terça-feira, 9 de dezembro de 2014

feijões vermelhos

Estávamos no lugar errado. E na hora certa. O que é pior. Nós os que chegamos no horário. O horário do azar. Nós os pontuais. Os que obedecemos. Enganados.

Nos disseram que aquele era o lugar onde poderíamos conseguir. O visto digo. Para que pudéssemos ficar. Quem sabe ver nossos filhos falando português nos parques assim como os balões levitam. Os balões. O homem da direita faz um com um chiclete que julgo mentolado. Ele o estoura rapidamente. É mal educado. Tão mal educado que os olhos tem só em caso de emergência. Por exemplo: alguém falar seu nome completo. Alguém que ele demorou anos para esquecer ligar surpreendentemente para seu telefone. Uma mulher maior que o mundo andar em sapatos menores que os pés que o pisam. Gostosa. Safada. Mal educado.

Nos disseram que neste endereço conseguiríamos ter os nós das gravatas prontos automaticamente. Que depois de virmos este endereço teríamos empregos. Não como os tigres que caçam. Mas como os tigres que não se deixam ser caçados. Teríamos documentos. A lei nos olhando bonito. A chance de sermos dignos também longe de casa. Mas este homem, o mal-educado, parece estourá-la tão facilmente. Depois ainda deixa um cheiro de goma de mascar velha. Ranzinza. Com essência de menta. Gozando da gente. Dizendo que tá tudo bem no ar. Só que não tá.

Porque a gente tá aqui e faz duas horas. Duas horas nesse cubículo fechado. Branco. Tão branco que é transparente. Que dá para ver o outro lado. Tão transparente que dá para ver seu passado. No outro lado, o de dentro, pessoas como nós os constroem, os limpam, os esfregam. E nas horas que as esfregam deixam ir embora pequenos arquivos de papelão onde estariam escritos: nesse dia peguei meu filho na escola e vimos um papaguaio azul. Nesse dia paguei um café a um desconhecido só porque eu podia. Tão brancos que dá até para ver o nome mais correto do desperdício. Dor.

Somos no total oito. Todos homens. Todos pontuais. Ao lado do sujeito de chiclete tem o tal de Afonso. O tal de Afonso quando entrou aqui, depois de uma hora que estávamos sentados e entendendo a diferença entre esperar e não poder escapar, chegou e disse um monte de coisa. Disse por exemplo que ele não falaria o nome dele. Porque não merecemos saber. Porque não merecemos nada. Só que na plaquinha, do lado esquerdo do uniforme dele, tá escrito: Sargento Afonso. O-. Eu sei até o sangue do tal do Afonso. Em outro momento até me atreveria a rir. Mas quem ri cria exporta tempo da clandestinidade. E a clandestinidade é ser livre. Algo tão inacessível naquele momento.  Um absurdo de tão.

O Afonso, que tem sangue, que é O negativo também tem uma arma. E essa arma tem um dono que não é nem a mão do sargento nem o próprio sargento. Eu tenho medo é desse quem. Não dele. Eu tenho medo é do absurdo. Porque na mão do absurdo os gatilhos vão nos dedos e não o contrário.

Nós estávamos em silêncio. Então entrou mais um homem. No lugar em que não devia caber nenhum. Éramos onze. Ele também estava armado e gritou algo do tipo

É o seguinte seus desgraçados. Quem aqui é Fernandes Salgado? Ninguém vai sair daqui até alguém dizer que é Fernando Salgado. Por que alguém de vocês simplesmente é. É o puto do Fernando Salgado.

Ficamos nos olhando. Nós, os pontuais. E todos parecíamos estar no chão. Porque era olhando para o chão que nos comunicávamos uns com os outros. Ali que divulgávamos nossas medidas de medo, criávamos um rinoceronte de dúvida. Furioso mas incapaz de agir. Um ou outro poderia ter de fato conversado entre si, porque falamos francês e os homens nunca entenderiam, mas ninguém ousou domar uma palavra até o fim. Teve um que começou a falar algo do tipo Tous.. mas então nosso rinoceronte soltou um rugido e imediatamente ele se calou. Mas não era nisso que eu pensava.
Feijões. Estava faminto. Fome tanta fome que quanto mais parecia que queriam me devorar eu só pensava em batatas e feijão vermelho. O feijão vermelho da minha tia que morreu anos atrás, antes da morte existir. Antes de, em Porto Príncipe. O feijão que veio dos cantos de acordar de nossos antepassados. Que nos manteve vivos mesmo quando nenhuma lupa nos achava no mapa-múndi.

Faz quase dez horas que estamos aqui e todos nós temos um buraco dentro. Um buraco que se alinhado: Um túnel de fome. Todos nós menos o Sargento Afonso que come um chocolate que ele não sabe mais veio de Guine Bissau. Que ele não sabe. Ele come, mas nem sei como. Porque o homem da minha frente acabou tendo que urinar ali mesmo e deve ser difícil ter prazer com aquele cheiro. Ele deve gostar. Ele deve até gostar. Um tipo especial de cobertura.

Vamos lá seus desgraçados. Quem aqui é o puto do Fernando Salgado. Vocês só vão sair dessa merda até alguém me dizer. Porque alguém vai dizer.

O mesmo homem, que descobrimos era sargento, repete.

Um dos caras, o mais baixinho de todos, de pele mais escura, levantou corajoso e disse Você é louco, isso não faz sentido, a gente nem nasceu aqui.

Isto é exatamente algo que Fernando Salgado diria respondeu o sargento. E deu um murro no estomago vazio. Que parecia até um tambor. O couro ali. Ressoando. Brrums.

Eu vou sair daqui e quando voltar vocês vão me entregar o Fernando. E o resto vai voltar para os seus filhos disse o homem de cinza.

Todos eles saíram. Só ficaram nós. Nós oito.

Foi quando o não premeditado aconteceu. Um dos homens se levantou e apontou para o baixinho, recém filho de uma surra, que ainda gesticulava espasmos no canto. Tão contorcido que parecia um corrimão de tão fino. Levantou, chegou perto e disse:

Este só pode ser Fernando Salgado. Foi o único maluco para dizer alguma coisa. É esse o desgraçado. É o tipo de coisa que Fernando Salgado faria.


Antes que o outro pudesse se defender, o homem o deu um. Dois. Socos. Os outros se levantaram. Estavam com muita raiva. Cheiro, urina, menta, chocolate. Como o espaço era pequeno, e não dava para fazer uma fila, fizeram um círculo. E bateram. Bateram em Fernando Salgado, porque ele era Fernando Salgado. O homem ali poderia ser uma morte, o fato é que, já era a introdução de uma.

Então, enquanto os tambores, enquanto os socos, se repetiam, lá no fundo. Espremido contra a parede estava nosso rinoceronte, agonizando, eu o via, estava doente, ferido, quase se indo. Mesmo com toda fome do mundo e por causa talvez de toda fome do mundo.

Eu gritei.

Em francês, porque a memória do medo é sempre de infância. Depois em português, porque em estrangeiro é mais apavorante. Eu gritei por ajuda. Enquanto o sangue do homem se espichava pelos cantos, o líquido também desesperados por uma saída, enquanto eu encarava o seu vermelho e a primeira lembrança que vinha eram dos feijões, também vermelhos, e de seu molho, também líquido, enquanto eu alucinava e ali estavam os feijões que tanto queria comer, saindo aos montes de dentro da barriga e da cabeça do homem mesmo assim eu gritei.

O sargento veio. Me perguntou que merda eu estava fazendo. Falei que um homem estava morrendo. Você nos chamou por causa disso? Você nos encheu o saco por causa disso? Isto é exatamente algo que Fernando Salgado faria.

Eu bem que gostaria de ter dito “mas não sou ninguém”, mas isto era inútil. O lugar era tão pequeno e nem tinham lugar para cair, mas eu desmoronei, e esta é a chave para a abertura de espaço, primeiro com a ajuda do sargento, depois veio o homem alto, depois os outros, e é claro, aquele, o pequenino, que carregando meus feijões nos braços, eles meus feijões vermelhos até que enfim, e nas pernas não hesitou de me dar uns pontapés. Uns belos de uns pontapés.

então fui dormir

eu pedi a Rebecca para que cortasse o papel para mim.

de que formato, ela perguntou.

do formato que um papel tem que ser.

então ela me deu esse negócio meio triângulo, meio losango, e porque eu amava Rebecca e porque ela era minha irmã eu disse

você estragou tudo

não posso escrever nesse papel

porque esse papel tem o teu formato

então não o posso jogar fora

você estragou tudo,

muito obrigado.

terça-feira, 17 de junho de 2014

os inícios

foi em uma viagem à Escócia, bebia muito a Escócia (entende-se memória escassa), conheci um homem que não lembrava onde tinha nascido.

perambulava pelo  mundo há tanto tempo, tirando fotos da Cabul devastada, se apaixonando por mulheres erradas na Trícia, e agora não lembrava onde esteve primeiro.

seus pais moraram em Hamburgo um dia, mas ele não sabia do depois, seus principais documentos se perderam ao ter de sair por uma emergência do navio Del Ganda, no mini acidente de 94. de qualquer forma, não acreditava nos papéis estatais, como sua cidadania lituana, sendo que nunca conheceu os avós.

naquela noite foi muita a cerveja escura, a mesma cerveja que por pouco não transformava nossos pulmões em negros aquários, como imaginava a cada copo. o homem ficou triste quando deu-se conta do que passava. não lembrar do início pode ser traumatizante e por um tempo foi - ele chorou no meu rosto o que poderiam ser lágrimas de trauma, mas era de fermentado escocês mesmo. ou, pode ser engraçado: terminada a cena preencheu os restos das horas rindo largo, por todas as sobras.

era um homem loiro, como muita barba, um tipo que sabia apostar. depois de uma semana viajaria para o Chipre à trabalho, trabalho é claro que encontraria depois de chegar.

acho que dormimos juntos porque caímos no mesmo lugar. por um momento, experimentei essa sensação de começo de impossível acesso. do controle. de não ter nada antes de mim. em nossa proximidade a condição dele me vazava pelos caminhos do pescoço.

essa sensação de tábuas soltas, embaixo da cabeça, pó de noite, uma goma de mascar gravada na nuca e as costas tortas como se tivesse saído de um barril.

acordei sozinho no chão. ele já tinha ido,  nunca mais o vi. no outro dia tive que ir ao cabeleireiro. era a primeira vez que raspava a cabeça.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

segunda-feira, 12 de maio de 2014

loja das cousas II

O TERNO

é de manhã. todas as lojas da rua ainda não sabem disso. mas na loja das cousas é diferente. ela já sabe que hoje nenhum avião caiu. que a prefeitura ainda não chegou na esquina da Euverim com a Gorbedo. que não está chovendo, o que não quer dizer é claro que não choverá. a campainha toca. um homem entra.

ele é alto e tão magro que sua altura duplica. em uma mão carrega uma mala. na outra um aperto de mão.

está corretamente bem vestido nem a primeira metade do século XX. gravata. calça executiva. porém o terno. o terno está completamente destruído. esse detalhe se destaca em tudo.

o homem do século passado se aproxima do balcão e diz:

- eu quero que este terno volte a ser como era antes.

- e como ele era antes? - o vendedor responde.

- não havia um furo sequer. um furo. não havia.

- não. eu quero dizer antes quando?

- entendo o senhor. antes quando o comprei. era domingo. três anos atrás eu voltava para ver minha ex-mulher, ainda minha esposa, com uma roupa nova e um buquê de flores silvestres. antes como naquela tarde de domingo.

o homem atrás do balcão então faz o pedido.

- então me dê seu terno.

o mesmo homem então pega o trapo empoeirado e o coloca no lixo. ele diz:

- durante a noite de hoje ele terá sumido definitivamente. o mandarei queimar e não sobrará nem denúncias. agora pode ir embora.

o homem alto agora está definitivamente bem vestido. ele não entende o que acontece mas obedece. sai pela porta da loja das coisas e ainda é de manhã. uma linda manhã. mas talvez chova.

domingo, 11 de maio de 2014

formas de sair por Lirina Paulle

em Sang-Soo

"e se não viesse ninguém?". essa é a frase, ou melhor o nome do franco-atirador, que não a deixavam dormir. amanhã todos estariam a esperando. o livro na vitrine. a capa em tamanho fantasia atrás de uma mesinha onde aconteceriam os autógrafos. essa cidade do interior.

havia uma mulher absolutamente elegante perto da porta. com um grande casaco de tecido esponjoso que ia quase até os pés. estaria ela nua? perto do bar um senhor parece obedecer a sua gravata borboleta e age educadamente. o conhece? talvez um antigo professor. talvez alguém que pensa que a conhece. de fato lembraria de alguém tão delicado nos detalhes como as meias tribais entre o figurino preto. perto da porta um tipo consideravelmente gordinho, com aquele tipo de barriga que ataca os seres humanos de sopetão quando a juventude deixa a porta aberta, e por isso, vestir os antigos botões é tão difícil como agora se percebe. ele parece importante. duas. três. cinco pessoas olhando para ele só ressaltam o quão importante ele deve ser. 

não conhece ninguém. ainda bem. a sala está lotada. ainda bem. agora pode dormir. agora sente sono e descansa as preocupações sobre o lenço de seda que leva dentro da bolsa. o lugar parecia cada vez reduzir de tamanho. como se a sala fosse um bote de emergência. “Bote de Emergência”, pensou alto. gostou do tom novelesco. agora pode finalmente fazer outras coisas. como por exemplo ir embora daquele lugar.

ela está perto do caixa. de onde está olha facilmente as notas entrarem e saírem numa troca que julga injusta. injusta. seu cabelo está na altura dos ombros mas ainda não os alcança. dependendo do movimento, um leva os atinge e ela senti isso, cócegas. cócegas consigo mesmo. observa. a fila de autógrafos está grande. umas 30 pessoas. um jovem entra. ele esta de jaqueta. parece estudante. possui as duas sobrancelhas na mesma altura por isso ainda não é velho. 

"quem está autografando?" ele a pergunta.

"Lirina Paulle" responde se lambuzando no próprio nome em letras demoradas. 

"quem é essa?"

"essa sou eu"

o jovem então envelhece alguns minutos porque agora sim, ela pode ver, há uma ruga entre os olhos. culpa dela.

"mas se você está aqui, quem é aquela lá assinando os livros e tirando fotos com pessoas de cinco sorrisos?"

"Lirina Paulle" ela insiste. "aquele também sou eu"

o jovem e a ruga desviam o rosto como quem está pronto para terminar o assunto saindo por uma porta fechada. mas ela é rápida.

"você quer tomar um café? me desculpa, já passa das sete, pode ser uma bebida de verdade. vinho?"

ela agarra a jaqueta dele antes que uma resposta a afaste. agora estão fora da livraria. no mundo. e está mais jovem a liberdade.

§

a fila de autógrafos está grande. umas 30 pessoas. um jovem entra. ele esta de jaqueta. parece estudante. possui as duas sobrancelhas na mesma altura por isso ainda não é velho. 

"quem está autografando?" ele a pergunta.

"Lirina Paulle" responde se lambuzando no próprio nome em letras demoradas. 

"quem é essa?"

"essa deveria ser eu"

o jovem então envelhece alguns minutos porque agora sim, ela pode ver, há uma ruga entre os olhos. culpa dela.

"e porque não é?"

"porque estou pagando 150 reais para aquela moça de terno turquesa seja Lirina Paulle"

"qual é o motivo de uma coisa dessas? isso não faz o mínimo sentido"

"olha se as coisas fizesse sentido eu não teria escrito um livro. detesto aparecer. detesto ocasiões como agora. essa é a verdade. satisfeito?"

"você é estranhamente diferente. há um bar aqui do lado que tem música ao vivo" ele diz enquanto oferece tudo que tem naquele momento, o seu braço, onde o que tudo indica é uma saída para aquele lugar. ela não lembra que as pessoas ainda usavam jeans da cintura para cima.

§

a fila de autógrafos está grande. umas 30 pessoas. passaram-se apenas meia hora. está cansada. na noite anterior viveu entre a cama e o banheiro. à espera que o tempo passa-se e levasse com ele esse nervosismo. como odeia dias como esse. olhar para as pessoas que aguardam uma surpresa e as verem esvaziar os balões. não conhece essa gente. talvez nunca a conhecerá. não entende que tipo de gente a lê. ela detesta o livro que assina. "este livro sou eu depois de engordar os quadris e levar três ex-maridos nas costas. você deseja ver as pegadas? página 56".

entre uma e outra assinatura, entre um e outro flash, ela se distrai com uma mulher. ao lado do caixa, perto da porta, perto da fuga, essa mulher com cabelo channel parece estar completa. ri sozinha. gostaria de estar exatamente no lugar de suas roupas. entre os ombros indesejáveis presta atenção. um jovem entra. ele esta de jaqueta. parece estudante. possui as duas sobrancelhas na mesma altura por isso ainda não é velho. tudo isso vê de longe. parece estar ali. ele puxa papo com a mulher. parecem não se conhecer. ela está presenciando um encontro. algo realmente está acontecendo ali. de verdade.

desejou ser aquela mulher por um final de tarde inteiro. quando a sessão de autógrafos chegou ao fim o desejo cessou. ela já foi aquela mulher. a diferença é que já escreveu tudo sobre ela. e pegou sua mão, a dor de sua mão direita escrivã, e foram para o hotel.

a foto

1. não sei quem era aquele francês 2. blusas cinzas são muito sinceras no verão 3. aquele colar indiano encurtou de tamanho 4. a de vermelho não estava bebendo porque 5. a de óculos estava  bebendo muito porque 6. sou a única de sapato 7. nesse dia alguém voltou descalço. 8. todos nós menos o francês acordamos no mesmo lugar onde a foto foi tirada 8. estávamos sorrindo 9. sorrindo não felizes 10. nenhum daqueles cabelos existe até hoje 11. provavelmente houve uma hora na qual falamos sobre microfísica sem propriedade 12. sabe nenhum de nós escapava da recuperação em matemática 13. a latinha de skol é eterna 14. de 4 pessoas 1 não mostrou os dentes 15. quem tirou a foto é alguém que não poderia ser qualquer um

quando você não nasceu

querido filho essa é a história de quando você não nasceu. porque o ano era 1989 portanto era uma ponte não um lugar. teu não pai vinha de uma família que colocou o rio dentro dos canos e portanto tomava banho em uma cachoeira falsificada de chuveiro. convenhamos que isso é uma coisa perigosa. tanta natureza assim. não conseguia viver com tanto. meu estômago dos olhos, fraco. este foi o ano que eu conheci teus não avós. que eu descobri que a cor verde não é o bastante para descrever uma árvore. que os filhos de imigrantes italianos tem um tipo de rosto que com a idade se assemelha com a terra arada, antes do plantio. que entendi que não sabia nada de poesia mas quando ela saía dos lábios de teu quase pai me dava vontade de fazer sexo. este foi o ano que qualquer chance que você tinha de nascer desapareceu. basicamente por isso:

esta sou eu. meus cabelos são pretos e quem os carrega são mais os ombros que a cabeça. antes eu tinha dúvidas mas agora atesto sou mulher. porque um dia, a primeira vez que bebi, me apaixonei por uma motocicleta com 60 cilindradas. só que o dono vinha junto. a motocicleta me seguiu até porto alegre dois meses depois baseado num bilhete não meu mas sim escrito pelo dia em que bebi. lá estava meu endereço. agora essa sou eu: olha para janela e vejo aquela honda cross. cintilante. coloco as mãos nas pernas e tenho uma nova abertura, ali, onde os lençóis de carne antes não davam mais nenhuma surpresa: eu tenho um túnel aberto para dentro de mim. saber que crescemos é ter uma rodovia, no meu caso autoestrada própria. sou mulher.

