sexta-feira, 27 de maio de 2011

Carta aberta a Instituiçã Afonso Forte

Carta encontrada na avenida João dos Passos, endereçada a Instituição Afonso Forte. Estava na companhia de um corpo não identificado, falecido após um letal ataque de pancreatite aguda.

1. Primeiro, não quero falar da fuga. A iniciar, porque não fui eu que tomei a decisão (eu e Alberto conversamos, por esses dias que aparecemos juntos, sobre não aliar-se a essa idéia). Segundo, mesmo eu sendo de formação religiosa, sempre confiei na ciência, portanto nos psiquiatras, representantes dela nesse meio, e assim sendo, confio no trabalho e coerência de vocês que resultará na subtração desses animais, desculpe-me o termo, que tanta atrapalham minha vida dedicada a benção do senhor (principalmente Sofia, a destrambelhada revoltada que me faz acordar com enxaquecas terríveis, estômago deteriorado e um odor significativo de cachaça). O que muito me piora o pouco tempo que tenho quando eles não estão aqui. Não sei onde estamos agora, provavelmente Sofia estava desenhando, há tintas nas minhas mãos, estou
2. Puta que pariu, essa vaca sempre se metendo aonde não é chamada, minha cachaça, que cana o quê. To parando to parando, eu disse e parei. Fugi, faria de novo, caro Doutor, rogo uma atençãozinha, é minha filha senhor, não a veja há dois anos, e que vontade me dá, não fumo não bebo, só fujo, mas é pra ver meu benzinho...o doutor deve entender, porra, deixa eu ser clara aqui ó, não deixam entrar crianças na desgraceira do manicômio! Nossa, olha o Alberto. Bota velho nojento, bem pior que eu. Repugnante, sempre fumando um cigarro atrás do outro, amarelo de nicotina. Quantas vezes eu acordei com a minha perna, sabe, aquela que é ruim, manca, por causa do acidente, doendo demais, descansando embaixo do que? Da virilha do Giocondo! O esquizofrênico do quarto 46, nu, ai, imagina eu, com aquele cheiro de bunda de homem por tudo, a coisa branca empedrada nos pelos, como é possível esse maldito do Alberto, viado, velho e cleptomaníaco e ainda, pai de dois filhos, tantos ícos a mais para adicionar ao dicionário de distúrbios, e a outra frerinha toda louca também, apaixonada pelo padre, mal-comida, entende porque eu bebo, alias, bebia doutor, você entende o que

3. Dependendo não sou eu que mais quero essa fuga. Vou ser sincero, estou à beira da morte. E a sua instituição sempre me tratou tão bem. Adoro o uniforme branco, o desinfetante de violetas nos cantos do banheiro, os bailes festivos, tudo. É tudo que sempre sonhei para minha vida, não trabalho, durmo a vontade, converso, jogo Damas. E ainda por cima, não gasto um tustão, os meus filhos que arcam com os custos dessa boa vida. Eu não sou culpado por me divertir, Giocondo, por exemplo. Aconteceu tão rápido, é claro, é contra às regras e tudo. Eu tentei evitar, mas ele está obcecado. Antes me dissera ser esquizofrênico, só agora descobri na sua ficha que está internado na clínica por ser obsessivo-compulsivo. Foi um erro Sr. Ivan, um erro. O homem está atrás de mim, fiquei com medo, eu e Sofia então cheg

1. com dificuldades para identificar esse lugar. Nunca fiz nada de mal a ninguém, sempre me privei da liberdade mal utilizada pelos mortais comuns. Isso não é justo, deveras. Adoro a casa Afonso Forte, melhor que aí só a casa de Deus

