, ter um peito, sentir o roncar das áreas de incêndio do peito, perder a respiração para o movimento dos braços, amar Belchior loucamente, mostrar para os pais a nova música que fez com Pedro, Pedro agora canta sobre o tempo, areia seca corroi o osso duro do tempo, meu avô chora quando Pedro fala sobre o tempo, depois da volta do hospital, depois da dor,meu avô não perde tempo e agradece com choro. Olhar para a mãe e mentir que compreende completamente a letra de sua própria música. De pantufa chorar e dançar mais um pouco, a louça ainda suja, pedir uma brecha para a sujeira, de pantufa chorar com Nei Lisboa, de pantufa acordar de novo.Sujar a louça da pele. Da sala. Sujar o vazio com dança. A Turquia é aqui, ler o jornal, não ler o jornal e sim os blogues, ler nos blogs sobre porque a Turquia é aqui. Discutir sobre a Turquia com os pais, fazer um minuto de silêncio, entender que houve mortes e que haverá. Ir para o cinema, convencer a todos, aos pais, a irmã, a família, ao Xingu e a Turquia que faz bem ir ao cinema e assistir a um filme. Corrijo. Ir ao cinema e assistir a morte. Corrijo. Ir ao cinema e sentir dor, no maxilar, nos ventrículos, a água do corpo tremer e fazer doer tudo, expor lágrimas na pachimina, agradecer a si mesmo por ter saído de pachimina e esboçar rosto seco. Corrijo. Ir ao cinema e dançar ao contrário. Ver a irmã, ver o Araguaia, ver a família, ver aquilo que diz memória inconsolável. E daí dançar mesmo. Sair do cinema com a família, a dor, o Araguaia, a Turquia, o Xingu e dançar quadrilha. Comer bauru, que não é xis e nem hambúrguer, comer bauru com fritas que são francesas, cortar o livro, desenhar no Drummond, falar do menino que não se matou, falar do menino que três vezes não se matou, falar da dor que cinco vezes não se matou. Fingir a todos que não conhecer: o menino, as vezes, a dor, o matou. Enganar a todos muito bem, principalmente a Drummond. voltar para casa. pensar  em fugir, cantar Você Não Entende Nada Do Que Eu Digo e quase fugir pro Rio de Janeiro para a dança, para a água, para a memória, para a dor, para o teatro do inconsolável. Depois tentar dormir, mandar os dentes dormir, saber que na verdade nunca nada dorme. Ter certeza de que nada nunca dorme mas enganar tudo&todos de que pelo menos os dentes podem sim conseguir dormir. E é assim que a gente descansa. Estudar com o escuro como cantar uma canção de ninar para os dentes e assim aguardar no rosto a espera. A espera é uma rua que caminha. Lembrar que já saiu do cinema. Parar.

sábado, 1 de junho de 2013

A barriga do pai

Aquele pequeno grito atravessa seu rosto. Entre os enredos de pele e carne encontra novas aberturas, onde se amplifica e ressoa. Como nenhum grito possui tempo real (porque o incomodo não é algo passível de contabilidade), ele o acompanha durante uma caminhada até o ponto de táxi, um descanso depois do almoço, na memória dos tempos da faculdade o grito se instala lá pelos seus 20 anos. O grito se fantasia de juventude, de camiseta estampada e bom gosto musical, Schubert talvez, o grito o acompanha na aula de Mercadologia I. Senta-se na fileira de trás, sorri alto e o observa convicto. Naquele tempo ele não sabia o identificar nas multidões, nos estádios, nas festas. Quem dirá em uma sala de aula.

A mulher tinha cheiro de pomada nos dedos. Os mesmos dedos que depois usava para tomar carinho e presença do rosto dele. Mas não se pode tocar em tudo. Ela terminava de atar a nova fralda na criança que há pouco tinha parado de exibir barulhos, se acomodado no silêncio, o rasgando apenas com risadas tímidas. Ainda bem que ela chegou a tempo. Naquela época, sempre que a mulher saia de casa no fim de semana ou em dia de folga da babá, normalmente para a compra de alguns cigarros ou visitar a mãe, a respiração dele se transforma em um cronômetro. Na espera de seu retorno, não conseguia respirar direito, quem diria trabalhar.

