sábado, 17 de outubro de 2020

mulher em canto de foto

Embaixo de um sorrisinho de canto, quando a cabeça se abaixa levemente, sobre a mesa do café. O suspiro mais longo, uma palavra única depois de uma sentença agitada. Os olhos puxados para cima, como um gancho imaginário, enquanto fingimos escutar o barulho da rua mas escutamos apenas o barulho. O barulho que começa dentro, e se vai para os objetos. A ele delegamos a culpa. Estes são alguns momentos onde não falamos. Onde cabe o que não falamos. Mas onde a presença do que não falamos está ali, corpórea como o sol do meio dia, ocupando a mesa, resvalando nas bochechas. E mesmo assim sabemos, há algo a mais, sabemos. Sentimos com os dedos entre os músculos. Sua eletricidade. O escape.

Fico me perguntando quais foram estes momentos para minha mãe e meu pai. Se foram todos, durante a existência de nossa vida como família. Pelas manhãs, os feriados, os passeios, durante as brigas, durante as viagens, as reuniões do colégio, os almoços nos avós. Se era assim que começava na verdade o alarme tocar, o indicador do dia que vinha, da noite que findava. Se houve alguma circunstância específica quando eles quase falaram, quase saiu, deslizaram, naturalmente por pouco, não disseram. Ou onde, nas fricções dos limites, da impossibilidade, iam se confessar desesperadamente, passar a limpo, tirar de si, dividir conosco, com todos, o que ocorria dentro deles.

Às vezes penso que esses momentos eram na verdade todo nosso tempo juntos. E por isso parecia faltar alguma coisa, a não concentração total de um e outro, os meio sorrisos, os choros imperceptíveis, aquela sensação de algo a ser completado, do membro fantasma, do encaixe, de uma fenda. Como se isto pudesse explicar tudo. Seus rostos depois do trabalho, sua voz grossa ou doce na hora do lavar de pratos, do cortar a grama. Se quanto a chave do carro desaparecesse, ou um livro, ou a senha do cofre fosse esquecida, quem eles buscassem achar realmente fosse ela. E esta impressão que eu tinha, dos meus pais sempre à beira da porta, do medo infantil do abandono, deles nunca mais voltarem na verdade existisse por não estarem mesmo completamente ali.

Se você prestar bem atenção Aninha, estava lá sim. Nós não éramos os únicos para eles. Se você prestar bem, bem atenção, assim como eu fiz, estava ali o tempo todo. Uma história da qual nunca fizemos parte a não ser como testemunhas desavisadas. Meu irmão pegou o álbum de fotos e disse, viu? – e apontou para uma mulher loira, no canto de uma foto. Ali está. Esse era o dia do casamento de papai e mamãe, e a mulher aparece em uma gigante foto de família, com mais de trinta pessoas, quase saindo pra fora da fotografia. Ali está ela. É alta, seus olhos são curvados, como dois sorrisos, seus cabelos compridos louros quase cinzas. É bela, isto é inegável. Nas próximas fotos, a mulher quase sempre está lá, e em uma, os três dançam juntos. Papai e mamãe estão muito feliz, e dividem uma gargalhada no ar. Em outra, só com os três, mais silenciosa, os dois olham a mulher, que olha a câmera. E seus rostos tem a ternura espalhada nos mínimos detalhes. Nessa época, já estavam grávidos de ti, né Aninha? Você nasceu pouco tempo depois. Buscamos outros álbuns, e de repente, aquela mulher, antes sem nenhuma importante, mera desconhecida, começa a aparecer em todo canto. Teu aniversário de dois anos, o natal em Botafogo. A viagem a aquele parque nacional, no paraná, jantares de meio de semana, reuniões de amigos. Lá estão os três, lá estão nós cinco. Até que um dia, apenas não esteve mais.

Eu fiquei ali olhando meu irmão enquanto ele narrava não só minha vida, mas até mesmo, minha vida antes de mim. O que eu fico pensando Zé, é o que mais eles não nos contaram. Mamãe e papai tinham uma namorada, grande coisa. Eles se amavam ou não, se davam bem ou não. Grande coisa. Mas o que mais não nos contaram? Como ela veio? Por que foi embora? Quando eles foram felizes ou não? E o que isso tem a ver com a gente. Você acha que eram felizes? A gente é feliz até não ser mais, Aninha. Ele possui uma sabedoria natural, é sincero em sua brutalidade. Então porque não nos contaram? Eu acho que nós sabíamos, de certa forma. Eu acho que agora, deve ser triste tocar no assunto. Como contar o final de algo que tantas vezes ficou por ser dito? 