2.eu quero dizer. Casa de Deus? Você pode adivinhar porque né...o padre Leopoldo ainda trabalha lá é? Tarada pelo homem de saia, pro inferno essa doida.
3. ou para mim com essa idéia, topei na hora. É medo. Nix até sabia, mas nada poderia ter feito além de rezar. Além do mais, eu fervia de raiva dela desde que desatou a utilizar água benta em tudo. Minhas roupas encharcadas, assim não dá. Mas como é difícil essa vida Doutor Ivan. Nesses meus 70 anos, vivi e não vi tudo. Até viver com Sofia e Nix, tudo bem. Eu me dou bem com mulheres, apesar das outras diferenças. Você não imagina o que é viver com essas duas, engraçado às vezes. Outras, apenas dolorido. Nesses dias eu estava fazendo a barba, está certo que quase não tinha pelos em minha face. E não é que eu lá, com o rosto ensaboado e a lâmina na mão em ascendência vertical apaguei e Nix veio no meu lugar? Nem preciso dizer que a freirinha gerou galhos de sangue na minha face. Doeu por uns dois dias, terrível.

1. as pessoas nos tratam com bondade, há bolachas recheados nos cafés da manhã e sala de jogos nos finais de semana. As enfermeiras são de dar gosto de ver, atenciosas e tudo, acho até que estou enfim curada (aliás, nunca soube bem o motivo da minha internação, ninguém me explica nada, eis aí minha crítica). O que eu sinto falta mesmo é de uma capelinha menor, mas é a vida. Podiam pelo menos colocar alguma imagem de um santo, alguma coisa assim, um ícone do filho Jesus. Esta aí outra coisa chata, sabemos que a capela tem que ser laica (pode isso?), porque cada um dos internos tem uma religião né...mas por favor, organização! Esses dias eu estava fazendo uma benção e ao meu lado um desses envagélios exorcizava uma criatura. É necessário a construção de uma agenda, por Deus... Mas falo muito. Deixe-me contar tudo, o que realmente importa, sobre essa fuga desalmada que me forçaram a participar. Bastou a enfermeira Inês cair no sono para Alberto pegar suas chaves e abrir a porta principal, o senhor sabe, estava tudo escuro, foi na última madrugada. Jones, aquele guarda carrancudo, escutava seu MP3 enquanto lia algum gibi que havia por lá. Passamos despercebidos pela porta da frente. Daí, encontramos uma janela aberta, depois fomos ao pátio, onde enfim Sofia nos pulou rumo a calçada no outro lado da cerca. Foi simples assim, vocês tem que tomar alguma atitude. Estou com medo, não trouxe nada, nem os escritos com a palavra de Deus. Por favor, venha nos buscar.

2.Estou com dois doidos aqui doutor. Digamos que tenho meu manicômio particular, dentro desse corpinho. Não agüento mais Alberto e Nix, e claro você me diria “então volte para a Clínica Sofia! Iremos tratar você...”. Mas nós dois sabemos que não funciona assim. Na Clínica como você fala (é interessante você se referir a aquele lugar assim, bando de malucos), tem dias que eu fico dias sem aparecer. E tenho que escutar toda merda que Alberto e Nix aprontam, filhos da mãe, nem lembro donde vieram, um dia apareceram lá e deu, fodeu tudo. O velho me deixa fedendo a colônia de homem e fumo de palha e a freirinha, comendo doces sem parar, brancos, negros e cajuzinhos, essa aí ainda vai me dar uma diabetes...

3.Que coisa, a pessoa que quer liberdade é considerada louca hoje em dia. Tá certo que eu Nix e Sofia não somos os mais normais, mas nós acertamos poxa. Apesar de tudo a gente vive, mas te garanto Doutor Ivan, o meu lugar é na rua, e o delas também...ninguém pode viver dentro dessas paredes para sempre. Como eu te disse, gosto muito da sua Instituição. Mas fico com pena das meninas, aprisionadas nessa casa cheia de biruta...nos deixem em paz, por favor.

4.Caro Dr. Supervisionador, não sei quanto tempo que tenho para escrever antes que eles voltem. Por favor me tire daqui, não aguento mais eles na minha cabeça.
Assinado Juarez Osório (CPF: o verdadeiro dono desse corpo).

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