A verdade é que não suportava ficar sozinho com a criança. Ela o ofendia. Ela o ofende. A roupa sempre suja, implicando em falta de cuidado. O seu desrespeito pelos objetos, fazendo ir ao chão qualquer coisa ao alcance de seus dedos. E principalmente, seu rosto. Era sobretudo uma bebê muito feio. Ele não tinha dúvida disso. Seu nariz era muito fino, o queixo agudo como um arco quebrado. Aqueles olhos enterrados que encurtam qualquer ângulo de visão. Cabelos escuros e lisos, como uma lagoa esquecida pelo movimento do mundo. Expulsa do trânsito das coisas. Desde muito tempo não suporta ficar perto da feiura.

Imaginava quanto demoraria para a mulher descobrir isso. A forma que encontrou para lidar com essa adversidade foi se ater a um personagem pronto. A figura do pai distante e hostil que tanto antes detestou. Se viu sem saída e teve que assumir essa coreografia com a mais péssima desculpa. Em casa a fala era economizada, os comentários de vez em quando hostis para não alimentar novos tópicos. Era entendido como um adulto que não sabia lidar com suas emoções, principalmente as mais especiais, tal como o fato do amor exagerado de um pai por um filho. Alguém que não sabia expressar seus sentimentos. Uma vez que, ocorria mesmo era o fato de sua lucidez o mostrar exatamente o que sentia a tal ponto que esconder a verdadeira sinceridade era a  forma de proteger sua família.

 No início, tentou disfarçar como conseguia. Estudava sorrisos forjados. Quando a mulher passava o bebê para seu colo ele inventava um exagero de cautela. Dizia ter medo de machucar, a criança, tão delicada. Tão perfeita em suas limitações. Quando, na verdade, nem se culpava por às vezes desejar que esse passatempo quebrasse. Parasse de funcionar. Assim como tudo que vem com defeito.

Cobria seu dia com maiores compromissos. Passava mais tempo forra de casa, usava o escritório para ler, assistir a algum filme. Se interessou por novas coisas que precisavam do domínio da minúcia e do exagero de dedicação. Começou a praticar modelismo de aviões, carros. O período fora de casa o gastava a mente. Embora sozinho imerso por seus oceanos conhecidos sentia saudade da mulher. Apesar do que aconteceu com suas vidas ele a amava muito. Se conheceram cedo. Ela era muito bonita. Uma das mais que até hoje já pode conhecer. Seu corpo não exagera em nenhuma deformidade. Suas pernas respeitam o cursor de um lápis hábil. Seus olhos equilibram-se no rosto de maneira perfeita, expondo-se em cores, tal como a azul que sugere o quão sua visão é especial. A sua presença é completa porque apenas o fato de sua beleza ocupar lugar no espaço já o basta.

O menino tem sete anos agora. Eles estão a tomar café. Por uma tentativa de se aproximar do pai a criança repete seus gestos. Simula a personalidade de seu familiar. Fechada. Sabe que proporcionar silêncio  na hora de comer, por exemplo, é visto como um agrado. A criança aprendeu que amar é também algo estático. É também distância. Respeito. A indiferença não quer dizer insensibilidade para ela. Nunca a passou por sua cabeça que o pai não a ama. Ele sempre esteve lá. Nas fotos de aniversário, nas comemorações. Ele nunca perdeu uma luta de judô do filho. Sempre concordou com qualquer atividade que o menino se prepusesse a desempenhar. Apreender francês, comprar  algum videogame. Enquanto que seus colegas de colégio mal viam seus pais, por serem separados ou apenas irresponsáveis, o seu sempre estivera próximo. O amava por ele preencher uma cadeira, principalmente. E pela certeza de não  ter que levar sua solidão sozinho.