Eu olhava os olhos de meu irmão mais novo como quem observa a atenção de um monge. Estava sendo justa com minha fala? O que eu também não o havia dito, por medo ou vergonha? Ou talvez até mesmo, excesso de felicidade? Meu irmão é muito atencioso e inteligente. Não tem medo de tocar em qualquer assunto. Meu irmão nos contou que era gay quando tinha nove anos de idade e fracassamos totalmente ao tentar ajuda-lo porque ele simplesmente parecia não precisar de ajuda, não precisar de nós. Estava pronto para o mundo e o seu tempo de sobra usava para nos ajudar a lidar com o nosso. Ao contrário de mim, constantemente, e mais agora, contornada pelo medo de perdê-lo. 

Tive muita vontade de chorar, agarrar suas mãos, o agradecer por ele ser quem ele é. Eu queria encontrar meus pais naquele momento, dizer que os amo. Me senti quase que indigna. Dizer que eles amam o amor, apesar do que aconteceu, que não sei, que eles tentaram, e acredito terem tentado de tudo, e que sinto que essa tentativa tinha a ver conosco também. E que tinha certeza que foi isso que fez o Zé ser quem ele é, não eu, talvez, se ainda der tempo, talvez um dia. 

Vontade de correr atrás dessa mulher, dessa desconhecida que por tantos anos, noites e manhãs, estava em nossa casa mesmo sem sabermos, estava nos objetos, no alinhamento dos quadros, no sabor das torradas, estava nos destinos das viagens, no sorriso de minha mãe, no bom humor ou no ressentimento de meu pai, e vice-versa, na tinta da parede, na coluna do telhado, estava no nome de nossos cachorros, no click por trás das câmeras, nos motivos do trabalho, no amor de meus pais, nos livros e filmes, no carinho dos cabelos de meu pai e minha mãe e portanto em nós também. 

De saber quem ela era, como está, se está viva ou não, se não quer voltar, dizer que sentimos sua falta, vontade de agradecê-la. De implorar. De dizer, eu também sei ser sombra. Depois pedir desculpa, se ela encarar mal minha expressão. Ou explorar mais o assunto, se houver um alívio em forma de abertura. E de quem sabe, longe de papai, mamãe e do Zé, só para ela, quem sabe, eu poderia dizer. Eu não teria a vergonha de finalmente admitir. E eu perguntaria, é aqui então, que vivemos? Os fantasmas? Ao que ela diria, se estivesse viva, se estivesse convidativa, se tivesse um bom humor, Não, não é, esta é nossa sina, estamos sempre em um lugar e em outro, em todos e em nenhum. Mas escolhemos, sempre escolhemos, eu sei, a relataria, e tão pouco importaria mais os outros. Seríamos apenas nós duas.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

o falecido

Os três se chamavam Raul. O pai nunca perdoou a mãe por ter dado aos filhos o nome de seu primeiro amante. Rafael, ele está morto, morto, Rafael, dizia ela nas poucas vezes que tocaram no assunto. Rafael tinha lá suas dúvidas. Nunca viram o corpo, nunca viram um documento, nunca falaram com alguém da família para saber se havia ou não ido para o depois da vida. Como se sabe se um morto se foi realmente? Depois do trabalho gostava de ficar na rede, tomando café, observando os meninos brincarem. Gostava muito do mais novo, tinha seus olhos, o chamavam pelo apelido de Zinho, para não confundir. O do meio era Rá, nem o deus egípcio do sol, e o mais velho, Raul mesmo. Por um tempo, pensou de tentar uma próxima gravidez, talvez viesse uma mulher. E aí botaria o nome de sua mãe, não de outra mulher porque nunca houve mulher como Sônia, Sônia sempre foi única, e também, tampouco é vingativo. Mas a ideia de dar a luz a mais um Raul no mundo o dava coceira nos ossos. Por dentro. Ao longo que as crianças iam crescendo, ia atrás das antigas fotos do Raul, o verdadeiro. Comparava seus rostos, suas simetrias. Talvez Sônia tivesse tentando recolocar Raul no mundo, a partir de sua própria barriga, vai saber. Talvez ele fosse apenas um meio para isso. Aos amigos dizia que Raul era o nome de seu avô e o nome dos meninos era promessa antiga. Com promessa não se brinca. Só sua família sabia a verdadeira história que o cartório não conta. Os irmãos riam de sua cara, a mãe sentia pena, sabia o quanto sofria. É só um nome, ela dizia, tentando espantar o resto dos familiares. Tu és o pai dos Rauls e isso é tudo o que importa, eles te obedecem, te adoram e te seguem. E isso é tudo. Este comentário da mãe o trouxe uma nova perspectiva. Desde desse dia o rancor se transformou em uma forma diferente de carinho com o falecido, uma outra filiação. Sentia-se o rei dos quatro, de todos os Rauls.