claro que achei muito bonito isso. eu e teu quase pai imerso em pás e despesas de terra salteando por aí. movendo fundos e mundos abrindo a barriga do dia e inserindo caminhos.chegou um desses dias que eram anos ele me veio com essa uma aliança. teu quase pai tinha duas armas carregadas onde as pessoas comuns tem apenas olhos. se eu tivesse pego aquele anel prateado e posto no meu dedo, no futuro, você também teria esse tipo de calibre capaz de conseguir qualquer coisa. eu sabia. meu quase filho teria as sobrancelhas mais lindas que a memória dos rostos era capaz de lembrar. mas ao invés de oferecer meus dedos, depois todas as formas de carregar minha juventude com eles, eu corri para dentro do bolso esquerdo de minha mãe, a pedi para que me livrasse os ombros sacrificando os cabelos, e disse para mim mesma: amanhã serei eu só que careca e desembarcando no rio de janeiro com o objetivo único de viver em um avião.

o motivo de você não ter nascido é que eu fugi o mais rápido que as turbinas do meu medo foram capazes e preferi não ter cabelo. imagino que era o meu túnel segurando aquela tesoura enquanto a queda dos meus cachos se fazia em sujeira no chão. hoje tenho consciência disso.

no rio de janeiro fiz aquilo tudo. usei ray ban, assisti a péssimos filmes patrocinados pelas forças aéreas americanas. chorava tanto que se chorar fosse criar linhas de algodão ao invés de água salgada nunca mais teria que comprar roupas ou lençóis. em quatro anos sofridos eu pilotava um boing já para uma companhia aérea do interior. as pessoas me chamavam de capitão e esqueciam meu verdadeiro gênero. eu gostava, mas apenas quando estávamos no ar. essa foi minha vida.

então você pode pensar que a culpa foi toda minha. talvez. por anos, quando comecei a fazer viagens aéreas longas, 5h, 6h sobre o mar, eu pensava em ti. pensava em você meu filho que precisava nascer. duas foram às vezes que arrumei as malas ou preguei a foto de teu quase pai embaixo das pálpebras na hora de dormir e pensei "preciso fazer meus óvulos encontrarem esse homem". mas não fiz nada disso. por que? eu pensei ter o tempo todo do mundo porque pilotava num avião e podia chegar a qualquer lugar muito rápido. com 30 anos sabia como eram as luzes em bangkook, como nunca desligavam as luzes em hong-kong. em uma mesma semana acumulava continentes e sabia pedir um xis bacon em cinco línguas diferentes.mas voltar ao rio de teu quase pai. voltar ao verde. voltar a comida italiana que alimento a gerações a sobrevivência do teu quase sobrenome paterno. isso eu não consegui. parecia mais longe do que as letrinhas miúdas de um comercial de televisão.

hoje você não nasceu e a culpa é minha.

porque seu quase pai está em algum lugar raspando o rosto contra o vento, contra o dominó do frio e calos, na tentativa de ficar velho. amando as pessoas nas reticências que elas nem sabem mas existem ali entre uma respiração e outra. ele queria muito que você nascesse e dizia coisas do tipo "ele terá as costas iguais as tuas". como você nunca nasceu eu não sei como são minhas costas.

quando pensou em seu quase pai não posso mais acreditar em termômetros ou termostatos. fico quente. não é todo mundo que faz nossa pele mudar de cor. se você tivesse nascido essa seria o tipo de coisa que te diria: "quando sua pele mudar de cor fique atento e se for por causa de alguém não a deixe ir facilmente". uma vez recebi uma carta de seu quase pai. essa é a história dele:

quando mandei embora os cabelos e virei uma desaparecida, o cabelo do teu quase pai também diminui, só que involuntariamente. eles caíram sozinhos. ele estava careca e sem vontade de usar as próprias roupas por isso fez algo que nunca imaginaria, ficou rico. vendeu absolutamente tudo que tinha porque não queria mais nada. não queria viver. nessa época era escritor por isso o pensamento suicida era normal depois dos sonhos. morando com a mãe, sem nada, acordando com o susto do galo no campo ao ver o sol, estava com um bom dinheiro guardado. seu pai estava decidido: vou virar alcoólatra. colocou a roupa mais dormida e foi ao bar, o único do distrito. nessa mesma noite seu plano foi por água abaixo. porque ao começar a beber conheceu um homem. o homem disse: "contâiners". seu quase pai gostou da palavra porque não sabia soletrá-la e isso era importante para cometer um erro. ele disse ao desconhecido: "contâiners? eu topo". nos próximos dez anos ele seria uma pessoa sóbria, sócio de uma empresa que criava grandes caixas para o mundo carregar suas coisas por aí, estava rico e nem tinha quarenta anos.

a carta que ele me mandou foi depois de 20 anos de meu sumiço. ele dizia: sempre sentirei sua falta porque casei contigo mesmo tua mão se tornando uma fugitiva. em 20 anos aquela carta era tudo que seu quase pai escrevia. quando o abandonei matei o escritor e coloquei em um poste em praça pública para dar de exemplo aos seus anos seguintes. "penso onde você está. se seria absurdo não saber como está seu rosto mas querer que sejas ainda minha mulher". aquela carta era tudo que eu sempre quis. todos meus arrependimentos poderiam acabar. eu poderia voltar. ele vir morar em Guanabara. você poderia nascer. mas dei à luz a um susto depois de lê-la. foi ele o que nasceu. falava para mim mesma: "amanhã farei algo". o susto era esperto. sempre mudava a data de amanhã e eu caía.

o que vejo agora é a cidade de cima. vejo porto alegre do avião. esse corpo parado à mercê de tudo. onde você estaria se tivesse nascido? onde botaria a mão se sentisse medo? como seria sua relação com os espelhos ao acordar? você olharia um prédio com os narizes abertos como quem sente a arte e estudaria quem saber arquitetura? você viria nos visitar no natal, eu e teu pai, e os dois deixaria duros no carpete por nos derrubar com suas novidades? por suas formas surpreendentes de ver uma argila virar o que você quiser? 

você está por aí e sinto muito não ter te trazido para uma época em que a internet é ainda algo possível de ser desligada.

sinto que sei tudo sobre o amor só que não possuo os dedos para guardá-lo.

quando você não nasceu seu pai ficou careca.

quando você não nasceu eu nunca mais me senti à vontade no chão.

e nunca mais retornei.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

loja das cousas

BALCÃO

um homem entra na loja. se aproxima do balcão. diz para o outro homem, aquele do outro lado:

- quero comprar este balcão.

o outro homem está surpreso. mas seu óculos estão no mesmo lugar. valeram as 400 pratas. ou seria os 50 centavos do chá de planctum? o homem que não entrou porque já estava dentro responde:

- não podes comprar este balcão.

- mas não é uma loja?

- sim. não qualquer uma. esta é a loja das cousas.

- pois ora, então quero comprar este balcão.

- se você comprar este balcão não vou saber onde tenho que estar. perderei horas de trabalho pensando. tenho um relógio fraco. um sopro e duas safenas.

- neste caso posso roubar este balcão?

- o senhor é livre.

- sou?

- é

- neste caso, muito obrigado.

o homem que entrou na loja agora é o homem que foi embora da loja. o balcão continua. portanto o homem atrás. ele olha para uma frase emoldurada na parede na qual está escrito: "se não fosse assim não seria a loja das cousas".

romances históricos

hoje suas mãos não podem ficar nuas. você usa luvas. dirige todo dia para um lugar chamado Almeida e Guto Entulhos. você usa um chapéu de plástico amarelo que sempre achou idiota os políticos usarem na tv não porque eram frágeis para sugerir proteção mas sim por não terem nada de valioso para protegerem. essa é você. macacão tão anos oitenta. empilhadeiras. um crachá com o sobrenome de um marido que te deixou por uma fita pornô como dois braços e pernas. você. difícil lembrar daquele tempo. houve um tempo. você sussurra só para o ouvido esquerdo porque o direito não é confiável. ainda. algumas coisas nunca mudam como a desconfiança dos ouvidos. outras sim. essa é você. é inverno e está no sul. note suas mãos. luvas de lã com lhamas no diminutivo. não. não há luvas de lã. você não consegue escrever com elas. escreve. é jovem. tem cabelos cumpridos porque sabe que o tempo se encarregará de cortá-los. como é bonito o diâmetro de uma gastrite nascendo. toma café. muito. você está na aula de escrita criativa. esse tempo em que mentia a idade para entrar na aula de escrita criativa. "na verdade professor eu tenho 19". depois do susto todos voltam aos romances históricos. menos você que se apaixona. quando isso acontece não consegue acordar cedo. olhar para o professor e seus sapatos de van gogh e dizer "eu amo romances históricos". (mais tarde descobrirá que aquilo é heidegger e ficará brava). porque quando está apaixonada e se é 19 anos não se pode dormir de conchinha com a narrativa linear. tudo acaba e manda trazer um par de meias que não fale português. ele vem do uruguai. pronto. agora pode voltar às aulas. você diz: professor voltei. agora já sou mais velha. 10 anos mais. porque me apaixonei e tive de importar meias do uruguai para não pisar no mesmo lugar de novo. já posso escrever romances históricos. ele te aceita. essa é você. aula de escrita criativa. o professor ainda ama van gogh. você viu o filme dos anos 50 mas parou antes dele virar um pintor. para você ele é um mineiro cristão. nessa época um amigo seu volta da holanda. diz: "vi van gogh mas me identifiquei com theo". não lembra do que ele te disse. só dos encantos de visitar a heineken. gosta de cerveja. ele te dá um caderno e te escreve algo bonito. então pensa: "serei velha porque terei esse caderno e um dia o papel ficará amarelo". um dia bebe muita heineken e te roubam. na delegacia "levaram as pérolas falsas da vó, sagarana do joão e minha velhice."essa é você. está na aula de escrita criativa. 10 anos. contudo não escreve. "não tenho velhice". "escrever é colocar o colchão na rua e tentar dormir". um dia você acorda em esparta e chega na aula. olha para cada um dos romancistas históricos. lê algo. depois fala: é que é um poema. você fala algo sobre braços encapados. ninguém entende. e pior. ninguém quer entender porque há silêncio. o silêncio coletivo é como subornar o tempo. perto da escola de escrita tem um parque. se esconde lá embaixo de uma árvore. no futuro uma daquelas árvores matou alguém no domingo. você meio que anteviu isso. no seu desejo todas aquelas árvores cairiam no mesmo tempo. e nem sinal. bolufas. de você. do seu texto. agora que abandonou a aula com aquele professor não sabe como medir se o tempo realmente passou. não sabe mais nada. gostaria de ficar no colo de uma prostituta e chorar. mas isso seria estranho. quando não estava de ressaca e o mundo parecia estar caindo para a direita alguém te disse: "se ficar o bicho pega se correr o bicho". não ouviu o final da frase então ficou. essa é você. de capacete amarelo. macacão jeans. diens? não. jeans. o dia vai acabar porque o expediente acabou. está voltando para casa. todos tem uma casa inclusive as tuas luvas também têm. é lá que vai acordar. esse é o jeito de saber que não morreu. de noite às vezes tem esse sonho. está com a empilhadeira. o lugar: uma biblioteca. você junta todo esse entulho mas não pode ver o que é. há muito muito pó. finalmente você chega perto e percebe. são romances históricos. romances gaúchos. históricos. o sonho acaba. e o que era para ser coração é uma gota em queda pela garganta. bem que poderia escrever isso. mas ao invés prefere cuidar melhor da dieta. beterraba, rabanete. essas coisas.

