Aquele pequeno grito atravessa seu rosto. Entre os
enredos de pele e carne encontra novas aberturas, onde se amplifica e ressoa.
Como nenhum grito possui tempo real (porque o incomodo não é algo passível de
contabilidade), ele o acompanha durante uma caminhada até o ponto de táxi, um
descanso depois do almoço, na memória dos tempos da faculdade o grito se
instala lá pelos seus 20 anos. O grito se fantasia de juventude, de camiseta
estampada e bom gosto musical, Schubert talvez, o grito o acompanha na aula de Mercadologia I. Senta-se na fileira de trás, sorri
alto e o observa convicto. Naquele tempo ele não sabia o identificar nas
multidões, nos estádios, nas festas. Quem dirá em uma sala de aula.
A mulher tinha cheiro de pomada nos dedos. Os
mesmos dedos que depois usava para tomar carinho e presença do rosto dele. Mas
não se pode tocar em tudo. Ela terminava de atar a nova fralda na criança que
há pouco tinha parado de exibir barulhos, se acomodado no silêncio, o rasgando
apenas com risadas tímidas. Ainda bem que ela chegou a tempo. Naquela época,
sempre que a mulher saia de casa no fim de semana ou em dia de folga da babá,
normalmente para a compra de alguns cigarros ou visitar a mãe, a respiração
dele se transforma em um cronômetro. Na espera de seu retorno, não conseguia
respirar direito, quem diria trabalhar.
A verdade é que não suportava ficar sozinho com a
criança. Ela o ofendia. Ela o ofende. A roupa sempre suja, implicando em falta
de cuidado. O seu desrespeito pelos objetos, fazendo ir ao chão qualquer coisa
ao alcance de seus dedos. E principalmente, seu rosto. Era sobretudo uma bebê
muito feio. Ele não tinha dúvida disso. Seu nariz era muito fino, o queixo
agudo como um arco quebrado. Aqueles olhos enterrados que encurtam qualquer
ângulo de visão. Cabelos escuros e lisos, como uma lagoa esquecida pelo
movimento do mundo. Expulsa do trânsito das coisas. Desde muito tempo não
suporta ficar perto da feiura.
Imaginava quanto demoraria para a mulher descobrir
isso. A forma que encontrou para lidar com essa adversidade foi se ater a um
personagem pronto. A figura do pai distante e hostil que tanto antes detestou.
Se viu sem saída e teve que assumir essa coreografia com a mais péssima
desculpa. Em casa a fala era economizada, os comentários de vez em quando
hostis para não alimentar novos tópicos. Era entendido como um adulto que não
sabia lidar com suas emoções, principalmente as mais especiais, tal como o fato
do amor exagerado de um pai por um filho. Alguém que não sabia expressar seus
sentimentos. Uma vez que, ocorria mesmo era o fato de sua lucidez o mostrar
exatamente o que sentia a tal ponto que esconder a verdadeira sinceridade era
a forma de proteger sua família.
No início, tentou disfarçar como conseguia.
Estudava sorrisos forjados. Quando a mulher passava o bebê para seu colo ele
inventava um exagero de cautela. Dizia ter medo de machucar, a criança, tão
delicada. Tão perfeita em suas limitações. Quando, na verdade, nem se culpava
por às vezes desejar que esse passatempo quebrasse. Parasse de funcionar. Assim
como tudo que vem com defeito.
Cobria seu dia com maiores compromissos. Passava
mais tempo forra de casa, usava o escritório para ler, assistir a algum filme.
Se interessou por novas coisas que precisavam do domínio da minúcia e do
exagero de dedicação. Começou a praticar modelismo de aviões, carros. O período
fora de casa o gastava a mente. Embora sozinho imerso por seus oceanos
conhecidos sentia saudade da mulher. Apesar do que aconteceu com suas vidas ele
a amava muito. Se conheceram cedo. Ela era muito bonita. Uma das mais que até
hoje já pode conhecer. Seu corpo não exagera em nenhuma deformidade. Suas
pernas respeitam o cursor de um lápis hábil. Seus olhos equilibram-se no rosto
de maneira perfeita, expondo-se em cores, tal como a azul que sugere o quão sua
visão é especial. A sua presença é completa porque apenas o fato de sua beleza
ocupar lugar no espaço já o basta.
O menino tem sete anos agora. Eles estão a tomar
café. Por uma tentativa de se aproximar do pai a criança repete seus gestos.
Simula a personalidade de seu familiar. Fechada. Sabe que proporcionar
silêncio na hora de comer, por exemplo, é visto como um agrado. A criança
aprendeu que amar é também algo estático. É também distância. Respeito. A
indiferença não quer dizer insensibilidade para ela. Nunca a passou por sua
cabeça que o pai não a ama. Ele sempre esteve lá. Nas fotos de aniversário, nas
comemorações. Ele nunca perdeu uma luta de judô do filho. Sempre concordou com
qualquer atividade que o menino se prepusesse a desempenhar. Apreender francês,
comprar algum videogame. Enquanto que seus colegas de colégio mal viam
seus pais, por serem separados ou apenas irresponsáveis, o seu sempre estivera próximo.