frigorífico

Muito tempo se passou desde a última vez em que se viram mas apesar disso sabia de sua situação. Cleia havia ido embora há pouco, levado as crianças. Colocou tudo que tinha dentro do carro e dentro é muito longe, vai até o Mato Grosso. De repente, ele viu que o que tinha era quase nada. Os móveis, os armários, os eletrodomésticos, o cachorro. Era tudo dela, cabia em dois par de rodas e sabia se fazer sem ele. Mudou para a casa da mãe, com mais quatro irmãos, dormia no sofá. Na primeira semana, comprou uma colher de massa. Sua própria colher de massa, por um tempo o humor melhorou, pensou em voltar a estudar. Mas logo perdeu o emprego foi ficando triste, recolhido. Suas famílias ainda eram próximas, as pessoas conversavam, fofoca de bairro. O Gelson tá mal, coitadinho, disse sua mãe, enquanto costurava uma toalha de mesa. Eu sei, ele não é desses, retrucava enquanto tornava a visão parte do alto, mirando o teto da casa, como se a solução estivesse acima. Talvez levar o amigo para uma viagem. Talvez se se divertissem, dançassem, fossem ao baile. Uma feijoada, para que tudo melhorasse.

Nesse dia o Gelson apareceu no portão. Corre, corre irmão, disse. Os dois entraram no carro da mãe dele e foram até a 101. Nem se questionou, apenas entrou no carro. Não importava aonde ia, qual seria a emergência. Se corriam para salvar alguém ou safar a si mesmos, se Gelson havia feito besteira e agora eram dois, se era um cúmplice, um parceiro de fuga ou apenas um companheiro de viagem. Quando eram jovens se encontravam e só, sem nenhum motivo. Não faziam nada por horas, ficavam na calçada conversando, jogando bola, apostando ficha. O Gelson era seu amigo mais gentil, esperava ele terminar as frases, encontrar as palavras certas, quase nunca o julgava. Tirava sarro do seu cabelo, das suas roupas, porque assim tirava sarro de si mesmo, mas nunca do jeito dele, da timidez, do fato do pai ter ido embora, como os outros meninos costumavam fazer. E sentia-se abraçado como quando, aparecia sem avisar, dividia um pedaço de sanduíche. Quando dizia, é a tua cara. O que mané? Se fazer de salame, é a tua cara. Tinha os olhos com um tipo de castanho claro que imagina possuir a terra jovem, quando recém chega em uma cidade. A terra jovem se um dia a terra já o foi. Possui os olhos da primeira vez, das primeiras chances. Das tentativas que não cansaram.

Aperta o cinto, vamos pra BR. Um caminhão tombou lá faz uns minutos, o Cadu tava por  perto, ligou a pouco.

É pra hoje.

Achava que a qualquer momento, lançaria mão de um grande segredo. O castanho havia marcas de cansaço, de quem segura algo por muito tempo. Talvez só estivessem mais velhos, mais cansados, e só.

Tu te lembra meu irmão, o Prisma.

Claro.

Voltou, cansou da fazenda.

Aquele lá tem jeito pra política.

Por que?

Convenceu todo mundo a dar a poupança dele e se foi pro mato.

É uma família esperta.

Tenho as minhas dúvidas.

Pois agora voltou e tá sem dinheiro nem a gente. Só que tem um dedo a menos. Perdeu, na serralheria.

