sábado, 1 de junho de 2013

A barriga do pai

Aquele pequeno grito atravessa seu rosto. Entre os enredos de pele e carne encontra novas aberturas, onde se amplifica e ressoa. Como nenhum grito possui tempo real (porque o incomodo não é algo passível de contabilidade), ele o acompanha durante uma caminhada até o ponto de táxi, um descanso depois do almoço, na memória dos tempos da faculdade o grito se instala lá pelos seus 20 anos. O grito se fantasia de juventude, de camiseta estampada e bom gosto musical, Schubert talvez, o grito o acompanha na aula de Mercadologia I. Senta-se na fileira de trás, sorri alto e o observa convicto. Naquele tempo ele não sabia o identificar nas multidões, nos estádios, nas festas. Quem dirá em uma sala de aula.

A mulher tinha cheiro de pomada nos dedos. Os mesmos dedos que depois usava para tomar carinho e presença do rosto dele. Mas não se pode tocar em tudo. Ela terminava de atar a nova fralda na criança que há pouco tinha parado de exibir barulhos, se acomodado no silêncio, o rasgando apenas com risadas tímidas. Ainda bem que ela chegou a tempo. Naquela época, sempre que a mulher saia de casa no fim de semana ou em dia de folga da babá, normalmente para a compra de alguns cigarros ou visitar a mãe, a respiração dele se transforma em um cronômetro. Na espera de seu retorno, não conseguia respirar direito, quem diria trabalhar.

A verdade é que não suportava ficar sozinho com a criança. Ela o ofendia. Ela o ofende. A roupa sempre suja, implicando em falta de cuidado. O seu desrespeito pelos objetos, fazendo ir ao chão qualquer coisa ao alcance de seus dedos. E principalmente, seu rosto. Era sobretudo uma bebê muito feio. Ele não tinha dúvida disso. Seu nariz era muito fino, o queixo agudo como um arco quebrado. Aqueles olhos enterrados que encurtam qualquer ângulo de visão. Cabelos escuros e lisos, como uma lagoa esquecida pelo movimento do mundo. Expulsa do trânsito das coisas. Desde muito tempo não suporta ficar perto da feiura.

Imaginava quanto demoraria para a mulher descobrir isso. A forma que encontrou para lidar com essa adversidade foi se ater a um personagem pronto. A figura do pai distante e hostil que tanto antes detestou. Se viu sem saída e teve que assumir essa coreografia com a mais péssima desculpa. Em casa a fala era economizada, os comentários de vez em quando hostis para não alimentar novos tópicos. Era entendido como um adulto que não sabia lidar com suas emoções, principalmente as mais especiais, tal como o fato do amor exagerado de um pai por um filho. Alguém que não sabia expressar seus sentimentos. Uma vez que, ocorria mesmo era o fato de sua lucidez o mostrar exatamente o que sentia a tal ponto que esconder a verdadeira sinceridade era a  forma de proteger sua família.

 No início, tentou disfarçar como conseguia. Estudava sorrisos forjados. Quando a mulher passava o bebê para seu colo ele inventava um exagero de cautela. Dizia ter medo de machucar, a criança, tão delicada. Tão perfeita em suas limitações. Quando, na verdade, nem se culpava por às vezes desejar que esse passatempo quebrasse. Parasse de funcionar. Assim como tudo que vem com defeito.

Cobria seu dia com maiores compromissos. Passava mais tempo forra de casa, usava o escritório para ler, assistir a algum filme. Se interessou por novas coisas que precisavam do domínio da minúcia e do exagero de dedicação. Começou a praticar modelismo de aviões, carros. O período fora de casa o gastava a mente. Embora sozinho imerso por seus oceanos conhecidos sentia saudade da mulher. Apesar do que aconteceu com suas vidas ele a amava muito. Se conheceram cedo. Ela era muito bonita. Uma das mais que até hoje já pode conhecer. Seu corpo não exagera em nenhuma deformidade. Suas pernas respeitam o cursor de um lápis hábil. Seus olhos equilibram-se no rosto de maneira perfeita, expondo-se em cores, tal como a azul que sugere o quão sua visão é especial. A sua presença é completa porque apenas o fato de sua beleza ocupar lugar no espaço já o basta.

O menino tem sete anos agora. Eles estão a tomar café. Por uma tentativa de se aproximar do pai a criança repete seus gestos. Simula a personalidade de seu familiar. Fechada. Sabe que proporcionar silêncio  na hora de comer, por exemplo, é visto como um agrado. A criança aprendeu que amar é também algo estático. É também distância. Respeito. A indiferença não quer dizer insensibilidade para ela. Nunca a passou por sua cabeça que o pai não a ama. Ele sempre esteve lá. Nas fotos de aniversário, nas comemorações. Ele nunca perdeu uma luta de judô do filho. Sempre concordou com qualquer atividade que o menino se prepusesse a desempenhar. Apreender francês, comprar  algum videogame. Enquanto que seus colegas de colégio mal viam seus pais, por serem separados ou apenas irresponsáveis, o seu sempre estivera próximo. O amava por ele preencher uma cadeira, principalmente. E pela certeza de não  ter que levar sua solidão sozinho.