A mãe está no trabalho. Ele observa o menino. Os anos não consertaram em nada os mesmos motivos que o fez manter em seu pulmão, no lado direito, um desdém tuberculoso.  Ele cresceu. Contudo é ainda baixo para sua idade. Os ombros são muito próximos, o nariz espichou de altura mas a largura ainda é insatisfeita. Ele passa a impressão de alguém doente, alguém sem sorte desde pequeno. Alguém que não merece ser visto. Marcar presença em uma rua, ser percebido em toda sala que entra. Sua falta de beleza vem do fato de que ele é opaco. A luz não volta de seu rosto. Ela some. Desaparece. O menino tem semelhança com cantos escuros.

Não consegue compreender como foi que isso aconteceu. Sua mãe sendo tão bonita. Ele escolheu aquela mulher com exatidão. A pincelou de uma paisagem renascentista. Teve tanta certeza em seu investimento que nunca procurou outra. Desde começos a preencheu de confiança. Sua fé por ela só aumentava enquanto faziam amor, enquanto experimentava cada encontro de pele do seu corpo e certificava-se de sua perfeição, sendo feliz por ter tido sucesso, acertado na escolha, por ter conquistado o melhor do melhor. A desejava também por orgulho de a ter, de possuir o belo do tom de corpo próximo ao seu, no controle de seu tônus. Mas principalmente porque eles eram iguais. Ambos bem freqüentados pelas formas, bem selecionados. Ambos belos. Quando ela engravidou fora tudo pensado de antecedência. Queria muito um filho. Queria engordar seu orgulho.

Não foi o que aconteceu. No navegar dos dias, no pentear dos momentos, tinha vezes que ele entristecia. A sensação de derrota consumia sua tranqüilidade. Não gostava de sair com a criança na rua, não gostava de pensar o que os outros achariam. Que aquele seria ele aos sete anos de idade. Começou a desenvolver uma vontade muito grande de ter outro filho. Desde que o menino nasceu pensava constantemente nisso, tal como uma cicatriz no lado central do olho. O único motivo de não propor a mulher o assunto era medo. Medo que na segunda aposta a decepção fosse ainda maior. Medo que pela segunda vez, medo que o segundo pulmão também guardasse tamanho desgosto.

Incerto de sua decisão, ele a levava para passear em qualquer hora do dia. Às vezes, se uma mulher esbarrasse nele no prédio onde trabalhava, ou, se avistasse uma pessoa muito interessante na rua, no trânsito, ele ficava imaginado. Colocar um filho dentro daquelas barrigas, como eles seriam, que acréscimo uma mulher ruiva daria ao seu possível projeto. Como os rostos dessas crianças seriam desenhados, como elas ficariam no futuro. Como ele velho olharia para elas, com a idade que tem hoje, e o que sentiria ao saber que tudo deu certo. Poderia ter outra família. Poderia ter várias. Mas não era isso que ambicionava. Não adiantava em nada. Seria apenas uma fuga.

A mulher sempre o elogia de como está bem arrumado, com cheiros agradáveis espalhados no mapa do corpo. Se cuida. Usa o dinheiro para isso. Frequenta especialistas em saúde, em esporte, vai a manicure, spas. Não apenas porque adora seu rosto e gosta de visitar o próprio corpo.Mas também em respeito a própria beleza da mulher. Ele acha que tem que devolver a ela o mesmo que ela o proporciona. A mesma intensidade. Por isso, se um dia chegou a pensar que ela talvez estivesse o traído, se por acaso dormiu com outro homem e engravidou e que a criança seria essa, talvez, e que essa concepção é exterior a ele, logo deixou essa raciocínio sumir. Nunca a deu motivos para tal coisa. Além disso, tinha certeza que ela o amava.


Era difícil para o convívio com esse infortúnio. Mas não impossível. Desde que surgiu a criança em sua vida, qualquer palavra dela abastece o grito que ele carrega. Por mais que ambos costurem a mesma tenda de silêncio, nenhuma ausência pode impedir que o grito continue lá. O atravesse. O raspe. O tire mais um pedaço além do filho. Poderia ter previsto que isso talvez acontecesse. Mas não fez.