Se eu fosse perder um dedo acho que seria o do meio. Ninguém perde o dedo do meio. Seria um grande feito.

Tu é maluco.

O carro começou a desacelerar, Gelson o descansou no acostamento. Em frente, o caminhão branco estava atravessado no canteiro, com as portas abertas. Os dois correram em direção ao automóvel, ao longe chegavam mais homens. Foram alguns dos primeiros, tiveram sorte, pegaram as melhores peças. Enquanto se aproximava, notaram a água no chão, se acumulando, e um cheiro muito forte. O automóvel parecia um animal cansado, desmaiado em meio a uma longa viagem. Uma baleia branca, com seu óleo precioso à mostra. Era um sinal que algo podia ser interrompido. Um sinal de sorte.

Pega desse lado.

Gelson puxou o corpo do bicho. Deviam ter mais de 100 lá dentro. partidos ao meio, com as costelas à mostra, ainda com as patas, separados de sua pele, de seus extremos. Vivendo de ponta cabeça sua pós-morte. Era muito pesado, não havia como carregar nas costas, estavam muito fracos os dois. Tirou o casaco, o colocaram no chão, e ali puseram a carne fresca e seu recheio de ossos, a arrastando até o porta-malas.

Ele e Gelson tinham um cheiro fresco, um cheiro de força, do suor, do sol, o músculo daquele boi, o cheiro de água, de terra, de verde, início da noite. Era um cheiro que temperava de algo que já passou. Conseguiram pegar mais uns três pedaços, encheram o carro. Enquanto davam partida, viam dezenas correndo com as carnes nas mãos, fazendo fila, se organizando na pista em torno do incidente.

Isso vai dar pra meses, disse a Gelson. É comida pra dedéu.

Testemunhou seu primeiro sorriso em meses, um sorriso esticado, que não se rende fácil. E teve a certeza de que confiava mais no amigo do que na sorte.

sábado, 22 de agosto de 2020

diários do dia 27 de agosto

Zuvenir do frigorífico

Saio do frigorífico correndo, não tomo banho nem troco as botas. Cortei porcos o dia inteiro, tenho a impressão que o mundo é uma baba branca, como a luz sobre o galpão. No ônibus, não vejo direito a parada, o clarão avança. Uma mulher me olha com agrura, tenho os pés no sangue, a vida é assim, e ela sabe. Não paguei o Bernardinho, nem confirmei a janta lá na prega nove.  Tenho essa impressão que algo escorre em mim como uma graxa. Que deixo um rastro inconfundível. Que na noite quem brilha sou eu.

Anacleta do ginásio

Ignoro a diretora. Tenho manter qualquer palavra ao alcance, sou ligeira, já dizia minha avó. Sei limpar um sapo durante o pulo. Estou atacada da mesmice, queria dar-me por caidinha, em qualquer beco que meu desse de convite. Meus alunos se gabam de empurrar as tarefas como nós os adultos empurramos os anos. Eu também já fui jovem. Fiz reza em banco de praça, achei poder trocar uma desculpa por desconto na venda. Eu também já disse além da conta, ralei os joelhos, e me achei a número um do juízo. Tenho cabelos embaraçados pelo pesadelo da sesta. Vou incomodar minha amiga Rose, ver se ela topa dar um perdido.

Isaura a estudante

Ímpeto e isca. Qual o disfarce? Lira e Lanterna. Qual é a pegadinha? Não como há nove dias mas não cairei deitada, tenho fé. Vou ser escrita da fome, veja só. É aí que a língua verdadeira aparece. Esse e o país da dança, diz ó meu pai, pois vou dançar e cair em pé. Porque essa é a comida do país, e a escrita é o adiantamento que não pagamos jamais. Pagar com o que? Entre o mísero e o suposto, resta o que?

Lira a musicista

Ato de fé é não botar o olho. Meus pais caíram porque não rezaram. Digo, não sou religiosa. Mas boto altar onde der, invento um púlpito em uma laranjeira, numa fatia de engano, num canto do banco. Tenho de prova meu momento único: essa flauta doce. Hoje eu rezo a amoreira aqui de casa, rezo dona Sebastiana, com o chorinho dos indomáveis. Faça o que quereis, diz minha música a dona Sebastiana, seja seu próprio azar e se defenda. De pé ao muleque, de asa, a tua curvatura, diz o chorinho da flauta. Faço encomendas de trufa, pra lembrar de apegar-me ao dinheiro. Nem tudo é guia pra solução.