O amava por ele preencher uma cadeira, principalmente. E pela certeza de
não ter que levar sua solidão sozinho.
A mãe está no trabalho. Ele observa o menino. Os
anos não consertaram em nada os mesmos motivos que o fez manter em seu pulmão,
no lado direito, um desdém tuberculoso. Ele cresceu. Contudo é ainda
baixo para sua idade. Os ombros são muito próximos, o nariz espichou de altura
mas a largura ainda é insatisfeita. Ele passa a impressão de alguém doente,
alguém sem sorte desde pequeno. Alguém que não merece ser visto. Marcar
presença em uma rua, ser percebido em toda sala que entra. Sua falta de beleza
vem do fato de que ele é opaco. A luz não volta de seu rosto. Ela some.
Desaparece. O menino tem semelhança com cantos escuros.
Não consegue compreender como foi que isso aconteceu.
Sua mãe sendo tão bonita. Ele escolheu aquela mulher com exatidão. A pincelou
de uma paisagem renascentista. Teve tanta certeza em seu investimento que nunca
procurou outra. Desde começos a preencheu de confiança. Sua fé por ela só
aumentava enquanto faziam amor, enquanto experimentava cada encontro de pele do
seu corpo e certificava-se de sua perfeição, sendo feliz por ter tido sucesso,
acertado na escolha, por ter conquistado o melhor do melhor. A desejava também
por orgulho de a ter, de possuir o belo do tom de corpo próximo ao seu, no
controle de seu tônus. Mas principalmente porque eles eram iguais. Ambos bem
freqüentados pelas formas, bem selecionados. Ambos belos. Quando ela engravidou
fora tudo pensado de antecedência. Queria muito um filho. Queria engordar seu
orgulho.
Não foi o que aconteceu. No navegar dos dias, no
pentear dos momentos, tinha vezes que ele entristecia. A sensação de derrota
consumia sua tranqüilidade. Não gostava de sair com a criança na rua, não
gostava de pensar o que os outros achariam. Que aquele seria ele aos sete anos
de idade. Começou a desenvolver uma vontade muito grande de ter outro filho.
Desde que o menino nasceu pensava constantemente nisso, tal como uma cicatriz
no lado central do olho. O único motivo de não propor a mulher o assunto era
medo. Medo que na segunda aposta a decepção fosse ainda maior. Medo que pela
segunda vez, medo que o segundo pulmão também guardasse tamanho desgosto.
Incerto de sua decisão, ele a levava para passear
em qualquer hora do dia. Às vezes, se uma mulher esbarrasse nele no prédio onde
trabalhava, ou, se avistasse uma pessoa muito interessante na rua, no trânsito,
ele ficava imaginado. Colocar um filho dentro daquelas barrigas, como eles
seriam, que acréscimo uma mulher ruiva daria ao seu possível projeto. Como os
rostos dessas crianças seriam desenhados, como elas ficariam no futuro. Como
ele velho olharia para elas, com a idade que tem hoje, e o que sentiria ao
saber que tudo deu certo. Poderia ter outra família. Poderia ter várias. Mas
não era isso que ambicionava. Não adiantava em nada. Seria apenas uma fuga.
A mulher sempre o elogia de como está bem arrumado,
com cheiros agradáveis espalhados no mapa do corpo. Se cuida. Usa o dinheiro
para isso. Frequenta especialistas em saúde, em esporte, vai a manicure, spas.
Não apenas porque adora seu rosto e gosta de visitar o próprio corpo.Mas também
em respeito a própria beleza da mulher. Ele acha que tem que devolver a ela o
mesmo que ela o proporciona. A mesma intensidade. Por isso, se um dia chegou a
pensar que ela talvez estivesse o traído, se por acaso dormiu com outro homem e
engravidou e que a criança seria essa, talvez, e que essa concepção é exterior
a ele, logo deixou essa raciocínio sumir. Nunca a deu motivos para tal coisa.
Além disso, tinha certeza que ela o amava.
Era difícil para o convívio com esse infortúnio.
Mas não impossível. Desde que surgiu a criança em sua vida, qualquer palavra
dela abastece o grito que ele carrega. Por mais que ambos costurem a mesma
tenda de silêncio, nenhuma ausência pode impedir que o grito continue lá. O
atravesse. O raspe. O tire mais um pedaço além do filho. Poderia ter previsto
que isso talvez acontecesse. Mas não fez.
Sentou em seu quarto. Ficara a colar pedaços de
fuselagens de mini-aviões, spitfires, miniaturas da segunda guerra. Passou pela
sua cabeça que nunca teve vergonha pelo o que sente pelo filho. Que nunca se
sentiu mal por ver ele como um problema a ser contornado. Deixou de lado a
cópia do avião inglês. Correu por entre seus pensamentos a facilidade com as
quais aquelas metralhadoras instaladas nas asas do caça poderia causar
facilmente qualquer destruição. Veio uma amargura. Numa hipótese boa, por se
dar conta de que por dentro seus órgãos eram dissimétricos, pouco elaborados.
Teve a impressão de que sabia muito da morte.
Chorou a tarde inteira. Só parou quando ouviu
barulhos vindos da sala onde o menino estava. Ali naquele momento se
assemelhavam.
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