laranja. talvez ele tivesse
comido laranja. havia um cheiro de frutas que eu queria que fosse meu. olhei
para o lado. observei sua boca e a imaginei abrindo respondendo a minha
pergunta "sim". até aquele momento tudo que eu sabia era isso. e que
tirava as sobrancelhas.
dividir uma viagem de elevador com alguém é começar a conhecê-la
pelo cheiro. e está aí a estranheza. porque depois a pessoa vai, vai
logo embora, e a gente fica com aquela intimidade ali. ali nos narizes, nas
roupas. sem saber o que fazer.
mas de qualquer forma todas as pessoas sabem que um elevador é um
espaço de constrangimento e não o contrário. que aquele tempo minúsculo e
abafado passado ali logo se converterá em esquecimento. são os cabelos soltos
do dia que no final, a noite, não deitamos no travesseiro. talvez saber disso
signifique alívio.
ele não tinha escolhido nenhum andar. por isso deduzi que
desceria comigo, no sexto. o que quer dizer que o cheiro de fruta cítrica me
acompanharia por toda a viagem.
percebi que ele não tentava nem me observar nos respiros não
pensados. parecia apressado daqueles com a garganta em labirinto, com
uma apreensão tentando sair ilesa. a porta abriu. como previsto dividimos a
saída. silêncio.
então aconteceu uma coisa engraçada. depois do óbvio silêncio
houve mais silêncio. e mais. e mais. como no silêncio exacerbado, e com um desconhecido nem se fala, se perde a noção de tempo vou mentir aqui que foram uns 6
minutos. 6 minutos que ficamos lado a lado olhando para a porta, aquela
plaqueta. apartamento 608.
então ele desatinou a falar. ele não. a sobrancelha desconfio.
porque o homem mesmo estava imerso num calabouço próprio. apertado dentro de um
frasco de incapacidade.
"você mora aqui no 608?"
tirei a chave do bolso e abri a porta.
"não e você?"
"não"
entramos no apartamento. entramos juntos na casa que não era minha
nem dele. mas de alguém. ele sentou numa poltrona de dois lugares. eu sentei na
frente, porque tinha um espelho a esquerda e eu podia ver meu rosto. verificar
a vulgaridade de minhas expressões durante nossa conversa. se é que haveria.
olhei para baixo. ele tinha meias muito bonitas. pareciam ter sido costuradas a
mão. alguém que ele amava costurava meias para ele. ou apenas sentia bastante
frio nos pés e por isso as meias
grossas, anti-comerciais, com denúncia de apego doméstico pela imperfeição. imperfeição
digna da intimidade.
perguntei se ele conhecia elisa. sim é claro. aquele era o
apartamento dela. pela forma que ele entrou na sala entendi que nada ali era
surpresa. já sabia de cor a disposição dos móveis. já conhecia elisa o
suficiente para saber que a disposição dos móveis sempre mudava e não adiantava
tentar se surpreender com isso. eram chegados de alguma forma.
"estou esperando elisa chegar. ela disse que estaria por aqui nesse horário"
ele era galante no jeito de escapar as palavras. parecia que as
coreografava na boca, no vai e vem da língua e céu da boca, antes de deixá-las
obter liberdade. pensei melhor e entendi que isso significava nervosismo.
sabia o motivo daquela forca sísmica se rindo pelo estômago desse
sujeito. ele não era bobo. já tinha entendido algumas coisas do tipo.
elisa e eu éramos amantes. eu conhecia o salto de seus mamilos. aquela poltrona
onde ele estava sentado, provavelmente já havíamos transado ali. e outra: assim
como ele eu estava a esperado. sabíamos muito bem o que esperar queria dizer nessas circunstâncias.
a partir daquele momento o meu papel era o de tornar aquela
situação o mais agradável possível. a mais habitual. confortável.
bebemos chá. fui para a cozinha, fiz uma bagunça. tinha prometido
uma cerveja. mas só tinha chá. não fiz nenhuma pergunta que pudesse fazer as
bochechas dele saltarem. não perguntei da onde a conhecia. o que eram um do
outro. já estava bastante clara a situação ate aquele momento.
então porque eu só sei beber chá fazendo muito barulho na borda da
xícara, para não aumentar o grau de estranheza, liguei a televisão.
poderia estar passando futebol. mas não estava. a televisão acabou ficando no
mundo porque começamos a conversar.
descobri que ele era gerente de uma empresa de produção. que
fazia sapatos. que adorava sapatos. que uma vez foi casado mas que a mulher se
tornou estupidamente religiosa depois do incêndio de roterdam. que começou a
ver sexo só para reprodução e foi ali que ele descobriu que não queria filhos.
se separaram.
"e você o que esta fazendo aqui?"
