segunda-feira, 17 de junho de 2013

sobre os últimos acontecimentos meu cachorro não é silêncio

não há como não perceber. meu cachorro anda inquieto. hoje, em face de um prato de comida recém posto,   adicionou tal silêncio a cena que parecia querer era um diálogo com a tigela que só fornecia calorias. ficam os dois lá, a armazenar suas contusões. eu acordo, esquento um café. meu cachorro dorme com os olhos abertos. eu sento no sofá, observo o jornal. meu cachorro se senta mais perto. não emite um ruído, não denuncia uma fagulha, não quer saber de expressão. ele chega mais perto. esfrega aqueles olhos amarelos queimados na graxa da tipografia do impresso. meu cachorro não sabe ler. eu leio para ele. no final não me cumprimenta. adota uma parede como ponto de fuga. meu cachorro anda tão estranho. às vezes solta um berro, longo, adestrado. berros não são adestrados. exijo resposta. meu cachorro me segue pela casa, acha que lhe devo uma saída. uma explicação. ligo a televisão, escuto o rádio, suas notícias, me volto ao computador, salgada. deve achar é estranho meu cachorro me ver tanto tempo em casa, sinto vergonha da não fuga, mas finjo que não me pertence o abrigo. ele quer saber o que está acontecendo. quando ele abaixo o focinho, isso é uma pergunta. eu não sei o que dizer. eu não sei nem o que dizer para meu cachorro. nos últimos dias? é complicado, você não entenderia. ele desconfia de minhas reais preocupações. sim, tem muitas pessoas indo para rua. sim, elas estão com uma tristeza em labirinto. sim, elas se lembram que são pessoas na rua. sim, nesse país se mexer é desrespeito. você não compreende. meu cachorro quando não compreende algo vai para o jardim. faz coco nas mudas de manjericão, nas bromélias. depois de um tempo volta e relaxa no piso mais gelado do canto mais inóspito, meu cachorro se faz em confusão. eu ali, naquela casa, eu ali, naquela zona sul, eu ali, recheada de números. o que são números para o meu cachorro. meu cachorro só sabe o que vê. meu cachorro só vê a mim. sem ônibus, sem tarifas, sem tabela de superfaturas, construções. está visivelmente decepcionado a esse ponto. se antes me perseguia, como um comboio em tom de proteção, agora prefere ficar na rua. escutar uma mensagem que vem ao ar, algo do tipo. está triste. deve preferir ter outro dono, aliás, ter é dono nenhum. meu cachorro enfrenta a fresta da rua, debaixo do portão. de lá ele observa os carros passando, a bola das crianças correndo. de lá ele vê. não apenas escuta o que sobra dos canos submersos. pensei que estaria contente, eu aqui, sã, eu aqui salva, eu aqui. meu cachorro sabe que um mapa não é um ponto. que espaço é algo preenchido não desejado. nem sequer explicar as ranhuras da garganta eu pude, nem sequer depositar meu país uma palavra, numa frase, eu não citei Jango, eu não citei empreiteiras, eu não citei Mariguella. Não precisava. lembro que meu cachorro possui a herança dos lobos nas patas de trás, que de alguma forma ele reconhece uma pedra que poderá cair, um atalho a surgir, seu passado o deu o longo faro. eu poderia agora abrir aquele portão. deixar que ele descobrisse por si só. ao invés de ficarmos aqui, tomando uísque, declamando Murilo Mendes, o ensinando piadas de mitologia eslava, ou como os russos são bonitos. se eu realmente entendesse o que está acontecendo, o deixaria escutar a pimenta e decifrar o gás sozinho, depois ele me contaria, chorando chorando, voltaria a minha casa, daí sim o uísque, daí não a poesia, deitaria no meu colo imerso em um duplo sentimento, o de buscar asilo em meu tom de pele quente conhecido e  o de talvez me detestar pelo fato de minha humanidade me punir, que horror, que horror, me diria, chorando com a mesma coragem que não tive. mas cachorros não choram. preciso começar a desensinar coisas. pelo bem das espécies. a distância colabora com o cristal do olho, a mina do corpo.

Nenhum comentário: