terça-feira, 11 de abril de 2017

5 quase lácias (parte II)

VI
uma palavra já foi usada também para reter um vazamento. ele era pequeno ou era grande-se e pensava-se pequeno. no início funcionou. depois, de improvável, a cola da palavra não se desmanchou, pior. virou já uma outra palavra. quando tentaram consertar, quando enfim, lembraram onde estava o vazamento do prédio inteirinho, não conseguiram a convencer a sair de lá. é muito complicado ganhar uma discussão com alguém (no caso algo) se não consegue-se nem ao menos o pronunciar direito.

VII
há muitos e muitos anos, antes do nosso país sequer pensar em vir ao mundo, existiu em outro continente um evento muito curioso. o que ocorreu é que havia uma grande cidade, mas um belo dia, em uma discussão na praça, no bar, no puteiro, ou nos três, ninguém sabia mais o que era uma cidade e chegou-se a conclusão que poderia ser qualquer coisa. várias pessoas resolveram então ter uma própria cidade, dentro desta falta de sentido. as cidades novas e velhas se reuniam nesta grande feira. vendia-se estátuas de bronze, tulipas, pedras vulcânicas (boas para massagem), peles de marsupiais (gigantes nessa época), absolutamente tudo. em um setor específico fazia-se um comércio muito singular e se você passa-se pelas banquinhas não veria quase nada, mas se, visse com os olhos, veria muita conversa sendo trocada, e talvez entenderia, ali negociava-se, vendia e se revendia, palavras. pessoas comuns, havia também, outros comerciantes ou agricultores, uns buscavam uma nova palavra, como por exemplo para sua nova cidade, rua, ou um filho que julgava muito especial, outros, nas mudanças de ares geopolíticas, gostariam de garantir pertencer para sempre, para suas cidades, palavras que julgavam empáticas, belas, elegantes, dignas do representar de sua personalidade ou do verde de suas ruas.  havia um terceiro tipo (sempre há, é claro), aqueles que cansados de uma certa tipologia apenas pagavam para mudá-la, por tédio, esporte, ou desejo de poder e grandiosidade. por exemplo há a palavra anedota, que um dia significou novidade, e por uma briga familiar, uma humor de um alcoólatra, ou até mesmo vingança, dizem ter sido convertida à mando para o que hoje é. ou a palavra assassino que antes da negociata nesta ou outra feira, era apenas usada para denunciar aqueles que gostavam de haxixi, uma bebida alcoólica vinda da maconha, e que fora comprada ou roubada, por aqueles que não eram árabes, de onde antes pertenciam esta palavra. há boatos de que essa feira possa existir até hoje.

VIII
um vez uma pessoa muito importante mas ao mesmo tempo com auto-estima muito baixa leu uma carta que veio do outro lado do mundo. nesta época na verdade não havia cartas. papeis, nem mesmo, tábuas de argila. mas sim um mensageiro que andava de um reino a outro carregando uma mensagem e no seu destino a destilava cuidadosamente em voz alta. certa vez o mensageiro estava gripado e quando esta pessoa foi ouvir a tal carta, não entendeu uma das palavras. fora mandado então, depois de algum tempo, uma mensagem em resposta, e na dúvida, na vergonha de não entender e talvez comprovar-se burro e desletrado, esta pessoa colocou a tal palavra também em sua mensagem. os dois reinos então ficaram muito próximos, ninguém sabe até hoje porque, mas hoje fazem parte do mesmo país.

IX
havia uma senhora que sempre saía de casa com uma palavra dentro da mão. é que ela cuidava muito dessa palavra. não, não era uma senha. nem o nome de um médio ou uma erva milagrosa. ela sentia que a palavra era multiuso, portanto estava segura, poderia sim virar um degrau ou um salva-vidas a qualquer momento. havia uma variedade muito grande na morfologia da palavra. poderia ser usada em qualquer situação. era como um amuleto. quando retornava para casa, às vezes tinha que fazer compressas na mão, mergulha-las em folhas de maracujá. a senhora tinha atrite. palavra aliás que não gostava, é claro.

