domingo, 11 de maio de 2014

quando você não nasceu

querido filho essa é a história de quando você não nasceu. porque o ano era 1989 portanto era uma ponte não um lugar. teu não pai vinha de uma família que colocou o rio dentro dos canos e portanto tomava banho em uma cachoeira falsificada de chuveiro. convenhamos que isso é uma coisa perigosa. tanta natureza assim. não conseguia viver com tanto. meu estômago dos olhos, fraco. este foi o ano que eu conheci teus não avós. que eu descobri que a cor verde não é o bastante para descrever uma árvore. que os filhos de imigrantes italianos tem um tipo de rosto que com a idade se assemelha com a terra arada, antes do plantio. que entendi que não sabia nada de poesia mas quando ela saía dos lábios de teu quase pai me dava vontade de fazer sexo. este foi o ano que qualquer chance que você tinha de nascer desapareceu. basicamente por isso:

esta sou eu. meus cabelos são pretos e quem os carrega são mais os ombros que a cabeça. antes eu tinha dúvidas mas agora atesto sou mulher. porque um dia, a primeira vez que bebi, me apaixonei por uma motocicleta com 60 cilindradas. só que o dono vinha junto. a motocicleta me seguiu até porto alegre dois meses depois baseado num bilhete não meu mas sim escrito pelo dia em que bebi. lá estava meu endereço. agora essa sou eu: olha para janela e vejo aquela honda cross. cintilante. coloco as mãos nas pernas e tenho uma nova abertura, ali, onde os lençóis de carne antes não davam mais nenhuma surpresa: eu tenho um túnel aberto para dentro de mim. saber que crescemos é ter uma rodovia, no meu caso autoestrada própria. sou mulher.

claro que achei muito bonito isso. eu e teu quase pai imerso em pás e despesas de terra salteando por aí. movendo fundos e mundos abrindo a barriga do dia e inserindo caminhos.chegou um desses dias que eram anos ele me veio com essa uma aliança. teu quase pai tinha duas armas carregadas onde as pessoas comuns tem apenas olhos. se eu tivesse pego aquele anel prateado e posto no meu dedo, no futuro, você também teria esse tipo de calibre capaz de conseguir qualquer coisa. eu sabia. meu quase filho teria as sobrancelhas mais lindas que a memória dos rostos era capaz de lembrar. mas ao invés de oferecer meus dedos, depois todas as formas de carregar minha juventude com eles, eu corri para dentro do bolso esquerdo de minha mãe, a pedi para que me livrasse os ombros sacrificando os cabelos, e disse para mim mesma: amanhã serei eu só que careca e desembarcando no rio de janeiro com o objetivo único de viver em um avião.

o motivo de você não ter nascido é que eu fugi o mais rápido que as turbinas do meu medo foram capazes e preferi não ter cabelo. imagino que era o meu túnel segurando aquela tesoura enquanto a queda dos meus cachos se fazia em sujeira no chão. hoje tenho consciência disso.

no rio de janeiro fiz aquilo tudo. usei ray ban, assisti a péssimos filmes patrocinados pelas forças aéreas americanas. chorava tanto que se chorar fosse criar linhas de algodão ao invés de água salgada nunca mais teria que comprar roupas ou lençóis. em quatro anos sofridos eu pilotava um boing já para uma companhia aérea do interior. as pessoas me chamavam de capitão e esqueciam meu verdadeiro gênero. eu gostava, mas apenas quando estávamos no ar. essa foi minha vida.

então você pode pensar que a culpa foi toda minha. talvez. por anos, quando comecei a fazer viagens aéreas longas, 5h, 6h sobre o mar, eu pensava em ti. pensava em você meu filho que precisava nascer. duas foram às vezes que arrumei as malas ou preguei a foto de teu quase pai embaixo das pálpebras na hora de dormir e pensei "preciso fazer meus óvulos encontrarem esse homem". mas não fiz nada disso. por que? eu pensei ter o tempo todo do mundo porque pilotava num avião e podia chegar a qualquer lugar muito rápido. com 30 anos sabia como eram as luzes em bangkook, como nunca desligavam as luzes em hong-kong. em uma mesma semana acumulava continentes e sabia pedir um xis bacon em cinco línguas diferentes.mas voltar ao rio de teu quase pai. voltar ao verde. voltar a comida italiana que alimento a gerações a sobrevivência do teu quase sobrenome paterno. isso eu não consegui. parecia mais longe do que as letrinhas miúdas de um comercial de televisão.

