quarta-feira, 12 de março de 2014

reorganizar com os tijolos

Ele chega para mim e diz chove em minha casa.

Chove há uma semana sem parar em minha casa e não tenho condições de pescar meu próprio quarto. De resvalar em meu próprio piso. Ser motivo até para espelho de água quebrar.

Com uma mochila pesada e uns olhos com mochilas me pergunta se pode ficar na minha casa.

Por dois meses essa é sua casa. Seu endereço. Aqui lava o sono, tromba em destinos. Seca as costas.

É sábado, as paredes estão opacas, o dia usa cinza, o céu possui cinto, eu o pergunto quanto tempo. Cozinho o almoço. Ele diz que a chuva moveu as paredes onde mora. Que demorará a juntá-las de novo. São pesadas as paredes. Entende que tem que lavar a louça.

Insisto que deve ter algo que possamos fazer. Alguém para chamar. Que água hoje é cara e rara. Quem sabe até revende-la podemos.

Um rio cresceu em minha casa. Responde mesmo que isso fosse. A água não se contentou em dominar o espaço como também matou as coisas. Os móveis. O mais próximo de uma cama é o chão. Não é mais uma casa. É o local onde as coisas já não são mais. As roupas, usou todas na tentativa de reter o líquido. Inclusive, tranca a fala, essa camisa é sua, completa a frase.

Às vezes pego a toalha e descubro a porta do banheiro fechada. Me demora sempre a ideia de não estar sozinho. De não poder controlar o tempo da vida de minha sujeira. Mas salva as outras. Tem outras ocasiões que me treino para fumar um cigarro como armadilha de subverter o tempo. Ele está na sacada. Me conta de seu avô.

Era aviador o meu avô. A mulher dele não sabia, tinham medo dessas coisas, teria um coração pequeno se soubesse. Meu avô saía, ela entendia: vai colher cana. A plantação de cana nessa teoria ficava no aeroclube. Tinha amantes em cinco cidades. Sempre dormia em casa. Cansado.

Nessas vezes, ouvir ele descansa o eixo que alinha meus ouvidos. As distâncias da cara. Diminuem elas, durmo melhor.

Tem dias que estou lendo em meu quarto. Sem nenhuma palavra exibida durante horas. Ele aparece e diz coisas como Minhas costas doem Acho que estou um pouco enjoado Não dormi bem a noite. Porque sou eu o que o ouço nada respondo. Antes me parecia muito estranho a inutilidade dessas informações. Depois compreendi algumas coisas. Gostava de suas atualizações sobre seu corpo. Aquelas palavras não diziam nada. Mas serviam para explicar coisas como porque soava triste o bom dia mais cedo, porque a demora no varrer da sala. Culpar o corpo, pedir desculpas, essas coisas. As aceitava.

Ele chega do serviço as 19h. É uma das coisas que tenho certeza. Ele chega há dois meses e ainda não tenho coragem. Coragem de dizer: Mas afinal, de onde veio aquela chuva toda? Hoje é um desses dias que não tenho coragem, assim sendo gaguejo no início das frases. Chega perto de mim e me surpreende.

Acho que não estou sendo totalmente sincero com você.

Nessa hora começa a chorar de leve. Finjo que não percebo enquanto torço para que a luz falhe.

A verdade é que não tenho coragem de voltar para minha casa. Não sei se suportaria ao encontrá-la intacta. No fundo a chuva não sei. Talvez a tenha trazido ele me conta.

Esse é o momento que temo por mim. Chora muito agora, seu rosto é pequeno para conter as quantias crescentes. Miro os cômodos de minha casa sala cozinha e os imagino como extensões de bochechas, de sua cara. Tudo naufragar.  Poderia o levar para fora, longe, mas entendi que em alguma parte do corpo isso era algo que só desejava com a cabeça ignorando todo o resto.

Eu queria o dizer muitas coisas naquele momento. Que quanto dorme mal na verdade inunda a lavanderia e partes do meu quarto sem saber. Eu as limpo quando consigo. Em outras culpo o cachorro. Penso em nós na sala, na primeira vez que ri sem previsão de parar, lembro de sentir a camisa molhada e que a culpa daquilo era dele. Penso em contar que não abasteci as plantas desde que chegou porque não precisaram mais dessa preocupação.

Poderia dizer coisas como: a parte boa de uma casa é que a reconhecemos pelas rachaduras. Que o fato de não querer voltar a desqualifica como dormitório. Que não é um crime tentar assassinar o lugar onde nos trancávamos para dentro, onde nos sentimos já seguros. Que esse é o tipo de coisa que desqualifica os ponteiros. Essa sua fragilidade, gosto dela. Esse é o verdadeiro esqueleto seu, o verdadeiro material no interior de seus ossos. É tão sincero que expõe até os ossos.

Mas porque sou eu o que escuto não digo nada. O assunto mudo de vez ao falar Acho que meu estômago não está muito bem. Dou  a entender que aquela dor sua me viu como casa também. Portanto não pode ir. Culpar o meu corpo é a nova forma de pedir a alguém que fique. Que me aceite, espero.

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