domingo, 27 de abril de 2014

como David e Géneve fazem um começo

PRAÇA LA VITTA

se conheceram quando David descobriu que seus pés tinham crescido demais, depois de fazer 33 anos os pés tinham crescido ali mesmo no intervalo de um dia. consequentemente, teve que os tirar os sapatos e deixá-los nas mãos. foi quando viu um homem sem sapatos mas com sobretudo que Géneve viu David. embora quem ela viu mesmo naquele momento ainda era apenas um homem sem sapatos mas com sobretudo.

NOITE

foram tomar um conhaque já que era noite. caso contrário seria vinho. só que David disse: são seis horas ainda. Géneve respondeu que seus óculos não funcionam bem. isso não existe, um óculos não pode antecipar a noite ele disse. então ela entregou sua armação que acabou no rosto dele. é verdade ele fala. nessa hora o que era para ser conhaque sai junto com essa frase de sua boca. mas era saliva e é assim que Géneve tem seu primeiro contato com a saliva de David. depois de uma verdade e à distância.

FIM DO MUNDO

Genéve tem pena dos pés expostos de David. mas ao invés de oferecer-se para ir com ele a uma loja comprar algum novo sapato ou tentar encaixar algum tênis de algum de seus ex-namorados, para enfim ajudá-lo, não faz nada disso. mas sim retira delicadamente suas próprias botas e pronto. agora estamos iguais e por isso podemos falar de tudo ela disse. David sabe o que aquilo significa.  Géneve é uma mulher especial porque começa a ficar nua pelos pés. além de tudo, como não confiar em alguém com joanetes? você viu que semana passada era fim do mundo? disse David depois de arrumar seu cachecol como quem finge que sabe o que está fazendo. não, ela retrucou. o mundo está sempre atrasado. ainda bem.

VERMELHO

Genéve falando:

semana passada descobri que meu último namorado está vendendo meu cabelo na internet. existem pessoas que compram cabelos, fios de outras pessoas. existem pessoas que vendem cabelos, muitos fios, de outras pessoas. e uma delas é Jackson. não lembro de tê-lo visto nenhuma vez os pegando. não sei como fez. mas de fato são meus os cabelos. porque tem alguns fios que possuem mais de três cores. e estes são meus cabelos: indecisos.

David falando:

a única vez que estive com alguém por mais de um par de meses foi há anos.  o pai dela tinha uma fábrica de gravatas. ela gostava muito de se vestir. impecável. era bonita, mas obcecada. principalmente por gravatas. como era mulher, me vestia com elas. ficavam em minha volta, com seus nós. não há na vida algo que faça gravatas algo suportável.

RIO DE JANEIRO

estão no mesmo táxi. cada um de um lado como se o equilíbrio do carro dependesse disso. algo depende disso. medo. uma vez tive um amigo que por um tempo falsificou dedicatórias para sobreviver. isso quando morei no brasil. comprava os livros, depois revendia bem mais caro. ele conseguia fazer uma assinatura igualzinha a do Drummond. sabe, Drummond de Andrade? Genéve responde sorrindo. isso porque há uma preocupação ali. a de que ele continue falando. ela quer que ele continue falando como quem a retira dali, a retire daquela cidade. está aqui, atrás do vidro deste automóvel, não é Nápoles. agradece retornando aos sorrisos.

PASTELARIA

David quer se acostumar a não saber as coisas. quer que alguém o mostre como não saber. este alguém poderia ser Genéve. como fazer isso. quando ele pensa profundamente normalmente algum ruído escapa pelos ouvidos. o que você falou pergunta ela. comer é sempre a melhor coisa a se fazer quando não sabemos o que dizer. por isso estão nessa pastelaria. esta pastelaria onde com sorte David manchará de gordura as mangas de sua camisa o que servirá como prova desse dia. as coisas saem melhor do que esperava porque essa mulher em sua frente pede para o garçom dois pasteis de vento. isto me lembra a infância ela alega. então os dois se sentam para jantar a infância juntos. engolir é a maneira mas rápida de falar todas as coisas.

VERÃO EM SAL DOMIKEY

foram-se os avós, ficou a casa. a casa de Genéve tinha as paredes pesadas que faziam recordar tudo que não era vivo. está na família por gerações e agora a habito explica para David. estão sentados em frente a lareia. criando aquele momento. aquele momento para David é como adestrar um ser marinho para uma cidade grande. aquele momento para Genéve é como tentar tirar uma fotografia onde caiba o mar. em outras circunstâncias haveria silêncio e ele seria cronometrado pelas pálpebras. porém há aqueles pés. quatro pés extremamente sujos. quatro pés extremamente deles. nunca a sujeira foi tão importante. se levantaram os dois e se puseram a caminhar por toda a casa. cada espacinho minúsculo ou gordo. depois, suja toda extensão do piso, colocaram a cabeça de um dentro da do outro. a de David entrou primeiro. é um belo lugar que você tem aqui ele disse. Genéve agradeceu. daqui a três anos será verão e eu saberei disso não por causa do calendário. David concordou. era a primeira vez que estava dentro da cabeça de alguém.

os Mários

quando Mário Prado Rodrigues chegou na cidade do Porto a primeira coisa que fez foi conseguir uma lista telefônica. como não conhecia ninguém, pensou, deve ter pelo menos uma pessoa com quem possuo algo em comum. por isso procurou nas páginas amarelas por alguém com o mesmo nome que o seu. Mário Prado Rodrigues morava na rua Pena Ventosa, número 401. "acredito que tenho algo de seu interesse", o disse Mário no interfone. a casa era bonita e as flores pareciam ter nascido por conta própria. na sala de estar, entre pastelinas e chás de erva-forte, ele pensou em como seria ali mesmo assassinar Mário Prado Rodrigues e pegar para si toda sua vida na cidade do Porto. mas o homem era muito bonito para ser um homem morto. além disso naquela altura o outro Mário, aquele com sotaque, já estava em suma apaixonado. pensava assim: como seria fazer sexo com Mário Prado Rodrigues e pegar para si todo aquele corpo. e ficaram os dois ali a viver daqueles jeitos a mesma coisa.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

hipopótamos

Aconteceu que Eulálio estava triste. Mas como não era novidade ele estar triste, os amigos tiveram que encontrar outra forma de dizer isto. Por isso quando ligavam-se, na posse dessa tecnologia, uma das poucas que faz os olhos sobrarem, disseram-se uns aos outros: "Eulálio está a dar comida aos hipopótamos".

A palavra hipopótamo é muito importante aqui. Notem isso. Ninguém mais a usa, talvez pelo fato que ninguém os veja. Por isso o choque. Por isso a retórica dos amigos ouvintes: “Então Eulálio não está nada bem”.

De todos, fora ele o que continha mais crises. Se houvesse um guarda-roupa de crises, este seria o de Eulálio. Exigente por um cômodo só para ele, estantes delas dobradas, guardadas, conforme o ano, o uso, a cor. Mais importante que superar era não esquecer. Seguir a se vestir, mas sempre, diferente.

Eulálio é dessas pessoas que vai te visitar no emprego, está a olhar sua escrivaninha. Olha para seu calendário, os dias passados riscados com os xizes tal como nos ensinaram a fazer. Inclina a cabeça e te faz perguntas. “quem foram os que morreram?”. “É desses seres negativos” poderia nos dizer Pedro. “Porém Pedro é desses seres negativos também”, poderiam retrucar Marisa Horta. Mas tanto Pedro como Marisa Horta transaram apenas um com o outro por quatro anos e essa é uma condição que não faz nem de um nem de outro um seres confiáveis.

Foi Gomez que encontrou Thiago. Estavam a combinar um churrasco. Mas escondido de Hila e Correia, porque os dois são vegetarianos. Gomez mencionou as palavras: "Eulálio", "hipopótamos". "Como assim?" disse Thiago.

“Encontrei na vendinha hoje. Há horas que não nos vemos. Contudo ambos precisamos dos alimentos para sobreviver. Ele estava a comprar ervilhas. Quem é que compra algo que não gosta?”

