sexta-feira, 31 de março de 2017

uma menina, um menino, um menino na avenida brasil

uma menina vai a escola. uma menina na escola leva uma bala na cabeça. essa agora é a historia dos últimos momentos de vida da menina. o corpo da menina cai, no meio da educação física. a menina já está em outro lugar. os parentes e vizinhos da menina fazem um protesto em frente a escola. a escola fica em uma avenida chamada avenida brasil. as pessoas que moram no mesmo bairro que a menina fecham a avenida. elas estão bravas e os carros não podem mais andar. elas gritam justiça. os carros se desesperam. quando uma pessoa está em um carro, não é mais uma pessoa talvez. uma pessoa tentaria atropelar alguém que perdeu alguém? bandidos aproveitam os carros não sendo carros em sua função, porque, parados. bandidos roubam os motoristas, um a um, na avenida brasil. enquanto as pessoas gritam, os carros estacionam, pessoas levam coisas de outras pessoas, alguém que viu um pouco de quase tudo divide com a internet um video. no video dois policiais matam dois meninos ao lado da mesma escola. eles chegam bem pertinho de um, bem mesmo, mais do que os bandidos chegaram dos motoristas que furtaram. e atiram com o fuzil. a distância queima-roupa faz o corpo saltar para longe do chão, como se tivesse vida por 2 segundos, como se o movimento inverte-se a lógica da bala, um blefe de vida, mas o menino não está mais lá, é um corpo que pipoca, assim como o cinema, o policial deve gostar muito de cinema alguém deve ter pensado. calmamente no mesmo vídeo o mesmo policial mata o outro menino talvez já morto no chão. o policial não acredita na morte e talvez por isso mate tudo duas, três vezes, ou gosta tanto que, tenta repetir o gesto prazeroso, alguém pensa. os policiais então vão embora e deixam os ex-meninos ali, como se dormissem cansados depois de um jogo de futebol, sem saber que do outro lado do muro da escola, uma menina também deixou-se ir da mesma forma, e essa é a coisa com a morte, ela é incontrolável, tem vontade própria, nem o policial sabe e aliás muito menos ele. uma bala por exemplo pode ser só uma e ter só um endereço mas ela pode matar nenhuma ou várias pessoas ou matar por muito tempo ou pouco e quando ela é lançada ela é da morte pois não há diferença entre o fim e o desejo do fim. mas o policial não tem nada ou quase pouco ou nem mesmo ele mesmo e por isso pode achar que a tem pensa outra pessoa. depois do vídeo descobre-se que os policiais estavam lá para coibir roubos naquela região, o policiais não citaram números, mas disseram a palavra muitos na esperança que o plural pesassem na cabeça dos ouvintes. os policiais tem um jeito estranho de lidar com roubo. ainda é roubo se é para sempre e sem volta? é noite e a avenida brasil continua parada. os moradores, os motoristas, os bandidos, os policiais, os ex-meninos. as balas soltas como animais de caça pelos policiais horas antes continuam se movimentando pelos ares, mas os moradores gritam alto e por hora elas não se atrevem.

31.03.2017

segunda-feira, 27 de março de 2017

vários tantos

Uns diziam: seu tio era gay. Outros diziam: seu tio era um ótimo orador. Seu tio era advogado. Seu tio era cantor. Seu tio comunista. Outros falavam: o irmão de sua mãe como se isto garantisse uma distância segura de mim e o perigoso ele. Quando uma pessoa some ela pode virar várias pessoas? Existem tantos tios quanto caminhos para a insônia. Cada dia o teatro com meus tios, ganha um nov, já passam de 300 as cadeiras. Se há tantos tios eu sou muitos sobrinhos? Pode-se herdar coisas de alguém morto antes de você vivo? Meu tio é sempre diversas coisas mas nunca dizem as pessoas que ele não é alguma coisa. Seu tio era terrorista. Seu tio era péssimo em lidar com plantas. Seu tio era voluntário em um abrigo de cães. Seu tio tinha uma admiração incompreensível pela Hungria. Seu tio colecionava porcelanas de manteigueira. Seu tio morreu pelo MR-8. Seu tio era ótimo em gamão. Seu tio. O outro filho de seu avô e de sua avó era péssimo pescador. Às vezes no natal alguém bebe um tanto, ou não, apenas esquece-se pelo orgânico de nossa tipificação, alguém lembra, alguém fala dele no presente, fulano é tão bom cozinheiro, fulano é especialista em direito, ele saberia. Então outra pessoa no outro lado da sala, enrubesce. Como se agora meu tio estivesse ali, de pé, junto com ele a fuga, os tiros, as perseguições, em torno de mim e de meus primos, e nós no meio de tudo isso, um perigo que nunca foi embora porque nós existimos.

