você pode descer mais para a esquerda?
assim?
só que mais forte. pode pressionar.
melhorou?
bastante.
nossa estou sentindo agora. e esse é dos grandes. espera tem mais. vários. você tem que parar de ir dirigindo para o trabalho é muito estressante.
sim.
a propósito, lembrei de algo. sua tia te deixou uma coisa.
esse era o exato estado das minhas costas quando eu cheguei a Nova Hartz. quando ela me contou essas palavras. sua tia te deixou uma coisa.
a coisa em questão era uma caixa. subimos as escadas. os degraus eram daquele tipo que faz um barulho agudo e lento, base de inspiração para os primeiros filmes de suspense. quando você passa por uma escada assim já está um pouco preparado. sabe que o ponto de chegada pode te entregar um susto ou uma confusão. por isso naquele momento eu troquei meus olhos por um pé de açafrão. li que ajuda.
o quarta da irmã da minha avó tinha gosto de chuva guardada. é interessante como perto de tantas coisas velhas até mesmo os objetos da última tectologia parecem antigos. eu olhei para aquela tevê de plasma 32 polegadas e foi fácil imaginar que dentro dela faziam 30 anos que seus ouvidos escutavam personagens novelescos de manoel de carlos tagarelar. por isso quando entrei naquele cômodo fiquei imediatamente 10 anos mais velha. e a idade começou a se infiltrar em mim pela perna direita. pisei em falso ao ultrapassar a porta. quase caí. há 3 segundos meus tornozelos já não eram mais os mesmos.
você sabe o que sua tia dizia sobre você? que quando crescesse você provavelmente seria uma engenheira de computação. porque assim não teria que sair muito de casa. sua tia achava que você seria o futuro do mercado de drive true. ela tinha muito senso de humor.
ela errou. sou o futuro do mercado de tira manchas. ela não falou nada sobre eu trabalhar numa lavanderia?
não.
eu parei em frente a cama. o que será que fazem com os colchões das pessoas mortas? de certa forma um colchão é um lugar para morrermos de forma parcelada. mas nunca definitiva. seu cabelo era loiro. e alguns fios foram deixados para trás, presos pelo algodão da colcha. será que eles caíram de uma pessoa viva ou ela já tinha se ido no momento? me veio uma vontade de pegar aqueles fios e guardar na bolsa. de guardar aquela dúvida na bolsa e levar para casa. mas minha mãe ainda estava lá. teria que esperar ela sair para poder ser estranha. foi por isso que só comecei a dançar aos 20 anos. foi quando sai de casa.
ela abriu um armário e tirou um pacote. um pacote com meu nome. eu me assustei ao saber que no mundo meu nome vivia por aí escrito, a não ser quanto tempo, sem a minha ciência. imaginei ele em diversas ocasiões das quais não fui informada. como talhado em uma caixa de lixo orgânico em Serramadeira, ou então fazendo parte de um abajur na casa de um anônimo, feito com uma série de papéis antigos entre eles uma conta de luz minha que provavelmente não paguei.
e foi por isso que não o abri naquela hora.
além disso gostava dos olhos da minha mãe quando imersos numa combustão mista de curiosidade e impossibilidade. na volta da íris, ficava magenta.
na mesma noite fui embora. dirigindo na autoestrada pensava em como é difícil ter costas. se dar bem com ela. sacrifícios teriam de ser feitos. parar de dirigir por exemplo. não que eu gostasse da direção. não gostava. mas o barulho do motor me lembrava alguma coisa que não sabia o que era. sempre que girava a chave pensava que iria finalmente descobrir.
talvez seja particularmente daí essa dor nas costas finalmente conclui.
de volta a cidade descongelei um risoto de ervilhas. comendo com uma mão e abrindo a caixa com a outra mão, era assim que eu achava que meus neurônios voltavam. rasguei meu nome do pacote e senti um leve alívio e o abri.
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