Mas foi Thiago que resolveu a situação. E ligou para Tamara com quem Eulálio trabalhava. “Eulálio não está vindo trabalhar”, ela disse. Tamara logo ligou para Hila. “Somos tão chegados Eulálio e eu. Dormimos um no sofá do outro e empresto meu apartamento na Barra quando quer impressionar uma garota só uma vez. Por que ele não me conta o que passa?” “Quando estamos a nos sentir mal, esquecemos quem são as pessoas que nos emprestam os apartamentos. Principalmente Eulálio”. Correia, ao descobrir do churrasco, chega com um saco de pimentões orgânicos como quem não sabe quem acha que ser ignorado é um convite mais empolgante e comenta em voz alto: “Souberam de Eulálio?”.

Se tornando desimportante os pimentões, o coro responde: “Hipopótamos?”

“Sim” devolve Correia aterrisando os olhos dentro dos travesseiros macios do rosto de Hila, sua mulher.

Depois de algumas cervejas Luciano, o amigo taxista, chega direto do trabalho. “Eulálio está mal. É o caso de um amigo que ao que parece não fala mais com ele. Diogo está brigado com Eulálio. Por isso as ervilhas. Por isso os hipopótamos”. Agora os amigos se sentiam melhor porque a tristeza realmente tinha um motivo. Um motivo real.

Se passaram semanas na vida de Marisa Horta e nada de Eulálio na vida dela. Se passaram semanas na vida de Thiago e nada de Eulálio na vida dele. Pedro ligou para Gomez, ligou para Luciano, Tamara. Nada de Eulálio nas semanas de todos. Desapareceu.

Quando Pedro resolveu apresentar a todos a sua mãe biológica, alguém comentou o que estava acontecendo. Inês, a mulher que pariu aos quinze anos e veio a conhecer o resultado do parto 30 anos depois, então os pergunta: "Mas quem é Diogo?". Foi aí, com as paredes do restaurante chinês de testemunha, que se deram conta de que ninguém sabia quem era esse tal Diogo. Diogo, o causador de problemas.

Correia e Hila, ao arranjarem assuntos para desviar a insônia e fingir que não percebem a falta de desejo que os separa na cama, que se deram conta. Eulálio na verdade tem poucos amigos. Eulálio na verdade só tem a nós. Isso soou muito estranho para os dois e no outro dia mesmo, Correia – o preocupado, resolveu apimentar a preocupação de Luciano. “E Eulálio disse de onde conhecia esse Diogo?”. “Não. Mas eram muito íntimos. Coisa de anos. Dez pelo menos. Uma das poucas coisas que lembro dele dizer era que agora teria de almoçar sozinho e isso era uma desgraça porque em parte o que o ajuda a comer é a vontade de falar.”

Tamara ficou preocupada. Ela temia o pior. Por isso convocou uma reunião. E em seu apartamento serviu feijoada a todos. Depois disse: “Tenho uma teoria. Mas ela é ruim. Acredito que tenha acontecido o pior. O pior embaixo dos nossos narizes. Logo nós que pensamos não se tratar de uma seriedade”. Naquele momento os feijões foram mal mastigados pelo impacto sombrio da voz. E mais tarde, seria difícil fazer a eficiência da higiene bucal funcionar facilmente antes de dormir. Aqueles feijões sobreviveram intactos pela manhã seguinte.

“Pois eu que almoço com Eulálio. Não esse tal Diogo. A partir disso que os digo. Diogo não existe”. Na cabeça de Thiago isso faz sentido. Inês, que depois de 30 anos resolveu entrar na vida do filho logo em um momento de drama, até ela, acredita. “Então é bem pior do que achávamos ”, comenta Gomez. “Sentir falta de alguém que não existe, deve ser dolorido” pensou Pedro mas não disse nada. 

Eulálio estava louco. Um louco triste. O pior tipo.

Por serem os bons amigos que eram todos foram embora com a mata crescida nos olhos. Estavam preocupados. Resolvidos a fazerem algo. Era preciso achar Eulálio. Era preciso ajudá-lo. Antes que fosse tarde.

A busca por Eulálio não foi nada bem. Ninguém atendia na casa onde ele supostamente morava. Nenhum dos amigos tinha o telefone de seus parentes. Ninguém no trabalho ouviu notícias suas. Estavam ilhados. Não havia o que fazer. Eulálio, o louco, Eulálio, ou sumido. Estava sozinho. Então aconteceu algo estranho.

Pare de tremer Hila. Agora conte o que você estava dizendo. "Eu estava dizendo que fiquei com saudade de Eulálio. Então o procurei nas fotos de nosso casamento, meu e do Correia. Queria lembrar dele. Lembra que ele chegou atrasado? Deu aquele barulho na igreja. Então. Acontece que Eulálio não estava nas fotos". Ninguém deu muita importância. Eulálio não gostava de tirar fotos, sim sim, era isso. Poderia ser.

"Sinto muita falta de Eulálio. Sentia que podíamos conversar sobre tudo. Sinto falta daquele cabelo vermelho, que ele coçava sempre que arriscava dizer uma palavra que nunca tinha entendido bem seu significado" disse Pedro. "O cabelo dele é loiro" respondeu Thiago. "Eu sempre achei castanho" disse Marisa Horta. "Gente, por favor, Eulálio é ruivo" alguém comentou.

Correia mandou todos ficarem quietos. Deu um gole no copo que varreu as moléculas de álcool. Depois, com o pó do alcool escapando de sua boca fez uma pergunta: "Qual foi a última vez que vocês viram Eulálio?"

Silêncio.
Tosses.
Silêncio de novo.

"Aquele dia na vendinha, não sei se era ele. O homem que vi com as ervilhas era moreno. Agora estão a dizer que era ruivo. Não entendo. Acho que não era Eulálio", desabafou Gomez.

A verdade é que ninguém lembrava de tê-lo visto. Sim, frequentemente conversavam a seu respeito, suas picaretagens, suas ideias absurdas, seus problemas sociológicos. Mas vê-lo assim, digamos, tocá-lo, abraçá-lo, fazia tanto tempo que a memória não vinha.

"Não é possível. Foi Odila que me apresentou Eulálio. Namoraram os dois. Tenho certeza". "Não se faça de tonta Tamara, Eulálio era gay. Conversávamos sobre isso quando todos vocês iam dormir." disse Gomez. Foram então que todos olharam para Luciano. Luciano o taxista. Luciano o informante. "E você, o que tem a dizer? Foste o último a vê-lo não é mesmo?" se ouviu partir de alguma boca.

"Ver eu não o vi. Mas li uma carta que ele mandou."

"E onde está a carta?"

Aquela carta poderia mudar tudo. Não havia fotos. Não havia mais nada. Graças a deus a correspondência para alguns ainda não é matéria de extinção.

"O taxi. Mandei limpar. A carta foi para o lixo. Ou para sabe-se lá onde"

Nesse momento mesmo em silêncio todos ouviram um ruído. Era o som de algo se elevando. Como os tremores que antecipam o emprego de um vulcão. Algo estava saindo fora do lugar. Aquilo parecia e muito com o medo quando ele aparece em lugares mais baixos que suas medidas. 

"Puta que pariu, como a gente faz para saber se alguém existe mesmo?" gritou Thiago.

Os outros nada disseram. Porque na verdade, não sabiam. Porque na verdade temiam que não soubessem mais de nada. Ficaram ali parados, todos na sala, a espera do sono. Mesmo sabendo que esperar o sono, nessas circunstâncias, é como esperar que nossa barriga diminua de tamanho depois de resolver alguma uma difícil equação matemática ou livrar-se da declaração do imposto de renda.

domingo, 20 de abril de 2014

depois foste embora com o rio de janeiro no guarda-chuva

1.
quando bergman ia filmar sempre usava uma boina. Isso acontece talvez porque a ausência de cabelo o tirava a confiança. Isso acontece talvez porque é por causa da boina que ele sabe que está filmando. Isso acontece porque os últimos cabelos ele não quer deixar pelos ares assim como os primeiros que o abandonaram em troca da não volta. Isso acontece porque é a boina que dirige e não ele.

no fim de um dia de trabalho Bergman se encontra com sede. Há uma mulher. Há uma noite. As duas o procuram mutualmente. Normalmente o encontram embaixo da boina. Às vezes gostam. Nas outras gemem.

2.
mas isso nada tem a ver com boinas. Ou com bergman. Ou com cinema. Esse texto tem a ver com chapéus. Como ficaram meus chapéus depois que você saiu daqui. Aqui seus relatos:

O QUEPE DE MARINHEIRO

O quepe de marinheiro descobriu que um dia seria velho. Descobriu que um dia descobriria o sexo. Estando velho. Vemos aquele filme lembra. O chapéu tem medo de não viver aquela vida de Gloria. Donna Summer aos 60 anos. O acalmo colocando-o em minha cabeça, digo baixinho: quando envelheci percebi que era mais burra só que de uma forma diferente. Numa forma numérica.

O QUEPE DE AVIADOR

O quepe de aviador afirma que você tornou a família dele muito mais interessante. Não consegue mais olhar para a matriarca e pensar: essa conversa é tipo rebobinar só que não cabem em uma televisão. Quando era de manhã o quepe desceu e viu a mãe com agulhas e folhas na mesa. Pensou: mamãe está costurando folhas. Gostaria que essa fosse uma prática diária. Teve muito orgulho que nem estragou voltando a realidade.

O CHAPÉU COCO

O chapéu coco viveu uma experiência muito feita por surpresa. Houve uma pessoa. Uma pessoa do passado. Voltou. Na casa só havia pessoas do presente. Esse passado trouxe chocolates e uma cara de passado o que é incrivelmente assustador. Ela contou de sua nova vida feita com fios dentais e anti-séptico nas bordas. Convenceu felicidade. Nada disse do acidente. Todos escutaram pasmo porque aquele era um momento sem reprise. Inacreditável para as pálpebras. Ela chorou. Ela leu um longo discurso com as partes do corpo. Foi servido café. Trocado planos futuros. O mais velho da família então abriu os dedos e levantando-os acima retirou parte do telhado. Quando ela voltou para casa sua bolsa fazia barulho pelo movimento deles. Acho que agora dorme melhor.