A mãe está no trabalho. Ele observa o menino. Os anos não consertaram em nada os mesmos motivos que o fez manter em seu pulmão, no lado direito, um desdém tuberculoso.  Ele cresceu. Contudo é ainda baixo para sua idade. Os ombros são muito próximos, o nariz espichou de altura mas a largura ainda é insatisfeita. Ele passa a impressão de alguém doente, alguém sem sorte desde pequeno. Alguém que não merece ser visto. Marcar presença em uma rua, ser percebido em toda sala que entra. Sua falta de beleza vem do fato de que ele é opaco. A luz não volta de seu rosto. Ela some. Desaparece. O menino tem semelhança com cantos escuros.

Não consegue compreender como foi que isso aconteceu. Sua mãe sendo tão bonita. Ele escolheu aquela mulher com exatidão. A pincelou de uma paisagem renascentista. Teve tanta certeza em seu investimento que nunca procurou outra. Desde começos a preencheu de confiança. Sua fé por ela só aumentava enquanto faziam amor, enquanto experimentava cada encontro de pele do seu corpo e certificava-se de sua perfeição, sendo feliz por ter tido sucesso, acertado na escolha, por ter conquistado o melhor do melhor. A desejava também por orgulho de a ter, de possuir o belo do tom de corpo próximo ao seu, no controle de seu tônus. Mas principalmente porque eles eram iguais. Ambos bem freqüentados pelas formas, bem selecionados. Ambos belos. Quando ela engravidou fora tudo pensado de antecedência. Queria muito um filho. Queria engordar seu orgulho.

Não foi o que aconteceu. No navegar dos dias, no pentear dos momentos, tinha vezes que ele entristecia. A sensação de derrota consumia sua tranqüilidade. Não gostava de sair com a criança na rua, não gostava de pensar o que os outros achariam. Que aquele seria ele aos sete anos de idade. Começou a desenvolver uma vontade muito grande de ter outro filho. Desde que o menino nasceu pensava constantemente nisso, tal como uma cicatriz no lado central do olho. O único motivo de não propor a mulher o assunto era medo. Medo que na segunda aposta a decepção fosse ainda maior. Medo que pela segunda vez, medo que o segundo pulmão também guardasse tamanho desgosto.

Incerto de sua decisão, ele a levava para passear em qualquer hora do dia. Às vezes, se uma mulher esbarrasse nele no prédio onde trabalhava, ou, se avistasse uma pessoa muito interessante na rua, no trânsito, ele ficava imaginado. Colocar um filho dentro daquelas barrigas, como eles seriam, que acréscimo uma mulher ruiva daria ao seu possível projeto. Como os rostos dessas crianças seriam desenhados, como elas ficariam no futuro. Como ele velho olharia para elas, com a idade que tem hoje, e o que sentiria ao saber que tudo deu certo. Poderia ter outra família. Poderia ter várias. Mas não era isso que ambicionava. Não adiantava em nada. Seria apenas uma fuga.

A mulher sempre o elogia de como está bem arrumado, com cheiros agradáveis espalhados no mapa do corpo. Se cuida. Usa o dinheiro para isso. Frequenta especialistas em saúde, em esporte, vai a manicure, spas. Não apenas porque adora seu rosto e gosta de visitar o próprio corpo.Mas também em respeito a própria beleza da mulher. Ele acha que tem que devolver a ela o mesmo que ela o proporciona. A mesma intensidade. Por isso, se um dia chegou a pensar que ela talvez estivesse o traído, se por acaso dormiu com outro homem e engravidou e que a criança seria essa, talvez, e que essa concepção é exterior a ele, logo deixou essa raciocínio sumir. Nunca a deu motivos para tal coisa. Além disso, tinha certeza que ela o amava.


Era difícil para o convívio com esse infortúnio. Mas não impossível. Desde que surgiu a criança em sua vida, qualquer palavra dela abastece o grito que ele carrega. Por mais que ambos costurem a mesma tenda de silêncio, nenhuma ausência pode impedir que o grito continue lá. O atravesse. O raspe. O tire mais um pedaço além do filho. Poderia ter previsto que isso talvez acontecesse. Mas não fez.

Sentou em seu quarto. Ficara a colar pedaços de fuselagens de mini-aviões, spitfires, miniaturas da segunda guerra. Passou pela sua cabeça que nunca teve vergonha pelo o que sente pelo filho. Que nunca se sentiu mal por ver ele como um problema a ser contornado. Deixou de lado a cópia do avião inglês. Correu por entre seus pensamentos a facilidade com as quais aquelas metralhadoras instaladas nas asas do caça poderia causar facilmente qualquer destruição. Veio uma amargura. Numa hipótese boa, por se dar conta de que por dentro seus órgãos eram dissimétricos, pouco elaborados. Teve a impressão de que sabia muito da morte.


Chorou a tarde inteira. Só parou quando ouviu barulhos vindos da sala onde o menino estava. Ali naquele momento se assemelhavam.

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