X
uma vez um menino saiu por aí oferecendo uma palavra. todo dia por alguns anos. batia na porta das pessoas oferecendo a palavra. quando uma garota o achava simpático ele ao invés de usar as suas palavras não. usava esta palavra. ele tentava oferecer a palavra para o máximo de lugares possíveis, até mesmo, food trucks de cachorro quente ou até para o cães levados a passear no parque. o plano do menino era simples: quanto mais oferecesse a palavra mais ela cresceria, maior assim, ele seria. o menino só se embrulhou em uma questão. guardava a palavra no bolso da calça, e não na bolsa da camisa, ou até dentro do peito, como a maioria. na hora de tirá-la, caiam diversas outras coisas, algumas pessoas pessoas se assustavam, outras, por ele não a olhar mais nos olhos desconfiavam. não se sabe o que ocorreu com o menino. mas a palavra continua aí.

uma cidade desaparece

houve uma cidade que desapareceu. um dia estava, no outro não. você pode pensar como se desaparece uma cidade. se uma cidade são várias. não é como um avião. as casas e as ruas podem retrocederem até virarem matou ou deserto. eis uma pergunta. ou como o império inca se vão as pessoas, ficam as construções como pensamentos petrificados? ou o local apenas some do tempo como um buraco negro que cansa da brincadeira de jogo do sério? eis a centésima primeira pergunta. pois essa cidade apenas não está lá. tudo que havia não está. contudo, existem rumores. uma outra cidade a milhas e milhas de distância, não seria exagero dizer outro lugar do planeta, desapareceu com essa cidade. nós sabemos que desaparecer aqui é um jeito menos franco e mais belo de dizer que a esperança usou seu último traje de gala. a cidade foi morta diz o rumor. a cidade que não gostava muito da outra pelo que viam os ouvidos por milênios e o sonho virtual por dias. falam até mesmo que não fora algo repentino. o governo dessa cidade inclusive fez um concurso onde foram analisadas as melhores ideias de desaparecimento. por meio de uma votação a população também pode escolher o melhor enredo, a melhor história oficial a ser usada para explicar o porque disso. tempestades solares, doenças cromossômicas, nuances extraterrenos. placas tectônicas. prêmios foram concebidos. e claro, plebiscitos. era uma cidade muito democrática. o que a cidade que não desapareceu não contava era simples. a cidade ficou famosa, e apesar das explicações, a vida dentro da vida das pessoas tende e muito a ouvir o mistério: este segredo coletivo que muitos guardam e poucos compreendem sozinhos. a cidade que desapareceu virou objeto de culto, de adoração, e hoje milhares de fiéis aguardam a sua volta.

um rio que fala quando some

Nesta região no centro de nosso país muitas pessoas desapareceram. Desapareceram no mesmo ano. Talvez empilhadas na mesma hora. (Difícil saber o tempo dos desaparecidos, os desaparecidos os levam com eles). A região é cortada por um grande rio que na língua dos originários significa lugar onde se retorna. ( Embora lugar nessa língua também seja o nome de um pássaro). Ninguém sabe disto, porque ninguém os ouve. As pessoas contam que elas desapareceram, mas se várias pessoas desapareceram no mesmo local, o que isto quer dizer? Os originários sabem. Eles estão lá desde o início de tudo. Falam com as moscas, que, trazem notícias das copas das árvores. Foram eles que nos contaram. Uma ou duas vezes por ano o rio pisca. Simplesmente pisca. Como se fosse uma falha, um tilt. Em fração de segundos toda a água do rio some, como se fosse ele mesmo o desaparecido, como se fizesse jus a toda aquela gente. Neste momento, embora minúsculo, os corpos dessas pessoas podem ser vistos no que seria o fundo do rio, alguns ainda segurando suas armas, outros em pedaços, mas ambos visivelmente aparecidos. Talvez não mortos mas. Constantemente assassinados. Os originários dizem que não cabem a eles tratarem disto, embora, se preocupem. Afirmam que pode se tratar de uma ameaça por parte do rio, e aquele, a quem o rio responde. O rio esta bravo. Contam. Pode sumir para sempre. O povoado usa suas águas, para a sede, o alimento, a diversão, a higiene, com muito respeito aos inquilinos que lá foram acamados. Enquanto isso, é difícil convencer nosso país a visitar o centro de nosso país. Enquanto há água nas torneiras sempre é futuro.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