O CHAPÉU DE GANGSTER

O chapéu de gangster passou por umas. Era almoço de família. Pela primeira vez alguém faz reverência a realidade e lógica das coisas e vai parar no hospital. Antes os novos velhos discutem. Enquanto isso o chapéu não sabe o que fazer. Sente falta dos tempos que tinha todo o poder armado até os tímpanos. Mas a tia está desmaiada no sofá  onde uma foto caberia bem, ao lado. Naquele balde novo morador do puro refluxo. As verdadeiras fotografias tem narizes mais fortes que os olhos.

A BOINA MADE IN OUTRO PAÍS

A boina made in continua apaixonada. Como se sente muito forte,  quando as pessoas dizem a palavra sangue ela suspira baixinho: xilema. Adoro a ver quando dorme, é uma doçura. Leva à sério a metáfora de olhos versus portas e as arquiva aos quilos. Uma curiosidade: elas sempre dão para o mesmo lugar. Vai entender.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

telefonemas

I

estou sujando a roupa de amanhã. bicicleta. uma mulher não me olha por isso não a esqueço. a roda trava. três reais o saco de laranjas. consertam-se escadas. um cão se perde. penso na família que não tive ao desviar de um buraco.

você me liga.

"lembrou de tomar as pílulas?"
"não as tomo mais fazem cinco anos"
"lembrou o que são cinco anos?"
"sim"

desliga.

II

aguardo ter fome esperando ter sono. o travesseiro velho. um ventilador que só perceberei que funciona no dia do estrago. tenho 23 dívidas que guardo na poupança. esperançoso. poderia haver cheiro de sexo.mas não sinto nada.

você me liga.

"hoje não encontrei uma só pessoa que me conhecesse."
"faz frio?"
"eu poderia ser qualquer um. sempre tive simpatia com a Eslovênia"
"está nublado?"
"é muito pedir para não esquecer um desconhecido?"
"só acho as minhas chaves porque elas caem"
"eu poderia ser um vendedor do Kuwait"
"olha você está com problemas? posso mandar dinheiro"
"problemas?"
"você pode ser qualquer coisa"
"eu não queria ser ninguém"
"era para ser uma viagem. não uma mesa de jantar"
"qual o problema de uma mesa de jantar?"
"elas não cabem na mala"

desliga.

III

cumpro o destino do cigarro por ele e dezembro daqui 20 anos dói. graças a deus existe a falta de pilhas para o relógio. aprendo a cozinhar moranga. nenhum sinal de você.

então o ligo.

"você ainda não me ligou"
"ligo daqui duas horas."

"ok"

desligo.

IV

esse é você me ligando de manhã:

"hoje olhei minha cama ela estava todo bagunçada. então pensei essa é minha bagunça mas não minha cama"
"você está regando as plantas?"
"senti meu cabelo crescer na mesma hora"
"você está regando as plantas?"
"ainda não ganhei nenhuma"

desligo.

V

aqui o mundo ainda não olhou a janela hoje. já eu sim. confundi as datas dos eclipses. você me liga.

"hoje eu vi uma pessoa morrer"
"onde?"
"na televisão"
"na tv não vale. me ligue quando ver alguém morrer"

desliga.

VI

não há nada para ver na sua janela além da luz. descobre que existe um zoológico perto da sua casa. ri. me liga.

"acho que a amei até três de março"
"como você sabe?"
"porque no outro dia era dia quatro de março"
"entendi"

desligo.

VII

estou lendo. perto de mim o ar muda. espero que alguém me ligue e que esse alguém não seja você. minhas costas doem.

você me liga.

"hoje visitei o escritório de Dylan Thomas. fica em Uplands. pode-se pescar de graça. mas os peixes não podem sair do rio"
"são tempos bons para os peixes"
"acho que Thomas concordaria comigo que você está equivocado"

desliga.

VIII

descubro que não sei mais o que é contar uma notícia.

você me liga.

"sonhei que eu ligava para você"
"e o que você dizia?"
"nada eu só o esperava falar"
"e o que eu falava?"
"to esperando ainda"
"nesse caso: ouriço"
"ok"

desligamos.

sexta-feira, 14 de março de 2014

la mer

nós costumávamos colecionar folhas secas.

íamos ao parque todas as quintas-feiras à tarde,  dia da folga do meu trabalho. a buscava de carro. uma casa de repouso onde por mais incrível que pareça era difícil conseguir lugar para estacionar porque para algumas pessoas não era um asilo. deveria ser primeiro um estacionamento, e por último, um estacionamento.

ela nunca lembrava que ia a buscar para nossos passeios. era sempre uma surpresa. quando formava uma surpresa com o rosto seus cabelos pareciam aumentar de volume e eu segurava meus olhos como se eles pudessem escapar junto com um bocejo.

no parque me contava sobre as plantas. ela era dessas pessoas. não sabia nada de plantas. mas no passado houve um tempo que desejou saber. por isso no futuro mentia. mentia o nome delas. inventava características. "essa é a alechos vegetaum", seu maior inimigo é a fuinha. era uma senhora engraçada. 

falava muito devagar quando estava mentindo. olhava para o canto direito como quem busca decifrar uma palavra presa num galho de árvore a milhas de distância. mas eu tinha toda paciência do mundo."as figueiras tem esse nome porque o nome ladeira ainda não tinha sido inventado". e eu ria. ria. um tipo de riso moeda de troca para a calma no próximo sono.

ela era dessas pessoas. não acreditou quando contei que não era uma música, e sim, uma memória do mar. não gostava de Debussy. mas gostava desse tipo de música. violinos, alaúdes. não gostava era do nome.

conversávamos por horas enquanto enchíamos cada uma grandes mochilas com restos arbóreos. folhagens. é muito mais fácil arranjar assuntos quando nossos olhos estão no chão, varrendo o espaços em busca de formas figurativas em pedacinhos da natureza. gestalts primitivas. recolhendo a denúncia do vento. da gravidade.

são assim que nossos diálogos costumam nascer. diálogos rasantes os chamna. ela é assim. gosta de dar nome para tudo.me conta que são frases que costumamos trocar com as pessoas mas que nunca levamos de volta porque não lembramos. elas existem enquanto morrem e são acessórios de suportar o tempo.

mas já eu não acredito nisso. lembro de tudo. só não sei onde guardei.

“essa aqui me lembra um ferro de passar. um que ganhei de meu marido mas nunca usei de verdade. só de mentira. joguei da sacada para assustar um menino que tentava abrir um carro que não era dele porque ele era só um menino. um menino com maçarico na mão. quando a gente trai a utilidade dos objetos eles vivem só de mentira. entende?”

para mim aquela folha era redonda, como um ioiô. mas nunca se sabe. nunca se sabe se na década de 70, por exemplo, ioiôs e ferros de passar dividiam um tipo de familiaridade a partir de um design parecido. os desenhos mudam. as funções que são a parte tediosa, essas continuam.

aquilo me fazia feliz. afinal, trabalho seis dias por semana cuidando de pessoas doentes. dentro de um hospital. entrando em veias de gente que não sei o que possuem atrás de seus nomes mas me confiam o corpo até na hora de tomarem banho me confiam seus pequenos kitnets de intimidades.

quando finalmente possuo um dia só meu para fazer coisas que não envolvem assistir a vida das pessoas se soltando devagar de seus mundos como quem torce para que a massa grude no fundo da panela, e a panela aqui pode ser a metáfora do corpo (você escolhe), prefiro isso. passar meu dia com uma senhora que poderia ser minha mãe.

minha tia.
minha vó.
minha sogra.

mas que de fato não me é nada. 

nós não tínhamos sequer alguma coisa que nos prendia uma a outra. 

foi assim. lá estava eu um dia relendo o classificados de domingo não porque eu precisava comprar um apartamento ou conseguir um emprego mas sim porque creio que é mais fácil saber o que queremos quando procuramos o que não sabemos.

então no banco do parque ela chamou-me de iolanda. iolanda acredito era sua filha. uma filha que ela chegou a ter por poucas semanas, descobri depois, morrendo se conhecer nada além dos equipamentos de um hospital. eu pensei "iolanda porque não".

conversamos muito nessa tarde. tanto que enchemos três sacos com folhas. no final da ela me deu um silêncio seu e depois deixou a boca falar

“e agora o que você vai fazer com esses sacos iolanda?”

eu pensei o "que será que sua morta filha diria". portanto não pensei nada.

“não vai colocar fora não é? não me minta. eu sei tudo sobre você. por sei por exemplo: você não é iolanda”

depois fomos tomar um milkshake de leite de cabra com sorvete de mamão. ela me contou mais do que sabia sobre mim. até então eu nem sabia a diferença entre uma cabra e um bode. "o bode come a cabra e nós comemos o bode". então tá. ela dizia.

"você demora muito para escolher o que quer no cardápio porque quando era criança não gostava de tomar leite."

"querida, tudo bem se você passou dez anos de sua vida conhecendo a mesma pessoa em outras cinco diferentes. o importante é que a comida nunca nos decepciona."

ao abrir o porta-mala em casa me deparei com aqueles três pacotes de lixo natural. claro que os guardei, imagina. colocar fora. nunca.

depois de um tempo essa virou uma situação difícil. difícil por exemplo de explicar para mim mãe que achava curioso eu não estar mais em casa durante as folgas.

"me fala o nome dele pelo menos."

"não existe nome porque não existe ele."

"então me diz o nome dela."

"dela quem?"

