Aconteceu que Eulálio estava triste. Mas como não era
novidade ele estar triste, os amigos tiveram que encontrar outra forma de dizer
isto. Por isso quando ligavam-se, na posse dessa tecnologia, uma das poucas que
faz os olhos sobrarem, disseram-se uns aos outros: "Eulálio está a dar comida
aos hipopótamos".
A palavra hipopótamo é muito importante aqui. Notem isso.
Ninguém mais a usa, talvez pelo fato que ninguém os veja. Por isso o choque.
Por isso a retórica dos amigos ouvintes: “Então Eulálio não está
nada bem”.
De todos, fora ele o que continha mais crises. Se houvesse
um guarda-roupa de crises, este seria o de Eulálio. Exigente por um cômodo só
para ele, estantes delas dobradas, guardadas, conforme o ano, o uso, a cor.
Mais importante que superar era não esquecer. Seguir a se vestir, mas sempre,
diferente.
Eulálio é dessas pessoas que vai te visitar no emprego, está
a olhar sua escrivaninha. Olha para seu calendário, os dias passados riscados
com os xizes tal como nos ensinaram a fazer. Inclina a cabeça e te faz
perguntas. “quem foram os que morreram?”. “É desses seres negativos” poderia
nos dizer Pedro. “Porém Pedro é desses seres negativos também”, poderiam
retrucar Marisa Horta. Mas tanto Pedro como Marisa Horta transaram apenas um com
o outro por quatro anos e essa é uma condição que não faz nem de um nem de
outro um seres confiáveis.
Foi Gomez que encontrou Thiago. Estavam a combinar um
churrasco. Mas escondido de Hila e Correia, porque os dois são vegetarianos.
Gomez mencionou as palavras: "Eulálio", "hipopótamos". "Como assim?" disse Thiago.
“Encontrei na vendinha hoje. Há horas que não nos vemos.
Contudo ambos precisamos dos alimentos para sobreviver. Ele estava a comprar
ervilhas. Quem é que compra algo que não gosta?”
Mas foi Thiago que resolveu a situação. E ligou para Tamara
com quem Eulálio trabalhava. “Eulálio não está vindo trabalhar”, ela disse.
Tamara logo ligou para Hila. “Somos tão chegados Eulálio e eu. Dormimos um no
sofá do outro e empresto meu apartamento na Barra quando quer impressionar uma
garota só uma vez. Por que ele não me conta o que passa?” “Quando estamos a nos
sentir mal, esquecemos quem são as pessoas que nos emprestam os apartamentos.
Principalmente Eulálio”. Correia, ao descobrir do churrasco, chega com um saco de
pimentões orgânicos como quem não sabe quem acha que ser ignorado é um convite
mais empolgante e comenta em voz alto: “Souberam de Eulálio?”.
Se tornando desimportante os pimentões, o coro responde: “Hipopótamos?”
“Sim” devolve Correia aterrisando os olhos dentro dos
travesseiros macios do rosto de Hila, sua mulher.
Depois de algumas cervejas Luciano, o amigo taxista, chega direto do trabalho. “Eulálio está mal. É o caso de um amigo que ao que parece
não fala mais com ele. Diogo está brigado com Eulálio. Por isso as ervilhas.
Por isso os hipopótamos”. Agora os amigos se sentiam melhor porque a tristeza
realmente tinha um motivo. Um motivo real.
Se passaram semanas na vida de Marisa Horta e nada de Eulálio na
vida dela. Se passaram semanas na vida de Thiago e nada de Eulálio na vida dele. Pedro ligou para Gomez, ligou para Luciano, Tamara. Nada de Eulálio
nas semanas de todos. Desapareceu.
Quando Pedro resolveu apresentar a todos a sua mãe biológica,
alguém comentou o que estava acontecendo. Inês, a mulher que pariu aos quinze
anos e veio a conhecer o resultado do parto 30 anos depois, então os pergunta: "Mas quem é Diogo?". Foi aí, com as paredes do restaurante chinês de testemunha,
que se deram conta de que ninguém sabia quem era esse tal Diogo. Diogo, o causador de
problemas.
Correia e Hila, ao arranjarem assuntos para desviar a insônia e fingir que não percebem a falta de desejo que os separa na cama, que se deram conta. Eulálio na verdade tem poucos amigos. Eulálio na verdade só
tem a nós. Isso soou muito estranho para os dois e no outro dia mesmo, Correia –
o preocupado, resolveu apimentar a preocupação de Luciano. “E Eulálio disse de
onde conhecia esse Diogo?”. “Não. Mas eram muito íntimos. Coisa de anos. Dez
pelo menos. Uma das poucas coisas que lembro dele dizer era que agora teria de
almoçar sozinho e isso era uma desgraça porque em parte o que o ajuda a comer é
a vontade de falar.”