domingo, 26 de março de 2017

companheiros

Ao leste há um país muito parecido com o nosso. Nossa floresta e nosso deserto vazam um encima do outro como um belo bolo de mármore. As fronteiras são dois braços se roçando, os pelos arrepiados dão destinos ao vento. Contudo, não falamos a mesma língua. Não comemos as mesmas coisas. Não falamos um dos outros nas pousadas ou telejornais. Não trocamos bilhetinhos de amor, telefonemas, receitas, feitiços, frutas curandeiras. Não trocamos em gritos, como alguns vizinhos irritados, ou olhares, como os que definem a existência de uma grade. Nunca, nem se quer, nos juntamos na guerra. Na bebida exagerada ou naquele desejo humano e meteórico de contar segredos aos desconhecidos. Mas eu minto. Houve uma vez. Uma e única vez. Nossos governos caíram em derrocadas, os dois juntos, exatamente ao mesmo tempo. Os que assumiram no lugar não queriam um país. Mas sim um estrado. Uma dispensa de desmanches. Os que assumiram se juntaram, e no trabalho conjunto mataram e sumiram, e mataram e sumiram, com as pessoas tanto do lado de cá como do lado de lá. Hoje tudo voltou como era. Ainda sim imaginamos. Em algum lugar, enterrados embaixo da terra, talvez no mesmo buraco. No mesmo recife de coral. As pessoas do nosso país, e as do outro. Estão juntas.

30 000 de novo

Há um país. Não falam muito dele. E quando falam falam errado. Mas eu boto o ouvido o ouvido na borda do continente, nas américas os telefones são assim, nosso povo, nossa telepatia pela borda, e recebo notícias de lá. Neste país quando alguém some, desaparece, quando alguém falta a aula por dias e a diretora chama os pais, quando alguém some da casa, do emprego, do empréstimo do banco, da internet, do locatário, da reunião de família. Da intervenção dos amigos. Quando alguém era mas não com certeza. Escapuliu. Não aparece. Quando alguém desaparece neste país dizem que quem sumiu foram 30.000 pessoas. Mesmo que este alguém seja uma pessoa só. 30 000 pessoas desapareceram hoje na província de Coalapatzu. 30 0000 no centro comercial San José de la Cuerva. No rio Aldomascor. Esta poderia ser uma lei, mas não é. É só algo que as pessoas se acostumaram em fazer pois é preciso estar atento. Nunca ninguém conseguiu definir ou reconhecer o que é um fim. Nunca se sabe se a história está começando ou se na verdade nunca havia acabado. É preciso estar atento.

quinta-feira, 23 de março de 2017

lavagem

em toda entrevista ela dizia a mesma coisa. todo dia ele acordava e lavava a calçada hoje a calçada está suja com o sangue dele. os repórteres tentavam mudar de assunto. todo dia ele acordava - tinha filhos? - e lavava a calçada - que horas eram? - hoje a calçada - você viu algo? está suja com o sangue - usava drogas? - dele. o sujo era um vermelho tão vivo. os cameramans pisando nesse vivo. ninguém a dava uma resposta. como se limpa isto quanto tempo a chuva leva para escorrer este cimento porque isto não aparece na previsão do tempo. por que no programa matinal da emissora ninguém ensina como remover a marca de um corpo na rua, especialmente, depois da ambulância não chegar a tanto tempo, e tudo voltar a ser resíduos? como contar aquilo a uma criança? ninguém fez a pergunta necessária. a que ela precisava responder. este é meu terceiro morto e o ano não termina. a morte custa dinheiro, limpar custa, arrumar. eu quero que vocês se lixem ela pensa, enquanto joga pela janela aberta um saco de carne decomposta dentro da van da reportagem quando eles partem de novo.

quarta-feira, 22 de março de 2017

ninguém sabe

Ninguém sabe direito o que é um desaparecido. Então um desaparecido pode porque não ser qualquer coisa. O olho do sagui, a coruja pela manhã traindo seu próprio hábito. A sombra deformada de uma figueira no Ibirapuera. O cão que dorme com seu dono embaixo da marquise, a pomba que atropela alunos dentro da universidade. Foi o que me disseram. Quando era criança. Não disseram exatamente. Ninguém teve coragem de dizer as palavras Edgar vivo. Edgar morto. Mas eu deduzi. Qualquer coisa. Os espíritos da floresta da cidade das duas que destruímos. Até hoje quando vejo um animal em meio as ruas, aparecendo nos sentidos, um quero-quero que não devia, uma arara fugida do cativeiro clandestino, eu digo tio? tio!, eu digo: tio. Sei não fazer sentido mas é um bom jeito de tentar familiaridade com todas as coisas.