"a pessoa com quem você está transando nas quintas-feiras."

imagino o que passaria em sua cabeça, uma cabeça que ignoro encontrar durante todos os dias, se soubesse a verdade. verdade: vou passear com uma senhora. alguns anos mais velha do que ela. sim mamãe, te considero velha.

na última vez que a fui buscar na casa de repouso me veio esse pensamento. precisaria ver um advogado.

o advogado era bonito e tinha aquele tipo de corpo de quem gosta de caminhar antes da luz sair do riacho do céu. nós três saímos para ir ao parque, achei que era a melhor forma de explicar a situação. mas no final do passeio ele me puxou para o lado e disse:

"eu não entendi a situação"

depois de duas cervejas:

"eu ainda não entendi a situação. seria mais fácil casar vocês do quê. do quê isso."

como assim não é possível. eu gostava dela. gostava mesmo. deixar ela lá naquele lugar. poderia estar lá em casa. comendo mamão. de alguma forma ficou importante para mim que houvesse algum documento. algum documento provando que tínhamos uma relação, relação de família. que ela não estava sozinha. "gostaria de adotá-la doutor".

"o que te faz pensar que ela é sozinha?"

apenas imaginei que ninguém a fosse visitar. a imaginei jogando xadrez com as regras de dama por confundias as memórias dos jogos. a imaginei vendo novela, indo dormir as cinco horas da tarde por tédio. por ausência.

"porque ninguém vai lá a visitar"

"como você sabe? só vai lá uma vez por semana"

detestei a situação, por tabela, o detestei. acabei fazendo o que costumo na maioria desses casos: pensar em sexo. ele acabou desistindo no meio porque a mulher, com quem estava casado no papel, estava no hospital. nem pra isso ele servia.

então resolvi mudar a minha folga. mas não para vê-la e sim ficar ali perto do seu quarto como quem não quer nada. não deu meia-hora apareceu uma mulher que tinha cabelos pretos como os meus, encaracolado como os meus, só que não era eu.

uma mulher que presumi: ela indicasse linhaça no café da manhã pelo bem do intestino. com quem ela dividia coisas como faça a maior quantidade de sexo que puder agora porque com a idade isso, como todas as coisas, não melhora, e outros conselhos.

elas ficaram juntas com quatro horas. quatro horas ridas, gritadas, divertidas. eu fui embora, com um peito menor que a raiva.

não suportava a ideia de ela, por ter a idade que tinha por ter a personalidade que a cabia, poder ter e muito me confundido com aquela mulher. errado os armários para colocar os dias, embrulhar os rostos e pensar que era ela que a levava ao parque. que a via toda quinta-feira. que levava as folhas secas do chão do parque deixando só as vivas para morrer num futuro. e poder voltar para levá-las de novo.

em casa abri a porta do quartinho e fixei no que tinha em frente. eram vários os sacos de folhas. o cômodo existia só para eles. os dias amarrotados naquelas paredes mínimas. em minha casa nossas tardes estavam bem protegidas.

não sei porque fiz. mas fiz. não sei de onde veio. mas veio. raiva, muita raiva. aquilo precisava de um fim. as coloquei no quintal e pus fogo. uma grande labareda surgiu. enorme. a alta temperatura derreteu minhas calhas. e agora a água fica acumulada quando chove. o telhado pesa. os bombeiros vieram.

mas na verdade foram poucas as folhas queimadas. porque o fogo, até ele, desistiu. o fogo num surto de autonomia desligou sozinho antes. sobraram os sacos em quantidades. as folhas soltas ali no meu gramado. misturadas. escancaradas. como uma cena absurdamente natural.

as folhas voavam entre os dois lados da rua.
as folhas se acumularam em parte na piscina da vizinha bronzeada que se descobriu histérica minutos depois.
as folhas sumiam e se multiplicavam.

quarta-feira, 12 de março de 2014

reorganizar com os tijolos

Ele chega para mim e diz chove em minha casa.

Chove há uma semana sem parar em minha casa e não tenho condições de pescar meu próprio quarto. De resvalar em meu próprio piso. Ser motivo até para espelho de água quebrar.

Com uma mochila pesada e uns olhos com mochilas me pergunta se pode ficar na minha casa.

Por dois meses essa é sua casa. Seu endereço. Aqui lava o sono, tromba em destinos. Seca as costas.

É sábado, as paredes estão opacas, o dia usa cinza, o céu possui cinto, eu o pergunto quanto tempo. Cozinho o almoço. Ele diz que a chuva moveu as paredes onde mora. Que demorará a juntá-las de novo. São pesadas as paredes. Entende que tem que lavar a louça.

Insisto que deve ter algo que possamos fazer. Alguém para chamar. Que água hoje é cara e rara. Quem sabe até revende-la podemos.

Um rio cresceu em minha casa. Responde mesmo que isso fosse. A água não se contentou em dominar o espaço como também matou as coisas. Os móveis. O mais próximo de uma cama é o chão. Não é mais uma casa. É o local onde as coisas já não são mais. As roupas, usou todas na tentativa de reter o líquido. Inclusive, tranca a fala, essa camisa é sua, completa a frase.

Às vezes pego a toalha e descubro a porta do banheiro fechada. Me demora sempre a ideia de não estar sozinho. De não poder controlar o tempo da vida de minha sujeira. Mas salva as outras. Tem outras ocasiões que me treino para fumar um cigarro como armadilha de subverter o tempo. Ele está na sacada. Me conta de seu avô.

Era aviador o meu avô. A mulher dele não sabia, tinham medo dessas coisas, teria um coração pequeno se soubesse. Meu avô saía, ela entendia: vai colher cana. A plantação de cana nessa teoria ficava no aeroclube. Tinha amantes em cinco cidades. Sempre dormia em casa. Cansado.

Nessas vezes, ouvir ele descansa o eixo que alinha meus ouvidos. As distâncias da cara. Diminuem elas, durmo melhor.

Tem dias que estou lendo em meu quarto. Sem nenhuma palavra exibida durante horas. Ele aparece e diz coisas como Minhas costas doem Acho que estou um pouco enjoado Não dormi bem a noite. Porque sou eu o que o ouço nada respondo. Antes me parecia muito estranho a inutilidade dessas informações. Depois compreendi algumas coisas. Gostava de suas atualizações sobre seu corpo. Aquelas palavras não diziam nada. Mas serviam para explicar coisas como porque soava triste o bom dia mais cedo, porque a demora no varrer da sala. Culpar o corpo, pedir desculpas, essas coisas. As aceitava.

Ele chega do serviço as 19h. É uma das coisas que tenho certeza. Ele chega há dois meses e ainda não tenho coragem. Coragem de dizer: Mas afinal, de onde veio aquela chuva toda? Hoje é um desses dias que não tenho coragem, assim sendo gaguejo no início das frases. Chega perto de mim e me surpreende.

Acho que não estou sendo totalmente sincero com você.

Nessa hora começa a chorar de leve. Finjo que não percebo enquanto torço para que a luz falhe.

A verdade é que não tenho coragem de voltar para minha casa. Não sei se suportaria ao encontrá-la intacta. No fundo a chuva não sei. Talvez a tenha trazido ele me conta.

Esse é o momento que temo por mim. Chora muito agora, seu rosto é pequeno para conter as quantias crescentes. Miro os cômodos de minha casa sala cozinha e os imagino como extensões de bochechas, de sua cara. Tudo naufragar.  Poderia o levar para fora, longe, mas entendi que em alguma parte do corpo isso era algo que só desejava com a cabeça ignorando todo o resto.

Eu queria o dizer muitas coisas naquele momento. Que quanto dorme mal na verdade inunda a lavanderia e partes do meu quarto sem saber. Eu as limpo quando consigo. Em outras culpo o cachorro. Penso em nós na sala, na primeira vez que ri sem previsão de parar, lembro de sentir a camisa molhada e que a culpa daquilo era dele. Penso em contar que não abasteci as plantas desde que chegou porque não precisaram mais dessa preocupação.

Poderia dizer coisas como: a parte boa de uma casa é que a reconhecemos pelas rachaduras. Que o fato de não querer voltar a desqualifica como dormitório. Que não é um crime tentar assassinar o lugar onde nos trancávamos para dentro, onde nos sentimos já seguros. Que esse é o tipo de coisa que desqualifica os ponteiros. Essa sua fragilidade, gosto dela. Esse é o verdadeiro esqueleto seu, o verdadeiro material no interior de seus ossos. É tão sincero que expõe até os ossos.

Mas porque sou eu o que escuto não digo nada. O assunto mudo de vez ao falar Acho que meu estômago não está muito bem. Dou  a entender que aquela dor sua me viu como casa também. Portanto não pode ir. Culpar o meu corpo é a nova forma de pedir a alguém que fique. Que me aceite, espero.

quanto custa para não estar longe de aqui

você perderia as passagens quantas vezes?
você possui cinco calças contando as que cabem e não se usam e todas elas não tem bolsos furados.
mas em seu doce (aqui se lê perfeito como gosto) plano eles precisariam ter embora não tenham na mentira que se repete.
você não quer ir ao lugar que não é aqui nunca mais e para isso
corta os bolsos de suas próprias calças coloca os bilhetes de ônibus nos cortes e não nos bolsos.
depois busca um rosto familiar você conta o tempo dessa busca que varia entre minutos e quilômetros só para dizer

terei que ficar

você não precisa de ninguém que vá até a rodoviária para que saiba realmente que você foi ou para
que o convença a não ir você não precisa de nenhum motivo mas mesmo assim gasta 40 reais que prometem lugares onde não chegará todo mês.
só para ver se aqui é mesmo o local onde você realmente chegou ou apenas aconteceu por um tempo de um relance. e claro, para também poder dizer a si mesmo

me custa muito ficar

depois voltar a alimentar os cães, pagar o mercado, com um mê novinho dentro da bolsa.

as tecnologias

a tia-avó mantém a casa dos sobrinhos intacta  mesmo sabendo o que o noticiário acha

todos morreram num acidente de avião fazem 20 os anos atrás

mas a tia-avó não acredita em aviões. portanto não pode cair o que ela não acredita. esse é o argumento que usa com o analista com o corretor o advogado. só que o analista não existe embora ela acredite. o corretor o advogado existem embora ela julgue desnecessário.