Plínio o comediante

Hoje as pessoas riem diferente. Riem sozinhas, depois de muito tempo. O tempo é precioso o malabarismo do palhaço são as horas. Tirei nenhuma nota no metrô, um tipo alto me encarou feio e passei malos bocados. Eu o disse para tomar um jasmim, o chá, ele por fim não falava minha língua. Queria é briga, esse idioma comum. Nós os palhaços inventamos a briga mas a piada é a fuga. Se a piada não funciona, ficamos com uma cara cem por cento maior e mais acertável. Uma vez li que a diferença de um poeta e de um palhaço é que o primeiro finge não falar nada para falar tudo e o segundo acaba com tudo dizendo nada. Eu só rio no trabalho e o poeta só ri sozinho, diria a Ciro, meu ex-companheiro de quarto, que largou o circo muito antes, antes do circo ser ele mesmo a piada, para virar professor de letras.

inverno

fazia anos que não tínhamos um inverno tão rigoroso, me havia dito minha mãe. desde quando eu era pequena, meu contou minha avó, não via o gelo chegar no campo dessa maneira. vivíamos em uma casa de madeira, na fazenda de meu avô e era difícil se aquecer. usávamos um fogão à lenha, de ferro, muito antigo, que estava instalado no centro da sala. dormiámos em volta dele, aninhados, contra a noite. lembro da última visão do olho antes de dormir, a janela suada com a umidade, os pinheiros se agitando ao longe, sobre a luz única da lua. a respiração de meu avô lembrava a de um avião monomotor, e de vez em quando, minha avô falava algo dormindo, normalmente, uma discussão ou um pedido de perdão a sua irmão Nelgésia, com quem não falava há muitos anos. às vezes, nas noites raras que se deu sua presença, eu podia ver uma geada no início da manhã lambendo os vidros e nossa pequena casa se convertia em um submarino celeste. acontecia muito cedo da manhã e eu gostava de acordar e contemplar aquela imagem. era um outro tipo de frio, um frio muito acolhedor. parecia que nadávamos em meio as nuvens, que durante a noite, em minha imaginação, a casa havia dado voltas pelo mundo, e durante o sol nascente, retornava silenciosa. parecia que eu e a casa tínhamos um segredo.

de dia, ajudava minha avó os afazeres, enquanto meu avô e minha mãe manejavam os animais, cuidavam do rebanho. era um rebanho pequeno, mas que dava muito trabalho. cozinhávamos pão e biscoitos e vendiamos para os vizinhos nos dias de sol. à medida que o frio aumentava, cada vez era mais difícil encontrar madeira seca para o fogão. aos poucos meu avô começou a usar o antigo galpão como combustível para o fogo. cada dia retirava um pedaço da parede, ou do telhado, até que queimamos tudo. depois, começou com nossa casa. primeiro, o segundo banheiro, depois, o quarto de minha mãe, o meu e de meus avós, de movo que a sala, que era junto com a cozinha, virou o único cômodo que restava. ficávamos entranhandos, comendo sopa, bebendo quentão, enquanto víamos as paredes se perderem no fogo, enquanto um velho guarda-roupas de repente nos aquecia por noites a fio. minha avó chorava baixinho enquanto ninguém estava vendo, à medida que as paredes de seu antigo quarto, onde passaram mais de 30 anos, se desfalecia em sua frente. impossível imaginar o que sentia nesse momento, mas imagino que o fogo liberasse junto com seus gases diversos tipos de memórias, e que as memórias se soltavam em nosso pequeno e único cômodo, de modo que, não era apenas mamãe que estava lá mas mamão com dois anois, com dez anos, mamãe gripada, vovó jovem, vovô desaparecido, vovô aparecido, meus avós recém casados e brigados, todas nossas versões acumuladas em pequenos metros quadrados, o que deveria ser um tanto doloroso mas também um tanto bonito, de alguma forma. meu avô era o responsável por separar a madeira e a cada dia que passava tornava-se mais silencioso, não sabia dizer se era indiferença ou um chamado nato a praticidade.

para mim, tenho memórias muito diferentes desse tempo. gostava de dormir com toda minha família junta, embora perdesse meu quarto. gostava de ouvir as histórias contadas por noites à fio por minha avó e minha mãe, com diferentes versões de como nossa família foi parar naquele pedaço de mundo, de como cada um tomou o rumo que tomou. não passava pela minha cabeça que teríamos que reconstruir a casa, um uma hora, depois de queimarmos tudo que conseguirmos, e de que estávamos cada vez mais pobres e mais à mercê de uma possível tragédia. naquele momento a casa era tudo que tínhamos mesmo que necessitando ser queimada, havíamos uma casa para queimar. além de tudo, havia algo em minha mãe que me deixava tranquila. enquanto nossa residência se desmontava, a cada noite que passava, eu via seu humor melhorar. quase como um alívio, possuía um ar de satisfação desenhado em seu rosto, como se a tirassem o peso do mundo. talvez fosse coisa do calor, pensava naquela época. logo no início do verão, nós duas fomos embora.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

pólvora

Estavam na casa de Elvira, em seu quarto, tomando refrigerante e comendo salgadinhos.

Ana Clarice tinha falado que já tinha deixado uma agulha no estojo da professora, e Inês admitiu, já tinha beijado, nas férias, um menino que conheceu na praia, mas nenhuma acreditava na história, os elementos simplesmente não batiam.

A mãe de Elvira a obrigou convidar sua vizinha, Lúcia, para o pequeno evento e durante o tempo todo Elvira tutelava a menina com medo que estragasse sua pequena festa com as amigas. Detestava a pena que a mãe tinha por sua família, que a transferia para ela. Embora vizinhas eram famílias muito diferentes. A mãe trabalhava muito e criava duas filhas, sozinha, com a ajuda eventual dos avós, que tinha um certo dinheiro.

Eu matei um homem, disse Lúcia.

As meninas deram uma gargalhada de deboche.

Lúcia é muito magra e tem uma voz fina, como dos ursinhos de pelúcia que quando você os aperta, soltam frases pré-gravadas.

Elvira ficou morrendo de vergonha. Aquilo não servia nem de piada. Nem engraçado era.

Você não mataria nem um mosquito, disse Elvira, tentando trazer um ar cômico prolongado.

Um mosquito eu nunca matei. Mas um homem sim, insistiu ela, séria, enquanto metia a mão comprida na embalagem de petiscos de milho.

As meninas ainda não acreditando, começaram a fazer perguntas, para ver no que aquilo ia dar.

Como? Você o envenenou? Ou fez um pedido pro papai noel?

Eu dei um tiro. Eu não queria matar. Eu dei um tiro na perna dele. Mas havia uma artéria, disseram, uma veia, algo assim, muito importante. Ele sangrou e morreu. Não vi, fui embora antes.

Então, nesse momento, Lúcia puxou a manga e mostrou no pulso direito pequenas machas cinzas, pequenas bolinhas. Viu?, ela disse. Foi da pólvora. A arma era velha, não tava funcionando bem.

Nesse momento as meninas titubiaram. Lúcia começava a ficar cada vez mais estranha. Nesse ponto, era também, a única a comer e beber naquele quarto, como se nada tivesse acontecido. O tom de piada já havia se desfalecido e as meninas estavam agitadas. Elvira trouxe pizza e tentou amenizar colocando qualquer desenho bobo na televisão para elas verem, mas ninguém se importava.

Ana Clarice, nesse momento, levantou a voz e disse eu tirei a agulha. Eu botei a agulha mas eu tirei antes da professora voltar, eu achei errado, confessou chorando. A verdade é que a família dela não ia muito bem financeiramente, os pais temiam perder a casa, ela teria que sair do colégio privado, e rapidamente se deu conta de que a professora não tinha nada a ver com isso.

O restante das meninas em um gesto de solidariedade abraçaram a amiga e olharam para Lúcia, esperando que ela também desmentisse sua história, ou fizesse os ajustes necessários a fidelidade.

Eu matei um homem, disse Lúcia novamente, enquanto desenhava com lápis de cor. Olha, eu estava aqui, tá vendo? E apontou pro desenho, o gramado em volta da casa (Lúcia desenhava muito mal). Ele ia machucar minha irmã, ele entrou na casa, quando foi agarrá-la, dei um grito. Ele saiu, e voltou. Nesse momento eu já estava com a arma do meu avô, que ficava no cofre. Eu sei a senha do cofre, eu sei a senha de tudo naquela casa. Pedi para que fosse embora. Quando ele avançou eu atirei.

Minha mãe nunca soube direito o que aconteceu, nem a polícia, falou enquanto as meninas a olhavam sem piscar, mudas, em um misto de medo e admiração, a firmeza de Lúcia era de se invejar de tão natural e cristalina. Tem coisas que só as crianças sabem. Que só as crianças passam, só elas sabem, nem eu e minha irmã, disse largando os lápis e se aconchegando no colchão.

Elvira a este ponto já estava completamente devastada. Sua festa do pijama tinha sido um terror. Ao invés de vídeos de dança, gravações, fofocas de namoradinhos, de falar mal dos adultos e das meninas da outra turma, estavam ali em um clima de sepulcro, falando de morte, separação, problemas financeiros. Para não pior a situação, com medo que outra delas entrasse em um rompante de choro ou que Lúcia continuasse com suas besteiras, mentiu que a mãe tinha mandado desligar a luz e irem dormir, pois já era muito tarde. Nesse ponto, todas já estavam silenciosas como a madrugada mesmo.

Nos dias que se seguiram, várias amigas vieram falar com Elvira, em separado, para comentar sobre Lúcia. Queriam seu número, queriam dicas, queriam seu serviço. Cada uma tinha um problema diferente, mas muito parecido. Elvira começou a acreditar que a história era verdade. Mesmo se não fosse, as meninas acreditavam e agora a idolatravam. Mesmo se não fosse, Lúcia tinha aberto uma porta impossível de ser fechada, tinha se tornado uma espécie de mártir.

Elvira ligou para Lúcia e contou sobre as amigas.

Meus serviços? Disse ela. Acho que elas não compreenderam muito bem, não é sobre mim. Tudo bem, também gostei de suas amigas, falou. Elvira não deixou escapar um que bom, um tanto entusiasmado.

Sexta-feira de noite, na sua casa, logo depois da aula de spin de minha mãe, diga a elas para estarem lá. Começaremos o treinamento, complementou antes de desligar o telefone.

casa

Amo minha mulher mas faz muito tempo que não nos vemos. Começou aos poucos. Depois de uns três anos de casados, ela me disse, pimpão, me chama assim minha esposa, vou passar uns dias em Nova Petrópolis, para trabalhar nas minhas anotações. Apareceu duas semanas depois. O livro sobre arquitetura rural do século XVIII não estava acabado mas faltava muito pouco. Depois, ficou mais recorrente. Passou as férias fora, viajando com as amigas, três meses ao todo. Me mandava postais, sempre, com pequenas frases que eu guardava como amuletos, joias, de suas aventuras. Como nos víamos cada vez menos, tinha vezes que me avisava quando já tinha partido, depois de um longo tempo. Eu cuidava da casa, mantinha nossos móveis limpos, as contas pagas, sempre fui do tipo caseiro, e lá pelas tantas, recebia um e-mail seu ou um telefonema dizendo que estava no recôncavo baiano, mas que antes, tinha passado um período no peru. Eu respondia perguntando como ela estava, era sempre importante para mim, saber se minha mulher estava bem. Por vezes, a vida dificulta vivendo assim, demorava até conseguir contatá-la, e assim fica difícil seguir as pendências no cotidiano. Agora não posso, estou em uma vernissage, mas sim, o blazer azul é o melhor mesmo para seu evento pimpão. Me mande os papeis por correio, que eu assino, pimpo. Diga pra mamãe que a amo. Quando voltava era como se nunca tivesse ido, comíamos espaguete caseiro, víamos filmes antigos, limpávamos o apartamento. Por um período fiquei mais de três anos sem falar com minha esposa, até que ela enfim mandou uma mensagem dizendo que passou por um período difícil mas estava melhor. Raras vezes a fui visitar, não gosto de aviões, ficávamos abraçados por um fio de horas, olhando a cidade onde ela morava, respirando o ar que ela respira, tentando imaginar como se é viver no pacífico, no atlântico. Às vezes penso que temos um amor açucarado com a calma, e agradeço por isso. Todas as vezes que pedi que retornasse, ela veio, que foram umas duas ou três, na morte de minha mãe, em um período que fui demitido e me senti extremamente doente. Um dia me ligou e disse que tinha conhecido alguém, isso já havia acontecido outras vezes, mas nunca havíamos falado. Minha mulher me perguntou se havia problema estar grávida de outro homem, nunca falamos de ter filhos, ela disse, eu falei, eu sei, e eu disse, que ela que deveria saber. Ela acabou perdendo o bebê, o relacionamento não aguentou, ela me disse, só me disse isso, já em nossa casa, chorando com um rosto nublado. Passou-se uns anos e dessa vez fui eu que fui até ela, e a pedi um filho. Estava me sentindo sozinho, acho que ela intuiu. Demorou um tempo para engravidarmos, nossas tentativas eram por vezes engraçadas e por outras lembravam nossos tempos de adolescentes, me deixando muito emocionado. Logo que deu a luz, minha esposa voltou ao seu apartamento, faria uma residência na cidade do México. Amo muito o menino, tem os olhos da mãe, olhos vivos e angulosos. Sempre o mandou presentes, retratos, livros, lembranças de suas viagens, e quanto as festas de fim do ano sempre tentamos estar juntos, às vezes vamos a visitar, as vezes ela vem. Agora já está maiorzinho, um pivete, doze anos. Nos divertimos muito nesta casa.

