domingo, 28 de julho de 2013

cachoeiras não são conhecidas pelo seu silêncio

Depois do expediente, mesmo sem muita sobra de dinheiro, gosto de entrar em uma loja como quem não precisa de nada, mas quer ser impressionado mesmo sem nenhuma imaginação pronta para ser substituída por realidade.

 Entro em joalherias e vejo as formas cilíndricas e octogonais dos colares, examino as fendas em ouro como quem relembra a pele por trás deles, como quem já tivesse o pescoço só faltasse o presente para dá-lo. Mas no fim os pescoços e as mulheres que construo são sempre mais belos e belas do que um relato pronto, e me coloco a pensar nelas indo embora com facilidade e deixando os vendedores inseguros com a qualidade de seu estoque.

 Gosto de andar pela rua, meu terno, uniforme de trabalho alinhado, feito exatamente para o homem que me tornei. Quem me enxerga com uma gravata borboleta, os sapatos engraxados, nunca imagina meu trabalho e sempre me trata como se eu existisse, com um cumprimento, uma oferta de flores, um convite.
 Quem me enxerga imersos em linhas de giz nunca pensaria por exemplo que ganho a vida a tocar piano, e todo dia acordo muito cedo, porque a morte nunca descansa, e chego em meu local de trabalho, ou seja, o hospital. Que trabalho num hospital.

 Há alguns anos atrás fui internado lá, tempo em que eu bebia demais e uma infecção levou parte de meu fígado. Sem ter dinheiro para pagar, o diretor do hospital me ofereceu outra saída. Esse lugar é muito triste, me disse ele, talvez se houvesse um piano. E assim foi que comecei a usar esse terno, esses sapatos, e a tocar no saguão de recepção do Hospital Fonte de Luz.

Todos que aqui chegam, desde o táxi, desde a esquina, já são surpreendidos pelos cordas altas, por um Bach e eles não sabem nomear, mas lembram seus avós ou pais, já são guiados pela minha música e ficam curiosos por saber quem é o responsável por essa distração. Este não é o lugar onde eu imaginava estar quando crescesse depois de inúmeros noites de estudo ao lado de Neuza, uma mulher baixinha que me deu a impressão de que tudo pode ser portátil, e com muita força nos dedos, que me injetou a capacidade de não errar e mesmo se errar um ou outro reflexo e combinações de notas, continuar.

Fora Neuza também que me deu lições sobre a mística dos pianos. Há certos pianos que tem o poder de ensurdecer algumas partes do corpo das pessoas, de controlá-las por assim dizer, mas apenas os muito bons, ou muito ruins, conseguem isso. Nunca pensei ser um nem o outro.
Sempre lembro de Neuza uma ou outra vez no meu dia. Seja porque alguma flecha aguda de choro percorreu três corredores intacta, Neuza nunca demonstrava falar com as dobras do rosto, seja porque alguém reclamou do serviço dos atendentes de recepção, Neuza possuía uma severidade que em outro mundo seria um navio de guerra.

Como meu senhor disse um hospital é um lugar muito triste mesmo, mas não precisava ser visto assim. É claro que existe a presença das unhas sujas da morte, infectando os lenços brancos e feridas de acaso, mas também há os eventos de nascimentos, e fomos criamos para achar que bebês e crianças são coisas boas, portanto a esperança aqui anda nua. Mas este é um lugar diferente. Colorido, com lustres grandes, detalhes bem talhados ao redor das portas janelas, cores vivas como o vermelho sendo usada na maioria das paredes sem medo do que ela possa despertar. Esquecer aqui ganha de qualquer descuido.

 Quando comecei a tocar por aqui, uns achavam um absurdo, o barulho, a  perturbação dos doentes, dos familiares.  Como se meus dedos soletrassem desafinassem seus instrumentos de percussão, deformasse a imagem dos parentes doentes, os fizessem sentir culpa por lembra de uma viagem à uma cachoeira, a visão do mundo por trás de uma cachoeira, achar lindo e se acostumar com os traços da beleza. Mas depois de um tempo percebi o meu dever ali. Antes de eu chegar havia gritos, choros, muitas mulheres em desespero por seus parentes mortos, homens calados pela  gravidade de seus peitos, criancinhas sem volta, uma dor a vista de todos como um forte de uma guerra que não existiu: inútil.

 Depois do piano desabafar, era como se os mortos deixassem de viverem para seus amigos e familiares, as pessoas tomavam um tom de serenidade com um grande gole, e outras, por mais que gritassem e sofressem, era impossível ouvi-las pois meu piano era muito alto e denso, como uma nuvem de areia. Era esse meu ofício ali afinal, espantar a dor dos falecidos, algo que nunca imaginei que um instrumento fosse capaz de fazer. No final do dia, as pessoas chegavam em casa com grãos de areia entre as camisas e os casacos, entendi que arte é esfarelar-se e a música é sempre alguém fugido e não necessariamente procurado.
Um dia desses como de habitual fui dar meu passeio depois do trabalho. Quando saio de lá, de forma desastrada me atravessa uma pena daquelas pobres pessoas que não terão o consolo da minha música e estarão sozinhas com suas próprias nevadas de dor, um frio conhecido por mim que já passei por isso em frases curtas de minha história. Eu estava a ver camisas da qual nunca poderia comprar, me divertindo com suas estampas tão parecidas e ridículas dos detalhes mínimos, quando espichei a atenção para uma conversa.