Tamara ficou preocupada. Ela temia o pior. Por isso convocou
uma reunião. E em seu apartamento serviu feijoada a todos. Depois disse: “Tenho
uma teoria. Mas ela é ruim. Acredito que tenha acontecido o pior. O pior
embaixo dos nossos narizes. Logo nós que pensamos não se tratar de uma
seriedade”. Naquele momento os feijões foram mal mastigados pelo impacto
sombrio da voz. E mais tarde, seria difícil fazer a eficiência da higiene bucal
funcionar facilmente antes de dormir. Aqueles feijões sobreviveram intactos pela manhã seguinte.
“Pois eu que almoço com Eulálio. Não esse tal Diogo. A
partir disso que os digo. Diogo não existe”. Na cabeça de Thiago isso faz
sentido. Inês, que depois de 30 anos resolveu entrar na vida do filho logo em
um momento de drama, até ela, acredita. “Então é bem pior do que achávamos ”,
comenta Gomez. “Sentir falta de alguém que não existe, deve ser dolorido”
pensou Pedro mas não disse nada.
Eulálio estava louco. Um louco triste. O pior
tipo.
A busca por Eulálio não foi nada bem. Ninguém atendia na casa onde ele supostamente morava. Nenhum dos amigos tinha o telefone de seus parentes. Ninguém no trabalho ouviu notícias suas. Estavam ilhados. Não havia o que fazer. Eulálio, o louco, Eulálio, ou sumido. Estava sozinho. Então aconteceu algo estranho.
Pare de tremer Hila. Agora conte o que você estava dizendo. "Eu estava dizendo que fiquei com saudade de Eulálio. Então o procurei nas fotos de nosso casamento, meu e do Correia. Queria lembrar dele. Lembra que ele chegou atrasado? Deu aquele barulho na igreja. Então. Acontece que Eulálio não estava nas fotos". Ninguém deu muita importância. Eulálio não gostava de tirar fotos, sim sim, era isso. Poderia ser.
"Sinto muita falta de Eulálio. Sentia que podíamos conversar sobre tudo. Sinto falta daquele cabelo vermelho, que ele coçava sempre que arriscava dizer uma palavra que nunca tinha entendido bem seu significado" disse Pedro. "O cabelo dele é loiro" respondeu Thiago. "Eu sempre achei castanho" disse Marisa Horta. "Gente, por favor, Eulálio é ruivo" alguém comentou.
Correia mandou todos ficarem quietos. Deu um gole no copo que varreu as moléculas de álcool. Depois, com o pó do alcool escapando de sua boca fez uma pergunta: "Qual foi a última vez que vocês viram Eulálio?"
Silêncio.
Tosses.
Silêncio de novo.
"Aquele dia na vendinha, não sei se era ele. O homem que vi com as ervilhas era moreno. Agora estão a dizer que era ruivo. Não entendo. Acho que não era Eulálio", desabafou Gomez.
A verdade é que ninguém lembrava de tê-lo visto. Sim, frequentemente conversavam a seu respeito, suas picaretagens, suas ideias absurdas, seus problemas sociológicos. Mas vê-lo assim, digamos, tocá-lo, abraçá-lo, fazia tanto tempo que a memória não vinha.
"Não é possível. Foi Odila que me apresentou Eulálio. Namoraram os dois. Tenho certeza". "Não se faça de tonta Tamara, Eulálio era gay. Conversávamos sobre isso quando todos vocês iam dormir." disse Gomez. Foram então que todos olharam para Luciano. Luciano o taxista. Luciano o informante. "E você, o que tem a dizer? Foste o último a vê-lo não é mesmo?" se ouviu partir de alguma boca.
"Ver eu não o vi. Mas li uma carta que ele mandou."
"E onde está a carta?"
Nesse momento mesmo em silêncio todos ouviram um ruído. Era o som de algo se elevando. Como os tremores que antecipam o emprego de um vulcão. Algo estava saindo fora do lugar. Aquilo parecia e muito com o medo quando ele aparece em lugares mais baixos que suas medidas.
"Puta que pariu, como a gente faz para saber se alguém existe mesmo?" gritou Thiago.
Os outros nada disseram. Porque na verdade, não sabiam. Porque na verdade temiam que não soubessem mais de nada. Ficaram ali parados, todos na sala, a espera do sono. Mesmo sabendo que esperar o sono, nessas circunstâncias, é como esperar que nossa barriga diminua de tamanho depois de resolver alguma uma difícil equação matemática ou livrar-se da declaração do imposto de renda.
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