porta-malas

Começou comigo perguntando, Flávio, você confia em mim Flávio? E foi isso, ela disse, virando as última gotas de chope. Então o Flávio, esse meu amigo, ela disse levantando o braço imediatamente pro garçom, ele disse sim, claro, que confio, ela contou interrompendo para pedir duas cervejas a mais. Ó, eu disse pra ele, ó Flávio, se confia em mim então entra naquele porta-malas. E foi isso ela disse. Eu era muito parecido com esse Flávio, aparentemente. Barba comprida, cabelo crespo, escuro, enrolado, vinte e poucos anos, cara de tédio, falo pouco. Enquanto ela falava, olhei através da janela um carro vermelho, que poderia ser o dela. Fiquei imaginando o interior daquele porta-malas, o cheiro de gasolina misturado com goma de mascar, com desodorante de florais. Os fiapos de luzes que entravam pelos pequenos buracos.  Será que ela ficou em silêncio durante todo o percurso? Ou durante essa viagem, que ela não disse nem para mim nem para ele par aonde era, não calou a boca por um segundo? Seus dedos eram muito comprimidos e as unhas muito bem feitas. Será que ela estava falando metaforicamente, este tempo todo? Penso se poderíamos ter algo em comum a ponto de aturarmos as manias um do outro e trocar confidências. Talvez se fossemos amigos de infância, ou se ela estivesse se afogando ou eu me afogando, e tivéssemos esse elo dos sobrevividos untando nossa amizade. Talvez se tivéssemos a mesma história, portanto, o mesmo lado da história, um pai que nos abandonou na tenra idade, um chute na bunda depois de ser traído, este é o tipo de coisa que imediatamente liga as pessoas, como uma marca de nascença, dá uma origem visível aos olhos. Talvez ela estivesse ali naquele bar em meio da estrada me contando as coisas mais estapafúrdias para que eu faça o que os amigos fazem e diga você está maluca, isto está errado, pense melhor, e sirva como um sinal de alerta. Ela era bonita mas se esforçava para ser feia, com a maquiagem semi-acabada, sendo grossa à toa, quando estava agradando demais. O Flavio entrou na mesma hora, nem foi no banheiro antes, contou séria, olhando a tv atrás de mim onde passava o reprise de uma luta de UFC. Será que Flavio estava ali, naquele Monza vermelho? Quem tem um Monza com uma tintura tão nova, tão bem cuidada, com certeza, é alguém com apreço a certas coisas especiais. Senti um reflexo breve de abraça-la até que ela parasse de falar, nada sexual, apenas a oferecer uma pausa. Alucinei sentir o roçar do metal na minha nuca, do carpete, no meio das minhas pernas, sentir o ar rarefeito. Limiar a minha visão a pequenos pontinhos de luz perdidos na estrada e confundir o silencio da noite como um ar a mais, que de pouquinho em pouquinho, enchia meus pulmões, enquanto sentia o balancear do carro durante as curvas, relaxando nos abalos de seus movimentos, sem saber aonde estou indo.