há muito tempo atrás logo ali

Quando eu contei a minha avó que faria faculdade de comunicação ela me disse que não fazia bem a saúde. Eu disse: mas vó. Eu tomo café sem açúcar. Mas vó troco facilmente as drogas por uma boa amizade chave mestra. Era não nada disso que ela queria dizer. Há muito tempo atrás logo ali, disse e apontou para um velho calendário parado em 1967, toda palavra era perigosa. Houve um episódio, ela disse, pense, na rua da praia com a caldas junior, no tempo em que havia um jornal da manhã e um da tarde, dois dias a cada um, um presidente foge, há boatos de cidades inteiras sitiadas, os militares querem ocupar as ruas e serem estátuas ao mesmo tempo. Depois do baque, do pânico, do medo, alguns jornalistas simplesmente jogaram suas máquinas de escrever do terceiro andar da redação, algumas caindo e machucando os pedestres. Houve outros, ainda não acostumados, os jornalistas ainda jornalistas, engoliram as máquinas para dentro das próprias barrigas, pesadas, forçosas de entrar, caras as olivettes, tiravam as notícias pela boca como quem devolve a madrugada em uma latrina de um bar. Não se engane é muito perigoso, me disse minha avó. Eu imaginei os dedos indo fundos ali perto dos próprios umbigos, catando-se as letras, datilografando pelo tato, ou será que faziam eles, uns nos outros por ser mais fácil? Tranquilizei minha avó hoje em dia nós não usamos mais máquinas, mas estes pequenos aparelhos vovó, veja, menor do que algumas bocas, entrem fácil. E fingi não alcançar uma metáfora ruim e descarada, e entendi o mundo dos péssimos jornalistas.

a festa

Este foi um costume surgido em um distrito de Santa Fé, na argentina. Uma vez por ano era organizada uma grande festa no clube central da cidade. Discos de Piazzola e Roberto Carlos, Violeta Parra e Marie Anderson. Muita polenta cozida, milho boliviano, chimarrão, cachaça e cidra de mel para agradar os convidados de todos os lados do continente sul-americano. O povoado da cidade não entrava, ficava do lado de fora só olhando a casa vazia. Ou não. Vazia ou talvez. Vazia mas por a vida ser nossa não. Todos na lista de convidados estavam mortos. Uns, sabiam-se mais ou menos: tinha sido jogados de aviões militares lá por 71, outros metralhados nas barrigas ao levar os filhos para a escola , alguns nem sabiam-se ao certo em qual país se foram – boatos de que não havia este tipo de fronteira naquela época – chilenos, brasileiros, argentinos, paraguaios, que entre suas andanças desapareceram. Simples assim. Era uma lista gorda, com mais de 300 nomes. Uma tentativa desesperada mas com a pretensão de um alcaçuz, de colocar todos eles juntos no mesmo lugar. Todos eles próximos. Os sul-americanos. Todos eles vivos ou não mas presentes. Todos eles comemorando, felizes, em uma festa, como se não tivessem perdido a batalha, porque em verdade nada foi em vão, o Hernandéz, a Cássia, o Léon, O Timeiro, a Sylvia e mais tantos outros. Do lado de fora Miriam diz a mãe acho que posso vê-los, sim posso sim, riem muito, dançam como se tivessem sidos surdos por décadas, se abraçam como fitas dupla-face, em simultâneo todos. Sua mãe se emociona e segura a filha no colo. Esta é coisa sobre os desaparecidos, disse alguém a um telejornal, em um dia que passei pela tv. Os desparecidos estão em todos os lugares. Enquanto não descansam precisam saber que nós também não. Mas que há música ainda, e comida tanta. Alguns moradores ficam madrugada adentro enfeitando os olhos com as janelas do clube. Imaginam ou veem o que ocorre, ou que querem. Choram juntos e separados. Noutro dia vão limpar o salão. A comida, misteriosamente, sempre em parte comida. O resto levam para as creches. Nunca é tempo do desperdício, ainda mais agora. Tudo é tempo. E precisamos de cada pedaço um tudo.

segunda-feira, 6 de março de 2017

5 quase lácias

I
um dia houve no mundo um homem que confiou em uma palavra até o final. no seu significado até o final. mesmo sabendo que o sentido de uma palavra é algo muito particular. até o final. este homem usava a palavra como um facão sem cabo. para começar uma briga e para terminá-la. e eram muitas. dizem que quando velho se recolheu em uma cabana no interior do estado. falava sozinho. as pessoas o povoado viraram a cara, não entendiam. já as crianças o adoravam. iam muito a sua casa, levavam comida e jogavam xadrez.