"eu preciso muito a dizer uma coisa"
"eu preciso muito a dizer uma coisa"
"elisa disse para encontrar ela aqui hoje. mas creio que
esqueceu. ou vai ver esqueceu onde morava mesmo. das duas uma."
ele riu. só nos dois parecíamos saber o quanto elisa era perdida.
o quanto nenhum nome de rua era possível de ser decorado. como sua capacidade
de ser confusa tinha um predileção especifica por espaços geográficos.
aquilo era gostoso. era bom ter alguém para dividir esse tipo de
assunto. alguém que também a entendia como eu a entendia. que a conhecia o suficiente
para não decidir contar nada importante a ela depois das dez horas da noite. a incompreensão
era pontual em elisa.
naquele dia dormimos lá. ficamos dos dois em casa sem nenhuma notícia
de dela. nenhum telefonema. ou e-mail. nada. e assim foram nas próximas
semanas. de elisa só tínhamos o sumiço.
no entanto, eu e ele, mantínhamos assíduo contato. nos atualizávamos sobre o desaparecimento dela. nos revezávamos para cuidar do gato
que ela deixou para trás. aproveitávamos a tv 40 polegadas que ela não estava
usando.
foi quando eu comecei a entender que estava freqüentando mais
diariamente a casa de elisa. só que ela não estava lá e isso me deixou confuso.
mas não o suficiente para me incomodar no sentido de me fazer nascer coceiras na
fronteira dos ombros com o ar. a verdade era que a cada dia que passava parecia
que ela não existia. e estava bom do jeito que as coisas estavam. o fato é que
eu não estava sozinho.
para as pessoas eu dizia.
"estou saindo para ir à casa de elisa"
"há dias que espero o retorno de elisa"
eu e ele nos sentávamos no sofá dela, tomávamos cerveja direto no
bico e pensávamos: como é bom não esperar alguém sozinho. sei que ele também
pensava isso porque antes de trocar alguma frase nossos olhos se miravam e
quando isso acontece no escuro é quando duas pessoas estão pensando a mesma
coisa.
então aconteceu um dia de estar na padaria e ver uma moça de
cabelos na altura das orelhas que usava uma echarpe roxa. pensei que era ela e
na hora engoli uma atmosfera nuclear. porém era apenas uma menina qualquer
e isso me deixou profundamente feliz. logo comprei pão italiano. cheguei em
casa e ele estava fazendo panquecas. rimos por não termos nos comunicado da
fome. mas por termos muita fome.
foi dessa vez, enquanto comíamos sentados no tapete assistindo a
qualquer partida de futebol da divisão B que ele disparou a concentração em mim
e disse
"mas afinal o que faziam você e elisa para passar o tempo?"
"sexo, apenas sexo"
por um tempo escutei a sua mudez latejando. ele meteu um pedaço de
recheio de salame na boca e respondeu
"sabe que faz um tempão que eu não trepo?"
nisso lembrei do episódio da quarta-feira. foi quando pegamos no
sono dividindo as mesmas almofadas, a mesma falta de espaço do acolchoado. num quando
que acordei no meio da noite com o pau duro. num duro pressionado contra as
costas dele. aquele pareceu o melhor lugar do mundo para meu pau estar e foi
tão bom. a nossa falta de espaço parecia todo lugar no mundo. e foi nesse lugar
que uma parte específica minha roçou pela noite adentro, sem eu perceber.
então senti o gosto do salame. depois de entrar na sua boca,
abrir as pernas foi fácil. por três dias ainda não sabia ao certo se tinha
saído dela lá.
no quarto entendi que não. porque voltei a casa como quem vai
tirar os pontos de um machucado. e no caso os pontos eram tirados com os
dentes. os dele. estava sendo operado. aos poucos. meu corpo melhor.
praticamente morávamos naquele endereço. um endereço que não era nem de um nem de outro. ele chegava e já tirava a
roupa. eu ficava o observando, aquelas bolas por exemplo. bem que poderiam ser
as minhas que por descuido por ali ficaram. nada as diferenciava. achava engraçado. engraçado porque nunca tinha perdido tempo olhando para as minhas. mas as dele
eram inacreditavelmente divertidas. talvez fosse o balanço. havia uma ginga
natural ali. era notável. eu olhava e ele já sentia cócegas. tão fácil.
teve um dia. ensinei ele a comer pistaches. ele colocou tudo na
língua, ignorou a casca. o corrigi é claro.
"você tem que colocar os dedos na fresta de dentro e abrir os dois lados. abrir até quebrar. viu?"
ele tentou. mas ao invés de tentar de verdade me deu um golpe.
"o que você precisava tanto falar para Elisa?"
elisa não voltava a meses. não entendi a importância daquilo
naquela hora. ela não tinha mais nenhuma relevância.
"eu precisava dizer que a amava."
ele consentiu comendo a minha novidade, a parte de dentro e
correta do pistache, sem obrigação como quem busca mesmo a vontade. não apenas agradar.
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