terça-feira, 23 de julho de 2013

como refazer laços com janelas

Você deve achar uma loucura terminar com uma pessoa só porque ela dirige rápido demais. Você provavelmente não sabe o que é pensar seriamente que vai morrer num domingo, numa ida  à padaria, com a barriga recheada de chá preto, o que ficaria lindo na hora do acidente, morrer inchada, depois de uma refeição, com o cream cheese de morango inteiro na sacola do sangue,  morrer num domingo, pensar em morrer num domingo é muito vergonhoso, um atestado de insignificância, um motim desmarcado por falta de motivo, todo dia ser domingo todo dia ser uma adivinhação fácil, uma angústia curvada aos pés da memória, todo dia domingo. Não me acostumei com o perigo. Mas não classificaria isso de covardia. Elogia à diferença, talvez. Apenas posso dizer que a velocidade é uma saída muito previsível e que meus ossos libaneses, acostumado aos desertos de meus antepassados, não foram criados para avançar o corpo antes dos olhos, nunca tive pressa, nunca tivemos pressa, e foi assim que forjamos tão bonitos sonhos como roupa de cama, tendo sempre a vantagem do acaso abrir uma porta em qualquer rocha, duna ou platô para que nos entregássemos ao silêncio. Minha família demorou eras para chegar neste lado no planeta. Não se pode andar rápido e enxergar silêncio, o movimento chantageia as coisas para que ganhem susto, o susto nunca é mundo, apenas rascunho pouco. Para onde íamos, íamos de carro. Para ele, era incômodo o metrô, as expressões ilegíveis lhe pedindo explicações, os cães trapaceiros que conseguiam engatar na carona, o jogo de peso dos olhares. Como era muito fraco para caminhadas, nada imune a um vendaval ou sopro de acaso, até no mesmo bairro pegávamos a direção do carro. Qualquer frio o retorcia, ou manobra de ar o despia fácil e ficava a fornecer careta irritáveis. Era fácil o ver irritado. Detestava a espera. Me deu um relógio de presente na primeira vez que investi no tempo no lugar oposto onde havíamos marcado. O tempo pode nos fazer ganhar ouvidos, gostava de dizer, não assim, com palavras, mas nos gestos que sobravam da fiscalização do rosto, no olhar abotoado nas testas curvas que sempre haviam por perto, e sempre haviam tantas testas curvas perto dele. Não mandava cartas para não esperar recebê-las, não pegava filas não experimentar o estado parado, a inutilidade com maior número de piadas ruins dos dias. Era pensar em ir a um cinema, confundir narizes com os dedos no escuro, embaçar a fome com as oferendas francesas, que já vinham a mim a sensação de velocidade recortada, os cabelos perdidos para o vento. Seu olhar grampeado no risco de caminho que a cidade asfaltara. Por várias vezes esse seu ânimo quase nos deu acidentes, já me vi morta de tantas formas, por baixo de estoques de madeira, dentro de uma agência bancário, comprimida nas ferragens como uma armadura espacial e inútil, assim ia me acostumando com a sensação de proximidade da dor última, achava normal colocar tudo a perder ao engolir a distância de um quilômetro de cidade, a cerveja era sempre a última cerveja, o beijo tomado a última vacina, a possibilidade de desejar o barco civilizado que restava. Uma vez, cansada, não resisti mais a imaginação. Ou nos mata agora, ou me deixe com as pernas úteis em qualquer esquina. Ele apertou quase 200 km por hora, era noite, era mini reino urbano, eu digo que se me ama largaria dos ponteiros, eu lhe digo que a pressa é o medo de conversar sobre a paisagem, que nós somos a paisagem, abandonada a 200 km por hora, onde enfim quer chegar com todo esse terrorismo, quer se ver morto e me levar junto como uma ajudante na pós-vida, tem medo de frear aos poucos e se acostumar ao balanço sumido, a cada bloco de segundos que deslizavam de minhas mãos, porque ele estava rebocando meu futuro ali aquilo era um roubo, estava me levando a idade que eu tanto gastaria com pequenezas, horas fazendo as unhas, banhos de 40 minutos, terapia com o sol que se vai, em pouco tempo estaríamos longe de Caxias, logo depois, ultrapassaríamos um hospital onde eu daria a luz, um casal de gêmeos talvez, o motor poderia engasgar, o líquido do freio secar, mas continuaríamos em constância velocidade, até uma pequena aldeia onde construiríamos uma casa, que mais adiante , alguns potes de percurso adiante, deixaríamos para os mesmos filhos recém acaronados a pouco, era ontem quando ainda os prendemos nos banquinhos de carona atrás de nossos bancos, antes da batida, porque sim em algum momento deveria haver uma batida a sorte não possui todas numerações, pararíamos para sempre mesmo a quilometragem tão ampla do para-choque, talvez por ironia, o carro permaneça inteiro, apenas nossos corpos provaram a imobilidade, nossos filhos bem educados o usarão para conhecer seus futuros amantes, fazer netos, pegar nossos netos nas escolas, e de nossa família tudo que lembrarão será desse carro, esse Corsa herdado dos teus pais, que poderia nos levar a lugares mais rapidamente do que o tempo que levei para contar essa história que de fato não aconteceu pois eu a deixei a tempo, por uma vez pelo menos fui eu a agarrar as barbas longas do tempo e desmontar a carroça a tempo de sua velha receita, enquanto ele, por estar atrasado, foi atrás de um posto de gasolina, sozinho, diz a física com menos peso menor é o gasto mais a rapidez, enquanto eu comia uma torta de maça numa lanchonete no cordão da estrada, eu a recém deixada, vi o carro adiante reduzir a velocidade, quase parando, provavelmente o medo de morrer sozinho, ou apenas uma necessidade de conserto no motor, vai saber a mim não importava. Mas a você tudo que eu tenho a dizer é que terminei com ele porque dirigia rápido demais. 

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