II
um dia houve no mundo uma mulher que jurava que sua palavra existia até o final. a palavra era baupuca. baupuca é a situação onde uma pessoa se encontra na qual ela saiu vencedora mas as pessoas não a tratam bem por isso mas pelo fato de acharem que possui pouco tempo de vida. a mulher levou a palavra para uma audição na academia das letras. foi constatado por meio de votação que a palavra poderia existir, embora fosse uma antecipação de algo que talvez ainda não existisse, mas que caso adentrasse a ordem dos dicionários deveria ter a grafia corretamente escrita com a letra L ao invés da letra U. a mulher discordou tanto que quando girou a cabeça os pés foram juntos. alguém disse: esta mulher está tendo um paratiquieto. mas o presidente da academia, um tipo figurão, disse que não, que era impossível, pois esta palavra não existia. enquanto uns gritavam, outros arranhavam as mesas de madeira antiga, a mulher foi embora.

a mulher então sentou-se no fio da calçada. ao lado dela notou um senhor que poderia ou não morar ali na rua mesmo, embaixo de uma marquise. ela disse como quem sussurra (que é a definição daquilo que escapa com nossa autoridade) tudo isso por causa da baupuca. baupuca? disse o homem. verdade. sei como é. a mulher então ficou bem menos triste que antes mas não o suficientemente alegre, o fato é que a palavra esta ainda não foi inventada.

III
uma vez uma criança recebeu uma palavra via o sono. ela não contou para ninguém. estava em uma missão. uma missão secreta. ela tentou enfiar as palavras em todos os lugares para ver se ela pegava. para ver se ela encaixava. ela dizia: mãe porque meu lanche hoje está tão uclivo? mas a mãe só disse: não reclame. a verdade é que fora passada a ela a palavra, mas o significado ainda era um mistério a ser descoberto, por isso o plano de jogá-lo no mundo feito isca de anzol. na sala de aula, durante a contação de histórias, fez um comentário: sobre a história nem boa nem ruim: só sei que faltou uclivo. uma criança riu, outra chorou, o que a confundiu ainda mais. no fim do dia, exausta, deitou no sofá enquanto comia os restos de bolinho de chuva do final de semana. não cabia à ela salvar o mundo dos adultos. a veio a mente o caso de uclivo não ser a palavra real de sua missão mas apenas uma palavra para palavras temporárias. uma palavra para palavras que ainda não chegaram. eu uclivo, tu uclivas. vós uclivais. conjulgou-a como verbo várias vezes até pegar no sono.

IV
uma vez uma pessoa tentou se vingar do mundo. ela pegou uma palavra que todo mundo
adorava e deu um cheiro para ela que todo mundo detestava. digamos. era uma palavra como. digamos. a palavra doce. bombas de cheiro explodiam na cidade. o homem dizia a imprensa: eis o nome disso é. como imaginou o homem o nome não foi mais forte que o cheiro o bastante para fazer o cheiro ser agradável só porque a palavra era agradável. mas esqueceu-se o homem que uma boa palavra é muito mais que uma palavra só. guloseimas voltou rapidamente a moda.

V
uma vez um homem usou uma palavra para tentar ganhar uma eleição. a cidade era muito pobre, então ele inventou esta palavra: clâmula. ele a repetia em todo discurso, imaginando que seu eleitorado, por ser pobre, era burro, por ser burro confiava em alguém que conhecia palavras selvagens e que o mundo era maior por causa daquele que a fala. mas as pessoas eram inteligentes. usaram a mesma palavra quando o expulsaram do palanque. da cidade. ao contrário do que se pensava, a palavra não foi banida. virou um tipo palavra-estátua. para servir de exemplo. para nunca esquecer diziam os moradores. uma palavra corre o tempo, uma palavra pode guarda-costas do tempo. uma palavra pode ser adestrada, pode tudo, quando a palavra é nossa.

domingo, 5 de março de 2017

no bar Salineiro tem coisas

a história é um local perigoso. disse e foi embora. se falava da vendinha portuguesa que se chamava mil e uma noites, se falava da relação novelesca mas já esquecida de joana com isabel, se falava de nosso país e os índios mortos dentro de um fruto de cacau, mortos depois de em parte nos adestrarem a fruta amazônica, que pasmem, hoje é doce para o ocidente, os mesmos índios mortos hoje de novo por um madeireiro  imortal, se falavam da primeira missa em porto seguro onde a cruz no pescoço entortou nossas costas para sempre e é difícil dormir a noite, se falava de nosso governador que já fora preso, já fora a morte para alguém, se falava do verdadeiro motivo pelo qual os peruanos originários carregam tantas cores em suas vestimentas, de uma foto esquecida no casaco de couro, de uma carta contrabandeada de dentro da prisão feminina que só levava uma receita de peru de natal, se falava que as fronteiras ao sul de nosso país são na verdade apenas só um fonema de difícil pronúncia, de um amor seu requentado durante ao sono a atrapalhar o deciframento dos semáforos quando de dia, eu não sei. eu sei que foi embora.

