Talvez que agora não imaginaria como arranjar cem poloneses típicos, ou figurantes que se passem pelos tais poloneses, sem contar roupas originárias da Cracóvia do século XIX, sem contar com uma estação de trem do início da idade férrea brasileira, porque afinal de contas, eram-se necessários dois minutos de uma cena que era justamente essa: “enquanto na cidade de Ijuí os poloneses desembarcam ao fundo, Gestão ( o cachorro), segue aqueles que possuem as barras das calças mais apetitosas para seu focinho”.
Que agora só desviava a atenção para a falta de concentração, como o rastro dos caracóis embaixo da mesa do café, a menina que rouba dinheiro da própria mãe só pelo divertimento de superioridade, embora as chuquinhas coloridas, cuidadosamente arranjadas por uma mão estrangeira demonstre o oposto, a cerca da praça abaixada dividindo o chão com as pedras, a e olhe lá, um cachorro com patas finas e dorso preenchido, bigodes feito farpas e olhar imbecil, poderia ser ele o tal cachorro, o tal Gestão, será que se encaixa? as orelhas finas tal como descrito no script e a cor malhada para transparecer uma certa miscigenação que acabava em um tal de não-pertencimento, um devir no estrangeiro.
Que talvez eu fosse muito chata e minha própria natureza não era daquelas de pátio largo, de terra abundante, que permita a outros hastearem seus próprios guarda-sóis e cadeirinhas, piqueniques, que não entende um compartilhamento, uma presença, ou simplesmente uma conversa ( esse stage dos olhares que atiram e que quando acertam nada morre, mais vive, vive mais), um papinho de tarde, na praça, faz quanto tempo mesmo que não nos vemos? E o que mais reconheço é essa dispersão.
Uma conhecida falta de interesse. É de sol o dia, a mesa está na varanda tal como o palco de todos os domingos, os avós se sentam a mesa, a tia lúcida por loucura da doença, um gato (acho que Rodolfo o nome) sai do colo do pai para buscar com os dentes uma borboleta que tonta dá piruetas longe de um processo de brincadeira, mas sim de conseqüência de idade avantajada, e um pulo do felino é o bastante para que seu tempo pare de contar. O restaurante dos primos vai bem, as férias já estão planejadas, aspargos e azeite decoram o linguado irreconhecível pelas queimaduras que entende-se na travessa de madeira sobre a mesa. Ouve-se um grito, é a mãe, é só a mãe, sozinha no quarto impossível de andar, com um bolsão de água abaixo de seus pés, impossível de nadar, com seu reflexo de pavor no próprio espelho do líquido. Eram 13h15, seu irmão mais novo avisará que estava para chegar e você aproveitava a submersão de todos nessa história, para poder dar uma fugidinha rápida, andar lá pelo calçadão, encontrar um namoradinho quem sabe, o parelelismo de sons dos rolinhos de água no rio ao alcançar a margem com as de suas línguas suadas em giro, em busca do que todos prometeram que era divertido, que era o início do melhor.
Ou não. Mas sei que poderia ter sido assim, porque afinal, seu plano deu certo, todas as idades ficaram entretidas com sua mãe e seu irmão, vovô foi pegar a câmera, o pai correu para o quarto jogando tudo que era estampado com personagens infantis dentro de uma grande bolsa (depois de três filhos ainda não sabia do que precisava um recém-nascido), a avó tentava explicar para a tia o que estava acontecendo enquanto a tal doença não cooperava jogando a senhora para os anos 1900 e letrinhas, e eu me deixava chorar sem ninguém saber, parte por ninguém experimentar aquele peixe cuja morte foi em vão e eu ajudei a preparar com as medidas contadas em uma balança de cozinha, parte por não saber que eram esse irmão que estava chegando e o que ele queria. Claro que chegou um momento que percebemos que faltava você, onde estava você e tudo. Tio Anselmo foi atrás de você a partir das minhas informações garimpadas há muitas semanas, te encontrou por ai, a levou para o hospital. E depois do menino nascer, mesmo assim, todos continuavam dedicados tão somente a isso que nem papai lembrou-se de te dar um grito, uma surra, um interrogatório e até hoje não sei por onde você andou ou o que fez, foram tão poucas as conversas, diálogos de resumos.
E agora mantém os olhos caídos, no que poderia ser um sinal de submissão ou respeito, mas que na verdade é o signo de uma distância, de uma altura por onde seus pensamentos rodeiam, tão a cima, onde nunca poderei escalar mesmo com algum suborno em qualquer sentido. Me detenho em seus dedos enquanto um desses mágicos de rua nos escolhe para suas palhaçadas, como se não fosse fácil perceber que ali nenhum feitiço duraria, se instauraria com facilidade, não sei porque julgou que havia harmonia para ser quebrada e foi o que fez com seu rosto pintado, sendo constantemente remaquiado pelos novos cordões de suor, perto da testa, que não paravam se surgir, culpa do verão, culpa do trópico, culpa de uma maior intimidade com os baralhos do que com os seus planos. As suas cutículas são envezadas, não tão dóceis, você ainda não as tira buscando embelezamento, você ainda não se preocupa com as próprias decisões do corpo por ele mesmo. Seus dedos são cumpridos, são os dedos que sempre quis ter, aos quais associei a excelência no piano e no vôlei de praia, dedos como os da tia Irene que hoje ninguém mais lembra mas se te olhassem, recordariam do jeito delirante e despreocupado que aquela mulher possuía de tocar gaita nos bares do interior, músicas em francês recheadas de cenas de bordeis, histórias trágicas de prostitutas, sexos que deram bem sexos que deram mal, mas ninguém entendia mesmo, embora gostassem muito o público do bar Veneza, o principal de Eldorado. Tão grande é essa aversão, ou até mesmo, essa agressão com seu corpo, e mesmo assim você permanece contentora de uma beleza assustadora que as pessoas não entendem, e assim gostam ainda mais.
O mágico continua com suas palavras mal conjugadas, das quais eu nem percebo, até o momento em que ele resolve levar o braço perto do seu rosto, sua mão chega a tocar o lóbulo de sua orelha direita, você meio que ri nervosa não diz que não gosta, e daquele contato ele tira uma moeda de prata da republica Del Uruguay, muito antiga. Bastou um movimento tão clichê para ele tocar em você, uma desculpa tão pouco engenhosa, rotineira até. Conheço até bem a capacidade de seus ouvidos, a hora em que você os desliga propositalmente dona de grande insensibilidade, ou quando eles trabalham como uma folha, recolhendo apenas as manchetes que os interessam. Mas de fato a curvatura de suas orelhas e o caimento pós-cartilagem, aquela coisa sempre em queda onde de vez em quando você usa do brilho de um brinco para demonstrar um amor-próprio, um chamamento, eu desconheço por completo, ainda mais com nossos braços sempre faltando uma finura para um encontro, sempre algo está nesse entre, uma avenida, um cabo de telefone ou essa mesa, na qual agora nos encontramos.
Foram dez minutos que se foram, gastos por um fósforo desconhecido, sem nenhum peso fecundo o bastante para não levitar da memória. Mas posso jurar que você tenha gostado dessa intromissão, aliás, o acaso sempre te tratou como uma filha querida, uma pupila, sempre com olhos de conforto, bóias estratégicas em cada geografia, agasalhos correspondentes a térmica de cada dia, de cada situação. Uma bolsa de estudos em Cuba, os lábios tidos sem esforço das presas, a exposição de Velásquez justo naquele dia, a desenvoltura social típica dos bons malabaristas. Claro, as dificuldade também. Sempre postas em lugares estratégicos, com cabines de emergências e ambulâncias a fazerem a escolta de seus passos. Um braço quebrado aos nove, um acidente de bicicleta aos 14, uma quase gravidez aos 16. Uma tristeza daquelas sem sal, fácil de se afogar, como uma marca de nascença impressa nas irregularidades da pele, salvo o aparecimento de qualquer tentativa de esconderijo. Porém diferente nesse sentido. Você gostava de a exibir, esbanjar uma solidão para todos, um tipo de solidão que fazia de você intocável e atribuía a ti a impossibilidade. No Santa Inês, as professoras só reclamavam das temáticas das redações, sempre com alguns neologismos trava-línguas e algumas vezes caindo ao ilícito, pervertido é a palavra, mas as notas se mantinham acima da média com o mesmo esforço de um ser de asas a pairar a favor de uma corrente de ar, não incomodava no geral, tinha uma oratória desenvolvida com assustadora segurança se comparada a falta de maturidade de sua formação dentária, mantinha um fôlego saudável para os esportes, se dava bem com a maioria dos estudantes, embora meio estranha dentro daqueles par de calças jeans Levis apertados e camisetas picotadas a exibir em sua estampa a discografia, variando o dia, dos anos setenta por inteiro.
Claro que eu não entendia. Aliás, quando eu nasci você já existia por completa. E sobre você, eu nunca soube o que pensar. Observava equilibrada na pura atenção, por exemplo, a sua maratona cotidiana: o levantar às 7h45, o alongamento das pernas com o auxílio da pia do banheiro, o lavar a cara sem olhar a cara, a música soando de sua direção (hoje sei que a maioria delas é de autoria do Caetano), o chá rápido e a saída pela porta da frente sem nenhuma palavra solta com endereço humano. Acredito que nesse sentido, fui a sua primeira platéia fervorosa, e estava sempre presente. Ao mesmo tempo que essa ausência se construía, você estava tão presente mesmo quando não voltava para casa. Já vi mamãe sentada na cama a encarar as pernas sem ver, chorando vagarosamente com uma delicadeza controlada, uma impressão de costume, e do vão da porta sabia que aquele vermelho dos rosto era sua obra.
Na casa da vovó, tenho certeza. Eu tentava ler um livro seu, de Murilo Rubião, permeado de anotações elaboradas em qualquer espaço do vácuo da tipografia, tentando no vocabulário dos onze anos encontrar uma representação de mundo a partir daquelas palavras. Vovó e mamãe conversavam sobre Estéfano, nosso irmão há cinco anos. As crises de asma assustavam, além disso, havia alguns problemas com seu coração. Apesar de sua saúde incompleta, foi ao falar de você que vovó sentou-se mais perto e pôs-se a fazer calor com suas mãos em colcha nas mãos de mamãe. Era isso um medo de te perder de qualquer maneira, sem nenhum motivo que se demonstrasse sólido, acredito.
Tinha medo de você me ver como adversária, ou não reconhecer no meu rosto, os olhos e cabelos claros tão inexistentes em ti, uma familiaridade óbvia. E o próprio ato de conversar com você me fazia às vezes sentir um resfriado no peito, uma pisoteada quente no rosto, um planejamento prévio, antes de dormir domar as palavras com a cadência e conteúdo estudados como receita, para garantir sua aprovação. Mas independente de minha geniosa obra frasal, a sua resposta era sempre com palavras curtas e breves sem a companhia de um visto compenetrado. A atenção de seus ouvidos tinha de ser disputada com tantas outras coisas de seu interesse que eram mais importantes para você do que eu, o que fazia de mim sempre uma fazedora de incômodos, um atraso sem escalas. Ainda lembro, em uma vez rara vez, que nasceu e morreu no mesmo dia, você me disse - enquanto uma lágrima armava-se no encontro de suas pálpebras rochosas e branquiadas – “a coisa mais importante no mundo que você pode dar para alguém são seus ouvidos”. Naquele tempo infelizmente eu ainda não tinha idade para seriedades, mal escutava o desaforo de seu rosto e garganta, segurando aquele pastel de queijo, onde até o momento eu procurava o queijo, que eu suspeitava já estava extinto antes mesmo do surgimento do pastel, com os pequenos dedos habitados pelo relevo das primeiras aulas de violão, nada entendi. “É preciso ouvir com os olhos, ou até a pele, o corpo todo, menos com os ouvidos”, dizia você, e eu nem percebia que aquilo era obra de uma tristeza que traz consigo um esclarecimento. Mais tarde aprendi que respeito para você flerta com desprezo, e passei a testar isso em toda oportunidade que surgia.
Talvez que seu vôo poderá atrasar amanhã, mas mesmo assim é preciso chegar antes ao aeroporto, São Paulo precisa de você no dia seguinte em pé e com café tomado. Talvez que ainda falta visitar Cleo e Vitor, Magali e Núbia, e tomara que essa última ande melhor, que você não agüenta mais tirar conselhos de onde não há para que ela saia daquele apartamento e descave do quintal da desistência todas as coisas que importam. Talvez, entre uma colher e outra do chessecake de amoras, você olhe para mim rapidamente, esparrame o olhar no curto dos meus cabelos, faça graça do aro de meus óculos, e até respeite a minha tentativa de tentar parecer interessante. Temo um medo de no fim, ter me tornado muito parecida com a mulher que você sempre foi, um tipo de aço que não serve para construções, uma represa infértil, uma felicidade enjaulada, uma proteção que imita as das garras. Esses olhos com o enquadramento de uma cela que não existe, a emoldurar momentos mas não os deixar visíveis em nenhum corredor, a ninguém. Mas eu sou a pessoa que ficou, provavelmente, a que sempre vai ficar, e você, uma burladora de muros, mesmo que tenha todas as chaves, todos os códigos, apela pelas fugas, aquela que não reconhece o portão de sua casa no quarteirão, aquela que sempre vai embora.
Estamos agora em nossa cidade. A cidade em que você cresceu e abandonou, a cidade em que eu cresci já no seu abandono. Tantos cinemas novos aconteceram e sumiram pelos bairros, tantas coisa que não chegou até você. Eu resolvo pedir mais uma água e você também. O garçom mais jovem do que nós duas resolve estender a nós um convite e conversa. Pergunta se somos daqui ou estamos apenas de passagem, se viemos para a Bienal, ou talvez a Feira do Livro, se já vimos alguma peça legal da cidade e encaixado nisso, tudo na mesma chance ele acrescenta, que uns amigos estão na temporada com uma peça bem “legal”, algo baseado em Vera Karam ou coisa assim, mas que ele recomenda e se necessário, até nos acompanharia em alguma sessão. Eu apenas respondo que somos daqui, enquanto você, diz que está de passagem e que já perdeu seu interesse por montagens da Vera, há um bom tempo. É incrível mas percebo que até o garçom, talvez nem ele saiba, mas está puxado por você. E se ele resolvesse me perguntar algo sobre ti, quando eu for ao banheiro ou algo do tipo, se ele tocar na sua intimidade, eu não serei útil em nada, por pura ignorância de assunto. Você nunca chegou até nós com um namorado, a notícia de um namorado ou algo do tipo. Embora mais tarde eu tenha conhecido pessoas que estavam atrás de você, nunca te vi com ninguém e das tuas relações só conhecia alguns amigos de vista. O garçom ficou um tempo em silêncio, e pergunta se somos irmãs. Admito que me surpreendi, e o espanto inicial me deixou toda mudez. Olhei para você, à espera da resposta, que veio ao natural, um simples sim, sem nenhuma pitada de desdém. Me pergunto de onde ele tirou tal idéia, como ele percebera isso de uma ausência de sinais. Um silêncio tímido e duas anatomias tão diferentes não o levariam para esse caminho. Quando ele enfim retorna para seu trabalho, percebo que o conheço, é um amigo de Estéfano, do tempo do colégio. Nem deve saber que ele está morto.
Eu te pergunto porque não foi visitar nossos pais, você mexe na bolsa até lembrar que o cigarro largou por uma promessa, há algumas semanas. “Você não sabe como são essas coisas, não posso ir lá, ainda”. Você me subestima, como se eu não tivesse condições de entender o seu medo. Conheço seu medo e o tamanho exato para a cova desse. Mas calo-me porque não te quero triste agora. Para mim, pouco importa as tuas visitas a terra natal as tuas demonstrações de afeto, não sofro mais, mas sim os outros, os que não desistiram. Começo a repensar a idéia de vir aqui, te encontrar nesse café, como se fossemos tão chegadas e isso fosse um costume. Começo a detestar essa vista que levarei ao fechar os olhos, o Guaíba sem nenhuma agressão do vento, o cais beneficiado pelos arames soltos pelo sol. Começo a detestar a ti, sem reconhecer nada em teu corpo, com vontade de entender a espessura de tua pele pela ação de um tapa, um soco. Queria me levantar e colocar minhas mãos ao redor de sua cabeça, a firmando contra a minha, controlando a quantidade de luz de tuas pupilas, a tua visão e se possível teus pensamentos, e depois, ir embora, leve. Você resolve tentar uma conversa, vejo que sua saliva se esgota antes de começar a falar, está nervosa. Fala que leu meu livro mas não gostou do final, que realmente, pensamos a vida por lentes de tamanhos bem diferenciados. Comentou que reconheceu algo nos personagens, e principalmente, se identificou um pouco em Virgínia, aquela negligência consigo própria, e uma solidariedade velada, até vergonhosa com os ademais, um desejo de posse por aversão, um pacto com o tempo de ele não esquecê-la em vão. Eu permaneço inerte, tentando descobrir o que você realmente quer falar, até que mudando de assunto e de órbita geral, você me pergunta, na tentativa de uma normalidade de fala, “como estava o enterro?”. E viajo por completa par o mês do outono, junho, um dia mal-morado, com tendência de agressão pela chuva, o silêncio das planícies de gelo, todos com a impossibilidade de encarar uns aos outros, vovó ainda viva resmungando baixinho protegida pelo braços de um de nossos primos, papai depois de promover murros na parede do hospital a utilizar as mesmas mãos, agora com alguns machucados a cicatrizar, para abraçar mamãe, em especial tapá-la os olhos. Eu acertando os últimos detalhes na secretaria, como se aquilo tudo fosse um show eu o produzisse nos mínimos detalhes. Volto e re-loco o olhar a sua face, tranqüila, lhe digo “como todos os enterros de garotos jovens, triste e assustadoramente injusto”. Não dou mais nenhum detalhe, não a passo o conhecimento desse sofrimento, como é saber que o coração possui um tempo físico, de relógio, e cada dupla batida corresponde a um segundo a menos de um estoque com nível à baixo do normal. Você estava aonde mesmo? Marrocos, filmando uma reportagem sobre colonização francesa, rodando um filme no interior de Moçambique, cercada de morte por todos os lado, do pior tipo, a morte em potencial. E pegar um vôo, e o tempo, e o contrato, e o incomodo. Agora você me aparece e pergunta sobre esse irmão, sobre o meu, inclusive. Voltamos ao silêncio das construções antigas. Os passos que por mais leves geram chiado nas madeiras velhas. Claro que você já pode ir embora. Claro que já se passaram três horas e nós insistindo.Por algum motivo você veio a essa cidade e resolveu visitar só a mim. E agora, tento adivinhar quase como um divertimento a hora exata que você se mostrará realmente você e partirá com uma das desculpas sorteadas de seu armazenamento mental elaborado empiricamente ao comprimento dos anos.
De alguma forma, agora te olho e sei tudo, mas você não se assusta, permanece intacta como uma árvore antiga após a passagem da cor cinza-escuro pelo céu. Há algo que nos aproxima e que dividimos mutualmente, o mesmo algo que nos faz permanecer em silêncio sobre essa mesa, sem vontade de abandonar esses assentos, praticando o ato de permanecer à mercê de uma impossibilidade que só a insistência pode trazer, de preferência uma de bico longo e faminto. É um tipo de desespero que nos impede de levantar e decidir por uma entrega ou um abandono, pelo encontro ou pela despedida e transforma nossas pernas, nosso movimento contido, em âncora e chão. E se a falta pode preencher, foi em nossa família que ela explorou suas formas. Herdamos eu e tu o medo da correspondência, mesmo que fechar os envelopes já seja uma maneira de ler, mesmo que o desvio já seja uma maneira de dependência, a nossa ligação está em cada tentativa de corromper os fios, em falhar a voz.
Nunca é fácil fazer parte da história de alguém, o passado nos rebaixa a meros leitores, é um livro que ganha suas páginas nos olhos dos outros. E nós somos aquelas que escutam pelos olhos, lembra?, uma biblioteca inteira nos impede de sair dessa mesa.
Que agora só desviava a atenção para a falta de concentração, como o rastro dos caracóis embaixo da mesa do café, a menina que rouba dinheiro da própria mãe só pelo divertimento de superioridade, embora as chuquinhas coloridas, cuidadosamente arranjadas por uma mão estrangeira demonstre o oposto, a cerca da praça abaixada dividindo o chão com as pedras, a e olhe lá, um cachorro com patas finas e dorso preenchido, bigodes feito farpas e olhar imbecil, poderia ser ele o tal cachorro, o tal Gestão, será que se encaixa? as orelhas finas tal como descrito no script e a cor malhada para transparecer uma certa miscigenação que acabava em um tal de não-pertencimento, um devir no estrangeiro.
Que talvez eu fosse muito chata e minha própria natureza não era daquelas de pátio largo, de terra abundante, que permita a outros hastearem seus próprios guarda-sóis e cadeirinhas, piqueniques, que não entende um compartilhamento, uma presença, ou simplesmente uma conversa ( esse stage dos olhares que atiram e que quando acertam nada morre, mais vive, vive mais), um papinho de tarde, na praça, faz quanto tempo mesmo que não nos vemos? E o que mais reconheço é essa dispersão.
Uma conhecida falta de interesse. É de sol o dia, a mesa está na varanda tal como o palco de todos os domingos, os avós se sentam a mesa, a tia lúcida por loucura da doença, um gato (acho que Rodolfo o nome) sai do colo do pai para buscar com os dentes uma borboleta que tonta dá piruetas longe de um processo de brincadeira, mas sim de conseqüência de idade avantajada, e um pulo do felino é o bastante para que seu tempo pare de contar. O restaurante dos primos vai bem, as férias já estão planejadas, aspargos e azeite decoram o linguado irreconhecível pelas queimaduras que entende-se na travessa de madeira sobre a mesa. Ouve-se um grito, é a mãe, é só a mãe, sozinha no quarto impossível de andar, com um bolsão de água abaixo de seus pés, impossível de nadar, com seu reflexo de pavor no próprio espelho do líquido. Eram 13h15, seu irmão mais novo avisará que estava para chegar e você aproveitava a submersão de todos nessa história, para poder dar uma fugidinha rápida, andar lá pelo calçadão, encontrar um namoradinho quem sabe, o parelelismo de sons dos rolinhos de água no rio ao alcançar a margem com as de suas línguas suadas em giro, em busca do que todos prometeram que era divertido, que era o início do melhor.
Ou não. Mas sei que poderia ter sido assim, porque afinal, seu plano deu certo, todas as idades ficaram entretidas com sua mãe e seu irmão, vovô foi pegar a câmera, o pai correu para o quarto jogando tudo que era estampado com personagens infantis dentro de uma grande bolsa (depois de três filhos ainda não sabia do que precisava um recém-nascido), a avó tentava explicar para a tia o que estava acontecendo enquanto a tal doença não cooperava jogando a senhora para os anos 1900 e letrinhas, e eu me deixava chorar sem ninguém saber, parte por ninguém experimentar aquele peixe cuja morte foi em vão e eu ajudei a preparar com as medidas contadas em uma balança de cozinha, parte por não saber que eram esse irmão que estava chegando e o que ele queria. Claro que chegou um momento que percebemos que faltava você, onde estava você e tudo. Tio Anselmo foi atrás de você a partir das minhas informações garimpadas há muitas semanas, te encontrou por ai, a levou para o hospital. E depois do menino nascer, mesmo assim, todos continuavam dedicados tão somente a isso que nem papai lembrou-se de te dar um grito, uma surra, um interrogatório e até hoje não sei por onde você andou ou o que fez, foram tão poucas as conversas, diálogos de resumos.
E agora mantém os olhos caídos, no que poderia ser um sinal de submissão ou respeito, mas que na verdade é o signo de uma distância, de uma altura por onde seus pensamentos rodeiam, tão a cima, onde nunca poderei escalar mesmo com algum suborno em qualquer sentido. Me detenho em seus dedos enquanto um desses mágicos de rua nos escolhe para suas palhaçadas, como se não fosse fácil perceber que ali nenhum feitiço duraria, se instauraria com facilidade, não sei porque julgou que havia harmonia para ser quebrada e foi o que fez com seu rosto pintado, sendo constantemente remaquiado pelos novos cordões de suor, perto da testa, que não paravam se surgir, culpa do verão, culpa do trópico, culpa de uma maior intimidade com os baralhos do que com os seus planos. As suas cutículas são envezadas, não tão dóceis, você ainda não as tira buscando embelezamento, você ainda não se preocupa com as próprias decisões do corpo por ele mesmo. Seus dedos são cumpridos, são os dedos que sempre quis ter, aos quais associei a excelência no piano e no vôlei de praia, dedos como os da tia Irene que hoje ninguém mais lembra mas se te olhassem, recordariam do jeito delirante e despreocupado que aquela mulher possuía de tocar gaita nos bares do interior, músicas em francês recheadas de cenas de bordeis, histórias trágicas de prostitutas, sexos que deram bem sexos que deram mal, mas ninguém entendia mesmo, embora gostassem muito o público do bar Veneza, o principal de Eldorado. Tão grande é essa aversão, ou até mesmo, essa agressão com seu corpo, e mesmo assim você permanece contentora de uma beleza assustadora que as pessoas não entendem, e assim gostam ainda mais.
O mágico continua com suas palavras mal conjugadas, das quais eu nem percebo, até o momento em que ele resolve levar o braço perto do seu rosto, sua mão chega a tocar o lóbulo de sua orelha direita, você meio que ri nervosa não diz que não gosta, e daquele contato ele tira uma moeda de prata da republica Del Uruguay, muito antiga. Bastou um movimento tão clichê para ele tocar em você, uma desculpa tão pouco engenhosa, rotineira até. Conheço até bem a capacidade de seus ouvidos, a hora em que você os desliga propositalmente dona de grande insensibilidade, ou quando eles trabalham como uma folha, recolhendo apenas as manchetes que os interessam. Mas de fato a curvatura de suas orelhas e o caimento pós-cartilagem, aquela coisa sempre em queda onde de vez em quando você usa do brilho de um brinco para demonstrar um amor-próprio, um chamamento, eu desconheço por completo, ainda mais com nossos braços sempre faltando uma finura para um encontro, sempre algo está nesse entre, uma avenida, um cabo de telefone ou essa mesa, na qual agora nos encontramos.
Foram dez minutos que se foram, gastos por um fósforo desconhecido, sem nenhum peso fecundo o bastante para não levitar da memória. Mas posso jurar que você tenha gostado dessa intromissão, aliás, o acaso sempre te tratou como uma filha querida, uma pupila, sempre com olhos de conforto, bóias estratégicas em cada geografia, agasalhos correspondentes a térmica de cada dia, de cada situação. Uma bolsa de estudos em Cuba, os lábios tidos sem esforço das presas, a exposição de Velásquez justo naquele dia, a desenvoltura social típica dos bons malabaristas. Claro, as dificuldade também. Sempre postas em lugares estratégicos, com cabines de emergências e ambulâncias a fazerem a escolta de seus passos. Um braço quebrado aos nove, um acidente de bicicleta aos 14, uma quase gravidez aos 16. Uma tristeza daquelas sem sal, fácil de se afogar, como uma marca de nascença impressa nas irregularidades da pele, salvo o aparecimento de qualquer tentativa de esconderijo. Porém diferente nesse sentido. Você gostava de a exibir, esbanjar uma solidão para todos, um tipo de solidão que fazia de você intocável e atribuía a ti a impossibilidade. No Santa Inês, as professoras só reclamavam das temáticas das redações, sempre com alguns neologismos trava-línguas e algumas vezes caindo ao ilícito, pervertido é a palavra, mas as notas se mantinham acima da média com o mesmo esforço de um ser de asas a pairar a favor de uma corrente de ar, não incomodava no geral, tinha uma oratória desenvolvida com assustadora segurança se comparada a falta de maturidade de sua formação dentária, mantinha um fôlego saudável para os esportes, se dava bem com a maioria dos estudantes, embora meio estranha dentro daqueles par de calças jeans Levis apertados e camisetas picotadas a exibir em sua estampa a discografia, variando o dia, dos anos setenta por inteiro.
Claro que eu não entendia. Aliás, quando eu nasci você já existia por completa. E sobre você, eu nunca soube o que pensar. Observava equilibrada na pura atenção, por exemplo, a sua maratona cotidiana: o levantar às 7h45, o alongamento das pernas com o auxílio da pia do banheiro, o lavar a cara sem olhar a cara, a música soando de sua direção (hoje sei que a maioria delas é de autoria do Caetano), o chá rápido e a saída pela porta da frente sem nenhuma palavra solta com endereço humano. Acredito que nesse sentido, fui a sua primeira platéia fervorosa, e estava sempre presente. Ao mesmo tempo que essa ausência se construía, você estava tão presente mesmo quando não voltava para casa. Já vi mamãe sentada na cama a encarar as pernas sem ver, chorando vagarosamente com uma delicadeza controlada, uma impressão de costume, e do vão da porta sabia que aquele vermelho dos rosto era sua obra.
Na casa da vovó, tenho certeza. Eu tentava ler um livro seu, de Murilo Rubião, permeado de anotações elaboradas em qualquer espaço do vácuo da tipografia, tentando no vocabulário dos onze anos encontrar uma representação de mundo a partir daquelas palavras. Vovó e mamãe conversavam sobre Estéfano, nosso irmão há cinco anos. As crises de asma assustavam, além disso, havia alguns problemas com seu coração. Apesar de sua saúde incompleta, foi ao falar de você que vovó sentou-se mais perto e pôs-se a fazer calor com suas mãos em colcha nas mãos de mamãe. Era isso um medo de te perder de qualquer maneira, sem nenhum motivo que se demonstrasse sólido, acredito.
Tinha medo de você me ver como adversária, ou não reconhecer no meu rosto, os olhos e cabelos claros tão inexistentes em ti, uma familiaridade óbvia. E o próprio ato de conversar com você me fazia às vezes sentir um resfriado no peito, uma pisoteada quente no rosto, um planejamento prévio, antes de dormir domar as palavras com a cadência e conteúdo estudados como receita, para garantir sua aprovação. Mas independente de minha geniosa obra frasal, a sua resposta era sempre com palavras curtas e breves sem a companhia de um visto compenetrado. A atenção de seus ouvidos tinha de ser disputada com tantas outras coisas de seu interesse que eram mais importantes para você do que eu, o que fazia de mim sempre uma fazedora de incômodos, um atraso sem escalas. Ainda lembro, em uma vez rara vez, que nasceu e morreu no mesmo dia, você me disse - enquanto uma lágrima armava-se no encontro de suas pálpebras rochosas e branquiadas – “a coisa mais importante no mundo que você pode dar para alguém são seus ouvidos”. Naquele tempo infelizmente eu ainda não tinha idade para seriedades, mal escutava o desaforo de seu rosto e garganta, segurando aquele pastel de queijo, onde até o momento eu procurava o queijo, que eu suspeitava já estava extinto antes mesmo do surgimento do pastel, com os pequenos dedos habitados pelo relevo das primeiras aulas de violão, nada entendi. “É preciso ouvir com os olhos, ou até a pele, o corpo todo, menos com os ouvidos”, dizia você, e eu nem percebia que aquilo era obra de uma tristeza que traz consigo um esclarecimento. Mais tarde aprendi que respeito para você flerta com desprezo, e passei a testar isso em toda oportunidade que surgia.
Talvez que seu vôo poderá atrasar amanhã, mas mesmo assim é preciso chegar antes ao aeroporto, São Paulo precisa de você no dia seguinte em pé e com café tomado. Talvez que ainda falta visitar Cleo e Vitor, Magali e Núbia, e tomara que essa última ande melhor, que você não agüenta mais tirar conselhos de onde não há para que ela saia daquele apartamento e descave do quintal da desistência todas as coisas que importam. Talvez, entre uma colher e outra do chessecake de amoras, você olhe para mim rapidamente, esparrame o olhar no curto dos meus cabelos, faça graça do aro de meus óculos, e até respeite a minha tentativa de tentar parecer interessante. Temo um medo de no fim, ter me tornado muito parecida com a mulher que você sempre foi, um tipo de aço que não serve para construções, uma represa infértil, uma felicidade enjaulada, uma proteção que imita as das garras. Esses olhos com o enquadramento de uma cela que não existe, a emoldurar momentos mas não os deixar visíveis em nenhum corredor, a ninguém. Mas eu sou a pessoa que ficou, provavelmente, a que sempre vai ficar, e você, uma burladora de muros, mesmo que tenha todas as chaves, todos os códigos, apela pelas fugas, aquela que não reconhece o portão de sua casa no quarteirão, aquela que sempre vai embora.
Estamos agora em nossa cidade. A cidade em que você cresceu e abandonou, a cidade em que eu cresci já no seu abandono. Tantos cinemas novos aconteceram e sumiram pelos bairros, tantas coisa que não chegou até você. Eu resolvo pedir mais uma água e você também. O garçom mais jovem do que nós duas resolve estender a nós um convite e conversa. Pergunta se somos daqui ou estamos apenas de passagem, se viemos para a Bienal, ou talvez a Feira do Livro, se já vimos alguma peça legal da cidade e encaixado nisso, tudo na mesma chance ele acrescenta, que uns amigos estão na temporada com uma peça bem “legal”, algo baseado em Vera Karam ou coisa assim, mas que ele recomenda e se necessário, até nos acompanharia em alguma sessão. Eu apenas respondo que somos daqui, enquanto você, diz que está de passagem e que já perdeu seu interesse por montagens da Vera, há um bom tempo. É incrível mas percebo que até o garçom, talvez nem ele saiba, mas está puxado por você. E se ele resolvesse me perguntar algo sobre ti, quando eu for ao banheiro ou algo do tipo, se ele tocar na sua intimidade, eu não serei útil em nada, por pura ignorância de assunto. Você nunca chegou até nós com um namorado, a notícia de um namorado ou algo do tipo. Embora mais tarde eu tenha conhecido pessoas que estavam atrás de você, nunca te vi com ninguém e das tuas relações só conhecia alguns amigos de vista. O garçom ficou um tempo em silêncio, e pergunta se somos irmãs. Admito que me surpreendi, e o espanto inicial me deixou toda mudez. Olhei para você, à espera da resposta, que veio ao natural, um simples sim, sem nenhuma pitada de desdém. Me pergunto de onde ele tirou tal idéia, como ele percebera isso de uma ausência de sinais. Um silêncio tímido e duas anatomias tão diferentes não o levariam para esse caminho. Quando ele enfim retorna para seu trabalho, percebo que o conheço, é um amigo de Estéfano, do tempo do colégio. Nem deve saber que ele está morto.