hoje você não nasceu e a culpa é minha.

porque seu quase pai está em algum lugar raspando o rosto contra o vento, contra o dominó do frio e calos, na tentativa de ficar velho. amando as pessoas nas reticências que elas nem sabem mas existem ali entre uma respiração e outra. ele queria muito que você nascesse e dizia coisas do tipo "ele terá as costas iguais as tuas". como você nunca nasceu eu não sei como são minhas costas.

quando pensou em seu quase pai não posso mais acreditar em termômetros ou termostatos. fico quente. não é todo mundo que faz nossa pele mudar de cor. se você tivesse nascido essa seria o tipo de coisa que te diria: "quando sua pele mudar de cor fique atento e se for por causa de alguém não a deixe ir facilmente". uma vez recebi uma carta de seu quase pai. essa é a história dele:

quando mandei embora os cabelos e virei uma desaparecida, o cabelo do teu quase pai também diminui, só que involuntariamente. eles caíram sozinhos. ele estava careca e sem vontade de usar as próprias roupas por isso fez algo que nunca imaginaria, ficou rico. vendeu absolutamente tudo que tinha porque não queria mais nada. não queria viver. nessa época era escritor por isso o pensamento suicida era normal depois dos sonhos. morando com a mãe, sem nada, acordando com o susto do galo no campo ao ver o sol, estava com um bom dinheiro guardado. seu pai estava decidido: vou virar alcoólatra. colocou a roupa mais dormida e foi ao bar, o único do distrito. nessa mesma noite seu plano foi por água abaixo. porque ao começar a beber conheceu um homem. o homem disse: "contâiners". seu quase pai gostou da palavra porque não sabia soletrá-la e isso era importante para cometer um erro. ele disse ao desconhecido: "contâiners? eu topo". nos próximos dez anos ele seria uma pessoa sóbria, sócio de uma empresa que criava grandes caixas para o mundo carregar suas coisas por aí, estava rico e nem tinha quarenta anos.

a carta que ele me mandou foi depois de 20 anos de meu sumiço. ele dizia: sempre sentirei sua falta porque casei contigo mesmo tua mão se tornando uma fugitiva. em 20 anos aquela carta era tudo que seu quase pai escrevia. quando o abandonei matei o escritor e coloquei em um poste em praça pública para dar de exemplo aos seus anos seguintes. "penso onde você está. se seria absurdo não saber como está seu rosto mas querer que sejas ainda minha mulher". aquela carta era tudo que eu sempre quis. todos meus arrependimentos poderiam acabar. eu poderia voltar. ele vir morar em Guanabara. você poderia nascer. mas dei à luz a um susto depois de lê-la. foi ele o que nasceu. falava para mim mesma: "amanhã farei algo". o susto era esperto. sempre mudava a data de amanhã e eu caía.

o que vejo agora é a cidade de cima. vejo porto alegre do avião. esse corpo parado à mercê de tudo. onde você estaria se tivesse nascido? onde botaria a mão se sentisse medo? como seria sua relação com os espelhos ao acordar? você olharia um prédio com os narizes abertos como quem sente a arte e estudaria quem saber arquitetura? você viria nos visitar no natal, eu e teu pai, e os dois deixaria duros no carpete por nos derrubar com suas novidades? por suas formas surpreendentes de ver uma argila virar o que você quiser? 

você está por aí e sinto muito não ter te trazido para uma época em que a internet é ainda algo possível de ser desligada.

sinto que sei tudo sobre o amor só que não possuo os dedos para guardá-lo.

quando você não nasceu seu pai ficou careca.

quando você não nasceu eu nunca mais me senti à vontade no chão.

e nunca mais retornei.

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