você sabe, alguém que não cumprimenta na ida ou na volta, sabe-se, não é necessariamente alguém que não cuida do outro. pode ser apenas alguém que viu demais. ele disse e foi embora. mas todo dia ele está aqui. o observo. pede uma cachaça, quando entra, o bar que é um navio quando ele entra, afunda para um dos lados e tudo despenca. você sabe, ele não é daqui. ele é alguém que não temos como saber se fala a verdade porque ninguém o conheceu antes de nós. outro dia sentou em minha mesa. é você que se chama Aurélio? Eu disse, também. Eu o perguntei as horas. São sempre as vezes, me disse. chorou. Porque houve um dia, fugiam de um tal de Matias, por dentro da mata atlântica, e nesse dia tinha chovido por dias iguais e as cachoeiras obedeceram se enchendo de água e a terra escorregando o que não era terra. porque matias era um homem que respeitava a sim mesmo, porque matias achava que um homem é mais homem com uma arma em punho, fugiam do dono da terra verde adentro. ele pausa a história. você sabe: tem duas coisas que estamos sempre perdendo: o dia anterior e a ereção. mas no meu caso eu acrescento josé augusto. quando já era uma distância considerável e as pedras grandes pareciam salvá-lo, josé augusto mais lerdo em princípio e em realidade era um alvo para matias, que atira e erra mas acerta do outro lado do morro, o que faz josé augusto rir, o que muito tem a ver com tropeçar, e despenca de cima da cachoeira como uma boia murcha em supergravidade, entre as pedras, de cabeça na água verde do segundo andar do rio. ele diz: nunca mais vi josé augusto até três anos depois em quito, enquanto cortava milho, e revendia, em um casebre em meio da estrada. a história é um lugar perigoso disse a pontou para a garrafa. a cachaça pode ser feita de qualquer coisa, mas plantamos cana. sou eu nessas situações e sorrio na medida que não exagero, no fundo sei o que diz, sei que é outra coisa, sei que com o tempo as palavras de alguns homens não significam mais o mesmo e eles tem que usar outras e outras, até se gastarem e jogá-las fora como cartas marcadas do truco.

todo dia ele vem ao bar Salineiro, onde trabalho. em alguns dele pede minha presença quando o salão está murcho. então me conta como perdeu e achou josé augusto mais uma vez. tem duas coisas que sempre perdemos: o dia anterior, a ereção, e no meio caso josé augusto.

uma vez em que trabalhava em uma fazenda de cocos, era inverno, mas como era o estado de alagoas, apenas era. um dia vira um homem, era josé augusto, fugindo de um tipo troncudo, disse josé, e deu um soco no homem, disse augusto, ele virou e o deu esconderijo em sua casa por algumas semanas. sempre sem querer. em qualquer lugar do mundo. quando uma vez em uma pensão em são caetano, chamou pelo gerente eis que surge: josé augusto. dois anos depois em brasília, em meio a marcha das margaridas, um homem, muito parecido com ele, josé augusto: aparentemente apaixonado, aparentemente luminoso, embaixo do chapéu de palha que dividia com uma mulher. quando a maré era tiro e bala tiro e bala lá por volta de 2014, estava em tocantins, assistindo a tv junto a um camioneiro que o dava carona, disse para o caminhoneiro: aquele tornozelo na televisão, aquele sangue que o cobre, aquele é meu amigo josé augusto gritando com o policial, sendo eu o que o vejo, sei que hoje não morre. passam-se anos, junta-se anos. de um jeito ou de outro há uma certeza que sem querer o encontrará. e o continente será de novo um pequeno carrossel.

nós sabemos a verdade. nós sabemos que no fundo ele é josé augusto. tem pessoas que sofrem muito, que vivem muito mais do que uma, ou cinco pessoas. todas as vezes ele mesmo josé augusto. imaginamos se houveram outros ou outras. nos preocupamos. existe duas coisas que perdemos jamais: o gosto pela feijoada de alguém que já se foi e a capacidade de estarmos sozinhos. poderia ter dito mas não disse. a história é um local perigoso, aprendo e me aquieto.