Eu te pergunto porque não foi visitar nossos pais, você mexe na bolsa até lembrar que o cigarro largou por uma promessa, há algumas semanas. “Você não sabe como são essas coisas, não posso ir lá, ainda”. Você me subestima, como se eu não tivesse condições de entender o seu medo. Conheço seu medo e o tamanho exato para a cova desse. Mas calo-me porque não te quero triste agora. Para mim, pouco importa as tuas visitas a terra natal as tuas demonstrações de afeto, não sofro mais, mas sim os outros, os que não desistiram. Começo a repensar a idéia de vir aqui, te encontrar nesse café, como se fossemos tão chegadas e isso fosse um costume. Começo a detestar essa vista que levarei ao fechar os olhos, o Guaíba sem nenhuma agressão do vento, o cais beneficiado pelos arames soltos pelo sol. Começo a detestar a ti, sem reconhecer nada em teu corpo, com vontade de entender a espessura de tua pele pela ação de um tapa, um soco. Queria me levantar e colocar minhas mãos ao redor de sua cabeça, a firmando contra a minha, controlando a quantidade de luz de tuas pupilas, a tua visão e se possível teus pensamentos, e depois, ir embora, leve. Você resolve tentar uma conversa, vejo que sua saliva se esgota antes de começar a falar, está nervosa. Fala que leu meu livro mas não gostou do final, que realmente, pensamos a vida por lentes de tamanhos bem diferenciados. Comentou que reconheceu algo nos personagens, e principalmente, se identificou um pouco em Virgínia, aquela negligência consigo própria, e uma solidariedade velada, até vergonhosa com os ademais, um desejo de posse por aversão, um pacto com o tempo de ele não esquecê-la em vão. Eu permaneço inerte, tentando descobrir o que você realmente quer falar, até que mudando de assunto e de órbita geral, você me pergunta, na tentativa de uma normalidade de fala, “como estava o enterro?”. E viajo por completa par o mês do outono, junho, um dia mal-morado, com tendência de agressão pela chuva, o silêncio das planícies de gelo, todos com a impossibilidade de encarar uns aos outros, vovó ainda viva resmungando baixinho protegida pelo braços de um de nossos primos, papai depois de promover murros na parede do hospital a utilizar as mesmas mãos, agora com alguns machucados a cicatrizar, para abraçar mamãe, em especial tapá-la os olhos. Eu acertando os últimos detalhes na secretaria, como se aquilo tudo fosse um show eu o produzisse nos mínimos detalhes. Volto e re-loco o olhar a sua face, tranqüila, lhe digo “como todos os enterros de garotos jovens, triste e assustadoramente injusto”. Não dou mais nenhum detalhe, não a passo o conhecimento desse sofrimento, como é saber que o coração possui um tempo físico, de relógio, e cada dupla batida corresponde a um segundo a menos de um estoque com nível à baixo do normal. Você estava aonde mesmo? Marrocos, filmando uma reportagem sobre colonização francesa, rodando um filme no interior de Moçambique, cercada de morte por todos os lado, do pior tipo, a morte em potencial. E pegar um vôo, e o tempo, e o contrato, e o incomodo. Agora você me aparece e pergunta sobre esse irmão, sobre o meu, inclusive. Voltamos ao silêncio das construções antigas. Os passos que por mais leves geram chiado nas madeiras velhas. Claro que você já pode ir embora. Claro que já se passaram três horas e nós insistindo.Por algum motivo você veio a essa cidade e resolveu visitar só a mim. E agora, tento adivinhar quase como um divertimento a hora exata que você se mostrará realmente você e partirá com uma das desculpas sorteadas de seu armazenamento mental elaborado empiricamente ao comprimento dos anos.
De alguma forma, agora te olho e sei tudo, mas você não se assusta, permanece intacta como uma árvore antiga após a passagem da cor cinza-escuro pelo céu. Há algo que nos aproxima e que dividimos mutualmente, o mesmo algo que nos faz permanecer em silêncio sobre essa mesa, sem vontade de abandonar esses assentos, praticando o ato de permanecer à mercê de uma impossibilidade que só a insistência pode trazer, de preferência uma de bico longo e faminto. É um tipo de desespero que nos impede de levantar e decidir por uma entrega ou um abandono, pelo encontro ou pela despedida e transforma nossas pernas, nosso movimento contido, em âncora e chão. E se a falta pode preencher, foi em nossa família que ela explorou suas formas. Herdamos eu e tu o medo da correspondência, mesmo que fechar os envelopes já seja uma maneira de ler, mesmo que o desvio já seja uma maneira de dependência, a nossa ligação está em cada tentativa de corromper os fios, em falhar a voz.
Nunca é fácil fazer parte da história de alguém, o passado nos rebaixa a meros leitores, é um livro que ganha suas páginas nos olhos dos outros. E nós somos aquelas que escutam pelos olhos, lembra?, uma biblioteca inteira nos impede de sair dessa mesa.