em volta das cabeças

tiara, ele (você nunca usaria) disse. disse: que eu não estava lá. porque eu nunca usaria uma. o que? tiara. tivemos conversas sobre isso um dia. no meio de outro cacho de dias que conversamos sobre tudo, éramos íntimos a tal ponto, inclusive isto. esta coisa de falar dos objetos. como quem os acarinha para ver se acordam outras utilidades. convencer uma faca a ser outra coisa. isto. tiaras. mas fui. estava lá. vi o menino uruguaio fazendo seus malabares como se fossem o retrato de sua língua tentando falar as vogais brasileiras. a última hora de um conhecido, escolhido para beber chimarrão entre os amigos e tocar sua flauta. eu estava lá. a jussara, a lídia, o joaquim, o enzo, a agnes. também estavam e para provar isto vou dizer: bizarramente com a calça da mesma cor, um azul bebê, cor que pouca gente usa hoje em dia, menos eles, por coincidência todos no mesmo dia. vi nosso ex-colega escalar um morrinho de grama e simplesmente chorar. para que todos vissem. como uma bandeira. imune a vergonha ou fazendo da vergonha algo que desimuniza seus inimigos. nós o vento. a faculdade, fechando. nossos futuros uma rachadura no ovo. misterioso, o cozinheiro. um binóculo que caiba nesse cadeado, por buda! o governo acabando com nossa faculdade, nossa porque pública, nossa porque cenário das redes de olhares, dos cabelos perdidos, dos sonhos quando já em casa, em nossas camas. o governo assim. jogando os fósforos não tão acesos mas acesos, descartando em nossa universidade, até que tudo exploda e vá às favas. não tínhamos muito o que fazer naquelas tardes. tinham-se acabado, cancelado, as aulas. eu recém chegada do Peru, depois de uma tentativa de desvirar alguém que andava de costas (não deu certo, o outro lado, fazia seta para trás também). eu sei que ele não gostou disso. o meu amigo. o que não me viu. meu amigo. agora desempregado. há algumas horas atrás o umbigo de meu avião roçou seu duro casco nessa cidade. ele disse: vamos amanhã. eu disse. vamos. pra mim era um tanto mais sobre salvar nossa passado, antes que qualquer coisa. nossos quatro ou seis anos, para sempre miniatura em um dos corredores de nossa querida universidade nacional. para ele era sobre o futuro, principalmente ele. confundia o rosto com o campus. se expressam juntos. a boca, era o restaurante popular. os ouvidos a biblioteca (com quatro andares, pois são vários os caminhos da audição). eu sei. tanto é que fui. o procurei. sentei sozinha, um tanto afastada, direta na ex-grama, terra, puro marrom de mini planetas. úmido. longe dos nossos amigos. longe do último dia de meu conhecido, onde uma e outra vez, descansei os olhos em sua barba durante a argumentação gaga de um palestrante ou bêbado ou ambos. vi meu amigo, virei bigorna por dentro. virei rumo. me aproximei e ele me olhava, consideravelmente perto agora, e ele me olhava, mais menos longe e me olhava até que parou de olhar. era como se estivesse vendo tudo que não coubesse em meu contorno. não me reconheceu. simples assim. no outro dia conversamos pelo computador.  tiaras, ele ainda insistiu. você não foi. você nunca usaria tiaras. já conversamos sobre isso. eu sei que está chateado. é lá onde guardamos toda a memória do mundo. você me confundiu comigo mesmo. está tudo bem. são múltiplos os andares.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

(inserir palavra aqui)

O tio do meu tio acha que quando alguém desaparece, para fazer jus, alguma palavra tem que desaparecer também. Foi ousado. Como meu tio ensinou meu tio a dirigir e, passavam muitas noites tentando salvar a vida de um fusca velho, a palavra escolhida foi motor. Toda vez que alguém fala qual é o problema de uma máquina não da para entender direito. A combustão estão prejudicada porque o __ está velho. Esse é um exemplo. Mesmo quando alguém diz no sentido metafórico assim a soja é o da agropecuária é assim que ela chega nos seus ouvidos. Não da para se compreender. Quando alguém desaparece as frases são menos frases e mais algo perto do não entendimento. Apesar disso meu tio ainda tem a oficina, e anda por ai com seu fusca - só quando não chove.