Sentou em seu quarto. Ficara a colar pedaços de fuselagens de mini-aviões, spitfires, miniaturas da segunda guerra. Passou pela sua cabeça que nunca teve vergonha pelo o que sente pelo filho. Que nunca se sentiu mal por ver ele como um problema a ser contornado. Deixou de lado a cópia do avião inglês. Correu por entre seus pensamentos a facilidade com as quais aquelas metralhadoras instaladas nas asas do caça poderia causar facilmente qualquer destruição. Veio uma amargura. Numa hipótese boa, por se dar conta de que por dentro seus órgãos eram dissimétricos, pouco elaborados. Teve a impressão de que sabia muito da morte.


Chorou a tarde inteira. Só parou quando ouviu barulhos vindos da sala onde o menino estava. Ali naquele momento se assemelhavam.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

O Chile é aqui

para R. Bolaño

Roberto, o Chile é aqui.
Nicholas está bem
o sol da tarde enovelado
é o centro da cidade
Porto Alegre duas da tarde
ele sorri e mostra a barriga
cheia de cobranças
lotada pelas árvores que não nasceram
o governo estático do sul
aumentando sua pança

Nicholas não parece desolado
por seu  futuro esperado
desobedecer a expectativa
continua sem os dois braços
mais baixo que a humildade
pagando as contas
sabe-se lá como
limpando o cu
sabe-se lá como

por falar em cu
ele continua com todos namorados
a cadela socialista
o erro de ortografia
o continente sulino que tanto
evapora seus rios
e vende as nuvens

não pensa mais
em pular do precipício
todas as alturas são
muito baixas
para seu suicídio

Nicholas guarda carros
vende bilhete de loteria
fala quase nada
nem desconfia
que no espanhol seu nome é um livro.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

eu que já me transformei em mais de uma forma de não caber


I

Quando nasci, lembro de não ter gostado muito daqui. Havia barulhos sem nome e o cheiro da panela de pressão, dos feijões que alimentavam as cuidantes, me enjoava os recentes olhos. Um dia, duas pessoas chegaram. Uma tinha cheiro de limão europeu, outra, de folhas verdes por dentro. Juntas eram quase um limoeiro. Me fui com elas. A casa era grande e as paredes altas escondiam o frio no inverno. Primeiro olharam para mim, acho que mais especificamente para meus dedos esquerdos, e disseram “Antônio”. Depois os olhares vieram para meu rosto. Meu nome ficou “Augusto”. Nessa época que fui Augusto eu podia rir em qualquer altura. No verão, íamos passar as férias em Petrópolis. No quinto verão que viajávamos, tinha um caminhão. Lembro dos limoeiros quebrados, um cheiro de ácido muito muito forte. Eu pequeno fiquei bem. Até hoje não posso chegar perto de alguns tipo de frutas. Depois de um tempo, conheci uma mulher com cheiro de queimado. Me mudei para sua casa. Ela poderia ser sozinha em muitos sentidos. Não trabalhava, acho que vivia de alguma pensão do governo, gostava muito de tomar remédios e fumar, e de vez em quando chorava em frente a um retrato muito bem emoldurado. A mulher gritava “Henrique”. Entendi que era para mim. Por 12 anos a mulher gritou “Henrique”. Como não havia ninguém mais na casa eu respondia. A casa tinha tempestades estranhas, ondas de calor que vazavam precipitações. Às vezes algo se transformava em chama, por exemplo, um tapete: virava faísca e desaparecia. O mesmo aconteceu com a mulher. Cada vez ela ficava mais quente, e aquele cheiro todo, cada vez mais. Então chegou o clarão e puff. Doeu os olhos, claro. Ainda doem. Ontem li num  outdoor “Romero”. Mas hoje penso em “Felipe”. Talvez “Gustavo” combine melhor comigo.


II

Já fui músico. Já gerenciei um negócio próprio na avenida São João. Nunca tive filhos, talvez, porque nunca conheci meus pais. Às vezes quando o silêncio escapa (vezes que não me organizo bem) sinto o estômago doer. O médico já disse, é preciso parar de beber e fumar, porém, como sou só eu não há ninguém para me dizer isso dia sim, e dia também. Meu estômago tem o formato de um canhão e quando me aborreço muito ele possui os poderes de um canhão. Depois de algum disparo e cheiro de pólvora, olho para a rua e só vejo mulheres. Penso nas vidas que poderia deixar no meio de seus quadris, penso em crescer em suas barrigas, nos pais que não conheci virarem uma montanha no centro de seu umbigo. Mas no fim, todas elas me lembram minha mãe. Eu não conheci minha mãe. Quando quero diversão, passo por algum menino e deixo respingar que em casa tenho um pó bem branco, branco bem bom. Ignoro meu estômago. Geralmente dá certo.


III

Foram vinte dias. Uma vez eu fui vinte dias. Não cheguei nem a ser mês. Não cheguei nem a tatuar algo ao invés dos olhos. Meus pais pareciam bonitos, através dos vidros. Pelo rádio, escutava coisas engraçadas como a fuga de um tal leopardo de um tal cativeiro, de um tal zoológico. Leopardo para mim é um bicho gordo e bem fofo que tem braços bem longos para agarrar tudo. Mas eu tinha um coração fraco, síndrome com nome difícil. Melhor assim. Pior para os leopardos.



IV

Uma vez fui feliz. Por um tempo. Não posso precisar o quanto pois quando se é feliz, como eu fui, se perde essa coisa-tempo. Tocava num clube matutino, ganhava pouco, mas conhecia muita gente com quem podia trocar os sapatos, as palavras, os elogios, os significados. Um deles em especial era muito meu amigo. Quando o conheci, era cego. Nós o chamávamos de Feridinha. Feridinha começou um tratamento experimental com um médico de currículo extenso, um tal de Dr. Xavier. Se desse certo, voltaria a ter imagens novas, e com os olhos úteis poderia palpitar sobre minhas camisas de tonalidades tímidas, a decoração do bar vazia de muitas limpezas. Um dia no quarto de Rita, acendi um cigarro e deixei a mulher só com sua nudez na cama. Olhei a janela, guardadoras de restos,  partículas, depois de um tempo não adianta mais tentar limpar o vidro, fica tudo lá: a areia trazida da praia, o seu último jantar antes do vegetaranismo, os farelos da pele de alguém que antes era ótimo de tocar. Nessa confusão achei espaço para ver meu reflexo. Será que Feridinha gostaria de mim depois de me ver? Noutro dia, tirei Lígia de uma sessão de cinema. A levei para as luzes e perguntei “meu rosto, que tal para ti?”. “Assim como antes. Belo, e talvez, assustador um pouco”. Depois disso, pensei em mudar de trabalho, comprar um Opala, conhecer o centro-oeste. Algum tipo de deserto deve ter comigo alguma intimidade. Nessa época me mudei para Góias. Numa noite de altas apostas, que a bebida me tirou os detalhes, ganhei um pedaço de terra. Hoje crio cavalos. Vendo seu sêmen, coisa estranha, mas que dá dinheiro. Não costumo mais me interessar por pianos.


V

Quando eu era velho tinha horas do dia que não faziam sentido. Pela noite por exemplo, as constelações, sempre as mesmas. Monótono diria. Antes eu fumava com a lua, fazia um cigarro de maconha, ficávamos lá a ver navios de todos os tamanhos. Então cansei. Aluguei minha casa para um menino de rosto bem passado e arranjei um emprego como recepcionista em uma boate. O negócio cresceu. Quando cheguei aos meus 80 anos, de alguma forma, o lugar já era meu. Às quartas-feiras, era a noite do sexo ao vivo. Era difícil achar alguém que topassem, por isso, recorríamos aos viciados por facilidade mesmo. Um deles, por muito  tempo, ia para casa comigo. Nessa época dormíamos o dia todo, pouco sabíamos do sol. Coleciono armas, de fogo e de lâmina. Estou vivo até hoje.