 Dois homens conversando, um deles, o que eu reconheci, contava que a esposa estava seriamente doente. Embora eu fique a maior parte do tempo de costas para meu público no saguão, tenho que fazer as horas passarem então me divirto em deslizar os olhares pelas roupas de invernos dos visitantes do hospital, ouvir seus relatos tristes que ultrapassam a barreira do som de meu piano.

A mulher dele, muito bonita, me marcou não só pelos traços indianos mas também por sua mãe ter ido muito jovem, o que muito lembrou minha própria história pessoal. Senti um pesar na garganta, como dar a luz à um iceberg, que se converteu em uma aspas de longo choro.

A futura morte senti como se toda minha mobília fosse solta fora. Precisava saber mais sobre o que estava acontecendo, talvez salvar os móveis de minha sala íntima. Aquilo tratava-se de uma injustiça. Educação ainda me resta, não falei com o homem de rosto em falta.

 Noutro dia no hospital, em meu intervalo conquistei um pouco de coragem e bisbilhotei a ficha médica da mulher enquanto ela saíra do quarto para um exame. O pâncreas decidira parar de repente, mesmo sem nenhum sinal desse mal na família. Depois disso, toquei o piano por uma hora além do meu expediente, em uma tentativa ridícula talvez de reencantar o órgão suicida pela vida.

Foram talvez duas semanas que vi o homem na sala de recepção. Colocava atenção em suas roupas, eu queria saber se ele estava se cuidando. Perto da morte da esposa, ele parecia bem melhor. Ficava o dia inteiro olhando para o grande lustra da sala, abrigando-se no que saía de minhas partituras, imagino. A mulher faleceu e nesse dia eu consegui estragar meu uniforme. Não parecia justo, depois de tanta bagunça, sujeira, caos aplicado, eu retornar todo dia impecável, com as dobras da roupa bem passadas, e perfume entre as camadas de roupa. Tomei alguns remédios para conter a garganta de sua fuga, tonto me depositei no chão com agressão, me dei um furo de tecido na altura dos quadris.

Pelo menos nunca mais veria o homem, e isso me saudava. Esqueceria desse espetáculo familiar e poderia assim fazer o que o diretor do hospital, aquele homem saudável apenas em teoria (sua barriga parecia apenas possível de ser pensada por um chargista, era muito grande) e abastecer o ambiente com o consolo que a arte promete. Porque a arte é o ato de empregar veludo nas espadas e morteiros, de suavizar as derrapagens, de soldar a beleza até mesmo nos terrenos mais abandonados pelos planos. A vontade da música, a  única legislatura real da arte, é a de nos promover a bancos de carona, colocando a suavidade no controle. O conforto, o pequeno conforto que eu poderia fornecer a qualquer um, me dava vontade de abrir filiais de olhos até nas costas para enxergar mais a vida ao acordar.

Depois de recuperado, e com meu rasgo e quadris devidamente costurados, me entrertia a ver as enfermeiras, sempre firmes em suas panturrilhas mais do que nos humores, em observar o movimento da porta de entrada, sempre maior no inverno. Mas logo, minha leveza se desmanchou no ar. Por esses  dias, apareceu aqui foi o marido da mulher, o marido da morta, que é filha da morta. Como pode, deus do céu, um sobrenome quase inteiro desaparecer. Descobri, que o coração do homem estava parando aos poucos. Logo aquele coração que tanto se fez de público para nossas tardes de Wagner, de Dvorak, agora se silencia.

Fiquei muito triste, nunca tive uma família tão grande, e esse homem estava perdendo tudo que nunca tive. Lembro de ter me socorrido em uma sala esquecida na lavanderia do hospital. Lá deixei um mapa hidrográfico de minha tristeza, chorei, horas ali como prova. Foi então que comecei a me dar conta de algo terrível. A maioria dos rostos que vinham ao hospital eram sempre conhecidos, familiares de familiares, sempre os mesmos, eu conhecia quase que todo meu público. Quando os pacientes saiam dos quartos, me obriguei a ler suas fichas. Os motivos que os levaram ao leito eram sempre parecidos, os órgãos começavam a parar de funcionar, como quem desiste, como quem cala do nada. Um dia eles iam ao hospital, visitar uma  vida ou o acabar de uma, no outro, entravam para nunca mais sair.

Saí no meio de meu expediente. Fui para casa, juntei todas partes de meu uniforme. Os queimei na lareira, o que não foi uma boa ideia porque os botões de plástico deram um cheiro terrível para as cortinas. Comecei a ver as paredes ficarem pretas, os cantos engolirem toda a luz. Olhei para meu piano como quem reconhece um assassino sem ter nenhuma certeza. Tive vergonha do que tinha me tornado. Extrema vergonha e um remorso de mil homens com o entusiasmo de quem recém tinha descoberto a pólvora. Houve uma época que eu pensei que ser música era uma boa coisa, houve uma época em que colocar para dormir o corpo, a vontade, o desespero era apenas metáfora. Neuza veio em minha mente e a odiei com todos hectares de meus anos de paz, a odiei por ter me treinado tão bem. Eu era um ótimo ´pianista, talvez o melhor. Agora tudo fazia sentido, o dono do hospital e sua insistência em me fazer trabalhar lá, no fundo me fez de bobo, me deu o tom escuro não só por fora mas por dentro do corpo também.


Comecei a tocar o piano sem planos de parar, com a raiva elucidando as notas, eu queria que o som fizesse tudo parar, eu queria que tudo calasse, por tudo quero dizer meu corpo, quero dizer minha vida. Mas para minha infelicidade, um assassino não pode se matar definitivamente com sua própria arma. Apenas morrer múltiplas vezes, apenas sofrer, e foi isso que fiz.

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