terça-feira, 4 de abril de 2017

questões sobre desaparecidos

Os desaparecidos vão para outro lugar?
Quantos desaparecidos fazem um país?
Se um ou outro desaparecido vira desaparecido ao mesmo tempo nós os chamamos de desaparecidos ou já é outra palavra?
Um desaparecido por desaparecer automaticamente tem filiação com todas as pessoas?
Quanto tempo dura um desaparecido ou um desaparecido é todo o tempo de duração?
Os desaparecidos tem uma línguas que só eles falam?
Eles vão para um lugar diferente?
Como saber que se quando estamos falando quem na verdade está falando é um desaparecido?
Os desaparecidos fazem não existirem países no mundo?
Se um desaparecido desaparece em meio a fronteiras de quem é o desaparecido?
Várias pessoas podem ter o mesmo desaparecido?
Um desaparecido sempre é um número que pode aumentar?
O desaparecido é uma forma de morrer duas vezes ou de viver duas vezes mais?
O que define um desaparecido é não saber onde ele está ou se ele está vivo? Ou se está morto?
Se essa pessoa desaparecida não simplesmente desaparece mas um indivíduo em particular desaparece com ela isso nos faz o que desta pessoa?
Pode-se herdar desaparecidos?
Os desaparecidos, mesmo depois de anos, devemos esquecer seus celular por exemplo?
Só porque alguém esta desaparecido isto quer dizer que não podemos conversar com esta pessoa?
Um desaparecido pode por exemplo ainda possuir coisas como uma casa, um livro?
Quando alguém desaparece como saber se sempre botar a cadeira a mais ou a menos, todo dia como saber?
Um desaparecido pode virar todos os desaparecidos de um país?
Se alguém desapareceu digamos em um rio, podemos dizer que o rio desapareceu também? Ou que ele é menos aparente?
Pode só uma parte de alguém desaparecer? Ex.1. um braço. Ex.2. Uma memória de um corte no braço em uma situação terrível, correntes, eletricidades. Etc. ex.2. uma parte da perna?
Quando muitas pessoas que uma pessoa conhece desaparecem ela mesma pode se considerar desaparecida? Talvez não hoje mas no futuro?
Quando um país desaparece com alguém isso significa que até as pessoas não vivas podem desaparecer? Por exemplo. Até as pessoas que ainda estão quase dentro da barriga de suas mães?
Desaparecer é morrer em espiral?
Desaparecer é morrer em várias pessoas?
Quando morremos não sabemos para onde vamos. Dizem.
Mas quando não estamos mais vivos, isto quer dizer que ficamos?
Desaparecer é ficar em todos os lugares? É dizer que todos os lugares não são seguros?
Como surge um desaparecido?
Se a algumas pessoas não interessam mais os desaparecidos porque não dizer onde eles estão para que deixem de ser desaparecidos logo?
Uma pessoa que desapareceu há 40 anos atrás, e que foi achada recentemente, nos atualiza o calendário para trás?
Uma pessoa que desapareceu há 40 anos, e uma há 2 anos, podem ter tudo em comum inclusive será que elas se encontram em algum ponto?
Desaparecer alguém é a forma com que pessoas pobres de retórica e espírito tem de ganhar uma história confundindo o fim?
Desaparecer é um soco que não cessa?

Um desaparecido pode, lá, do centro de sua desaparição, mudar nossas vidas por completo?

comer com os olhos

Imagine isto. Uma pessoa com habilidades além do comum em computação. Imagine isto. Esta pessoa tem o hobbie. Esta pessoa é um homem ou uma mulher. Não importa. Não muda nada. Esta pessoa consegue burlar servidores com a mesma habilidade que você tem de pegar no sono durante o trabalho. Durante a aula. Inclusive durante as aulas nas quais o professor é você. (você deveria dormir mais sabia? Já ouviu falar em erva cidreira? Não funciona é claro, mas todos nós deveríamos acreditar em alguma coisa). Imagine que esta pessoa criou seu próprio jogo de computador com cinco anos de idade, mas hoje nem gosta tanto de jogos, portanto a idade desta pessoa também não importa. Teve um dia na vida dessa pessoa que ela acessou os e-mails de Frances Hollande só para treinar o francês e de fato compreendeu mais do que achava que compreenderia o que fez gostar menos da Frankia em geral, mas ei, o fato é, esta pessoa fez isto facilmente, seria como alguém ler correspondências no correio apenas com visão raio-x, seria como, visitar o museu de madrugada sem acionar nenhum alarme, entrar dentro de um pesadelo de alguém e descobrir todas as vezes que você aparece seguido de um grito. Imagine isto. Todos os dias essa pessoa gasta muito tempo do dia em frente a um computador como quem olha o mar-aberto, e tudo é possível, pois o buraco de minhoca já foi domesticado ao ponto de ser possível viajar para qualquer canto do cosmos. Esta pessoa poderia ser rica, andar de avião de graça, pedir pizzas sem pagar, ou depor mais uma falsa democracia. Mas ao invés disso ela só faz coisas típicas da própria pessoa que ela é. Coisas como isto: quando chega perto da hora da janta essa pessoa gosta de hackear alguém, alguém que não conhece de verdade, apenas pela internet. Ela entra nos cookies, no celular, nas conversas de bate-papo com os amigos ou a família com o único intuito de saber o que eles irão cozinhar, qual vai ser a comida antes de dormir. Às vezes demora um pouco para descobrir, não é algo que você pode simplesmente perguntar, precisa ser indicado ou dito. Às vezes, pela fatura do cartão de débito dá para saber se essa pessoa comprou por exemplo, talharim, molho missô, ovos, já sabe-se que ela fará, ou tentará fazer, um lámen, pelo que já sabe-se dessa pessoa, por exemplo, a pessoa é fã de boo-joo. Outras vezes alguém só manda uma mensagem dizendo que vai fazer um frango frito e assim é mais fácil. Quando sente-se como vontade de ousar, aprender algo completamente novo, gosta de entrar no computador de alguém lá do outro lado do planeta, achado a esmo, Mali ou Malvinas, e aprender um prato novo que nem sabe o nome. Imagine isto. Essa pessoa, e sua noite, ambas passadas assim. Cozinhando em simultâneo com alguém, um solteiro, uma família, uma reunião de amigos, os vendo pela câmera cortarem as cebolas, fazerem o próprio molho branco, eles lá, e essa pessoa em sua própria cozinha, preparando a comida juntos. Imagine que esta pessoa isto é algo que a acalma e só. Não é porque sente-se sozinha, embora esta pessoa tenha poucos acompanhantes. Imagine que esta pessoa gosta do fato apenas e simplesmente de aprender receitas novas, e muito mais daquela frase que diz, a comida ela aproxima as pessoas.

a amiga de uma amiga minha era vinte e quatro horas

Amiga de uma amiga minha foi colega de faculdade de uma menina que fazia isso. Ao vivo. Vinte e quatro horinhas. Ela tinha de fazer streaming de absolutamente tudo, absolutamente parava nunquinha, patavina nenhuma, era pela celular a transmissão. Na hora de dormir, pegar o ônibus, tomar banho, ir ao cinema. Não precisava o tempo todo aparecer diante a câmera, mas bastava estar ligada, no mesmo local onde ela estava. Seu cliente, ou seus clientes – não sabemos -, tinham o desejo do alcance interrupto, da espiada contínua, mesmo que, a câmera não mostrasse nada mas tivesse lá – ligada. Talvez assim melhor ainda. A amiga da minha amiga fazia a disciplina de teorias culturalistas com ela. Sempre chegava atrasada, com o celular mirando aos alunos, solenes ouvintes. Não intimidava-se por ser vista como interpelação. Sentava-se na primeira fileira, colocava o celular apoiado na parede ou em um livro, e falava muito em Margareth Mead sempre que podia, teve uma fez, fato curioso, citou até mesmo um trecho de suas cartas quando alguém falara que o bebedouro do primeiro andar tinha parado de funcionar, algo sem nenhuma ligação aparente. Era muito participativa e volta e outra arranjava briga com um menino robusto da outra ala da sala, o tipo de pessoa que interrompia os presentes falando desculpa interromper para em seguida interromper completamente, e estes presentes eram quase sempre mulheres. Quando ela chegava, absolutamente segura de si, algumas, ou talvez todas, ou só minha amiga por tabela, sentiam uma sensação estranha de não saber onde se está, da sala estar cheia, irrespirável talvez, ou vazia. A câmera ligada dizia que alguém mais havia ali, quem, impossível de saber, onde, complicado demais. Tudo que era dito poderia nunca mais ser desdito, gravado, editado, armazenado na biblioteca de um desconhecido, por isso parecia que todo mundo lá era outra coisa, uma pessoa que nem sabiam-se. O celular era uma criatura muito pequena que funcionava tal como o Aleph, como um pequeno buraco negro, uma falha geológica, uma descostura por onde vazavam as vozes e as realidades mantenedoras de sua sanidade. O estranho aparelho era o binóculo do voeyer e o voeyer poderia ser todos, todos aqueles patifes que uma mulher já teve em sua vida de raspão ou beliscão. Mesmo assim ninguém nunca reclamou. A professora era um tipo de gente muito da pavirada, estava ciente dos novos tempos, das novas tecnologias, e sabia: a faculdade era cara e o dinheiro no mundo escasso. Os outros alunos deviam se sentir de alguma forma importantes pois era visível como mudavam com o celular ligado vasculhando toda a sala. Um dia a menina não apareceu, a aula terminou mais cedo e as discussões foram rasas, e logo depois, no fim do semestre, a amiga da minha amiga deu de cara com ela no café da faculdade. Com a câmera transmitindo um pão de queijo meio comido, perguntou quem era o destinatário do vídeo e essa menina disse que não sabia, mas que pagava muito bem, tanto que podia passar os dias inteiros estudando e lendo Margaret Mead, inclusive as cartas, sim inclusive elas, e as destinadas para Ruth Benedict? Sim inclusive elas, você já parou para pensar que poderia ser Mead que está este tempo todo observando? A menina ficou séria e não voltou a terminar o pão de queijo creio eu, era só o piada, mas isso a fez pensar em outras coisas. Sempre imaginou que seria um homem desses, um homem tarado, um fetiche e só. Nada além disso.