ainda acha que um dia voltarão na hora da sobremesa, por isso por precaução há sempre sobremesas, embora o que o aconteceu no centro espírita quando. quando Jonathan o mais velho e último a morrer tenha a dito que de fato todos eles se foram. e mais

é preciso acreditar na tecnologia tia

 não acredita nos mortos. não acredita em Jonathan. para a tia-avó a tecnologia está morta, faz tempo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

frutas secas

laranja. talvez ele tivesse comido laranja. havia um cheiro de frutas que eu queria que fosse meu. olhei para o lado. observei sua boca e a imaginei abrindo respondendo a minha pergunta "sim". até aquele momento tudo que eu sabia era isso. e que tirava as sobrancelhas.

dividir uma viagem de elevador com alguém é começar a conhecê-la pelo cheiro. e está aí a estranheza. porque depois a pessoa vai, vai logo embora, e a gente fica com aquela intimidade ali. ali nos narizes, nas roupas. sem saber o que fazer.

mas de qualquer forma todas as pessoas sabem que um elevador é um espaço de constrangimento e não o contrário. que aquele tempo minúsculo e abafado passado ali logo se converterá em esquecimento. são os cabelos soltos do dia que no final, a noite, não deitamos no travesseiro. talvez saber disso signifique alívio.

ele não tinha escolhido nenhum andar. por isso deduzi que desceria comigo, no sexto. o que quer dizer que o cheiro de fruta cítrica me acompanharia por toda a viagem.

percebi que ele não tentava nem me observar nos respiros não pensados. parecia apressado daqueles com a garganta em labirinto, com uma apreensão tentando sair ilesa. a porta abriu. como previsto dividimos a saída. silêncio.

então aconteceu uma coisa engraçada. depois do óbvio silêncio houve mais silêncio. e mais. e mais. como no silêncio exacerbado, e com um desconhecido nem se fala, se perde a noção de tempo vou mentir aqui que foram uns 6 minutos. 6 minutos que ficamos lado a lado olhando para a porta, aquela plaqueta. apartamento 608.

então ele desatinou a falar. ele não. a sobrancelha desconfio. porque o homem mesmo estava imerso num calabouço próprio. apertado dentro de um frasco de incapacidade.

"você mora aqui no 608?"

tirei a chave do bolso e abri a porta.

"não e você?"

"não"

entramos no apartamento. entramos juntos na casa que não era minha nem dele. mas de alguém. ele sentou numa poltrona de dois lugares. eu sentei na frente, porque tinha um espelho a esquerda e eu podia ver meu rosto. verificar a vulgaridade de minhas expressões durante nossa conversa. se é que haveria. olhei para baixo. ele tinha meias muito bonitas. pareciam ter sido costuradas a mão. alguém que ele amava costurava meias para ele. ou apenas sentia bastante frio nos pés e por  isso as meias grossas, anti-comerciais, com denúncia de apego doméstico pela imperfeição. imperfeição digna da intimidade.

perguntei se ele conhecia elisa. sim é claro. aquele era o apartamento dela. pela forma que ele entrou na sala entendi que nada ali era surpresa. já sabia de cor a disposição dos móveis. já conhecia elisa o suficiente para saber que a disposição dos móveis sempre mudava e não adiantava tentar se surpreender com isso. eram chegados de alguma forma.

"estou esperando elisa chegar. ela disse que estaria por aqui nesse horário"

ele era galante no jeito de escapar as palavras. parecia que as coreografava na boca, no vai e vem da língua e céu da boca, antes de deixá-las obter liberdade. pensei melhor e entendi que isso significava nervosismo.

sabia o motivo daquela forca sísmica se rindo pelo estômago desse sujeito. ele não era bobo. já tinha entendido algumas coisas do tipo. elisa e eu éramos amantes. eu conhecia o salto de seus mamilos. aquela poltrona onde ele estava sentado, provavelmente já havíamos transado ali. e outra: assim como ele eu estava a esperado. sabíamos muito bem o que esperar queria dizer nessas circunstâncias.

a partir daquele momento o meu papel era o de tornar aquela situação o mais agradável possível. a mais habitual. confortável.

bebemos chá. fui para a cozinha, fiz uma bagunça. tinha prometido uma cerveja. mas só tinha chá. não fiz nenhuma pergunta que pudesse fazer as bochechas dele saltarem. não perguntei da onde a conhecia. o que eram um do outro. já estava bastante clara a situação ate aquele momento.

então porque eu só sei beber chá fazendo muito barulho na borda da xícara, para não aumentar o grau de estranheza, liguei a televisão. poderia estar passando futebol. mas não estava. a televisão acabou ficando no mundo porque começamos a conversar.

descobri que ele era gerente de uma empresa de produção. que fazia sapatos. que adorava sapatos. que uma vez foi casado mas que a mulher se tornou estupidamente religiosa depois do incêndio de roterdam. que começou a ver sexo só para reprodução e foi ali que ele descobriu que não queria filhos. se separaram.

"e você o que esta fazendo aqui?"

"eu preciso muito a dizer uma coisa"

"elisa disse para encontrar ela aqui hoje. mas creio que esqueceu. ou vai ver esqueceu onde morava mesmo. das duas uma."

ele riu. só nos dois parecíamos saber o quanto elisa era perdida. o quanto nenhum nome de rua era possível de ser decorado. como sua capacidade de ser confusa tinha um predileção especifica por espaços geográficos.

aquilo era gostoso. era bom ter alguém para dividir esse tipo de assunto. alguém que também a entendia como eu a entendia. que a conhecia o suficiente para não decidir contar nada importante a ela depois das dez horas da noite. a incompreensão era pontual em elisa.

naquele dia dormimos lá. ficamos dos dois em casa sem nenhuma notícia de dela. nenhum telefonema. ou e-mail. nada. e assim foram nas próximas semanas. de elisa só tínhamos o sumiço.

no entanto, eu e ele, mantínhamos assíduo contato. nos atualizávamos sobre o desaparecimento dela. nos revezávamos para cuidar do gato que ela deixou para trás. aproveitávamos a tv 40 polegadas que ela não estava usando.

foi quando eu comecei a entender que estava freqüentando mais diariamente a casa de elisa. só que ela não estava lá e isso me deixou confuso. mas não o suficiente para me incomodar no sentido de me fazer nascer coceiras na fronteira dos ombros com o ar. a verdade era que a cada dia que passava parecia que ela não existia. e estava bom do jeito que as coisas estavam. o fato é que eu não estava sozinho.

para as pessoas eu dizia.

"estou saindo para ir à casa de elisa"

"há dias que espero o retorno de elisa"

eu e ele nos sentávamos no sofá dela, tomávamos cerveja direto no bico e pensávamos: como é bom não esperar alguém sozinho. sei que ele também pensava isso porque antes de trocar alguma frase nossos olhos se miravam e quando isso acontece no escuro é quando duas pessoas estão pensando a mesma coisa.

então aconteceu um dia de estar na padaria e ver uma moça de cabelos na altura das orelhas que usava uma echarpe roxa. pensei que era ela e na hora engoli uma atmosfera nuclear. porém era apenas uma menina qualquer e isso me deixou profundamente feliz. logo comprei pão italiano. cheguei em casa e ele estava fazendo panquecas. rimos por não termos nos comunicado da fome. mas por termos muita fome. 

foi dessa vez, enquanto comíamos sentados no tapete assistindo a qualquer partida de futebol da divisão B que ele disparou a concentração em mim e disse

"mas afinal o que faziam você e elisa para passar o tempo?"

"sexo, apenas sexo"

por um tempo escutei a sua mudez latejando. ele meteu um pedaço de recheio de salame na boca e respondeu

"sabe que faz um tempão que eu não trepo?"

nisso lembrei do episódio da quarta-feira. foi quando pegamos no sono dividindo as mesmas almofadas, a mesma falta de espaço do acolchoado. num quando que acordei no meio da noite com o pau duro. num duro pressionado contra as costas dele. aquele pareceu o melhor lugar do mundo para meu pau estar e foi tão bom. a nossa falta de espaço parecia todo lugar no mundo. e foi nesse lugar que uma parte específica minha roçou pela noite adentro, sem eu perceber.

então senti o gosto do salame. depois de entrar na sua boca, abrir as pernas foi fácil. por três dias ainda não sabia ao certo se tinha saído dela lá.

no quarto entendi que não. porque voltei a casa como quem vai tirar os pontos de um machucado. e no caso os pontos eram tirados com os dentes. os dele. estava sendo operado. aos poucos. meu corpo melhor.

praticamente morávamos naquele endereço. um endereço que não era nem de um nem de outro. ele chegava e já tirava a roupa. eu ficava o observando, aquelas bolas por exemplo. bem que poderiam ser as minhas que por descuido por ali ficaram. nada as diferenciava. achava engraçado. engraçado porque nunca tinha perdido tempo olhando para as minhas. mas as dele eram inacreditavelmente divertidas. talvez fosse o balanço. havia uma ginga natural ali. era notável. eu olhava e ele já sentia cócegas. tão fácil.


teve um dia. ensinei ele a comer pistaches. ele colocou tudo na língua, ignorou a casca. o corrigi é claro.

"você tem que colocar os dedos na fresta de dentro e abrir os dois lados. abrir até quebrar. viu?"

ele tentou. mas ao invés de tentar de verdade me deu um golpe.

"o que você precisava tanto falar para Elisa?"

elisa não voltava a meses. não entendi a importância daquilo naquela hora. ela não tinha mais nenhuma relevância.

"eu precisava dizer que a amava."

ele consentiu comendo a minha novidade, a parte de dentro e correta do pistache, sem obrigação como quem busca mesmo a vontade. não apenas agradar.

amávamos muito elisa. primeiro pelo seu surgimento, e depois, pelo seu desaparecimento. e misteriosamente entender isso facilitava o desafio de comer frutas secas. o que tornava viver muito mais simples.