segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

frutas secas

laranja. talvez ele tivesse comido laranja. havia um cheiro de frutas que eu queria que fosse meu. olhei para o lado. observei sua boca e a imaginei abrindo respondendo a minha pergunta "sim". até aquele momento tudo que eu sabia era isso. e que tirava as sobrancelhas.

dividir uma viagem de elevador com alguém é começar a conhecê-la pelo cheiro. e está aí a estranheza. porque depois a pessoa vai, vai logo embora, e a gente fica com aquela intimidade ali. ali nos narizes, nas roupas. sem saber o que fazer.

mas de qualquer forma todas as pessoas sabem que um elevador é um espaço de constrangimento e não o contrário. que aquele tempo minúsculo e abafado passado ali logo se converterá em esquecimento. são os cabelos soltos do dia que no final, a noite, não deitamos no travesseiro. talvez saber disso signifique alívio.

ele não tinha escolhido nenhum andar. por isso deduzi que desceria comigo, no sexto. o que quer dizer que o cheiro de fruta cítrica me acompanharia por toda a viagem.

percebi que ele não tentava nem me observar nos respiros não pensados. parecia apressado daqueles com a garganta em labirinto, com uma apreensão tentando sair ilesa. a porta abriu. como previsto dividimos a saída. silêncio.

então aconteceu uma coisa engraçada. depois do óbvio silêncio houve mais silêncio. e mais. e mais. como no silêncio exacerbado, e com um desconhecido nem se fala, se perde a noção de tempo vou mentir aqui que foram uns 6 minutos. 6 minutos que ficamos lado a lado olhando para a porta, aquela plaqueta. apartamento 608.

então ele desatinou a falar. ele não. a sobrancelha desconfio. porque o homem mesmo estava imerso num calabouço próprio. apertado dentro de um frasco de incapacidade.

"você mora aqui no 608?"

tirei a chave do bolso e abri a porta.

"não e você?"

"não"

entramos no apartamento. entramos juntos na casa que não era minha nem dele. mas de alguém. ele sentou numa poltrona de dois lugares. eu sentei na frente, porque tinha um espelho a esquerda e eu podia ver meu rosto. verificar a vulgaridade de minhas expressões durante nossa conversa. se é que haveria. olhei para baixo. ele tinha meias muito bonitas. pareciam ter sido costuradas a mão. alguém que ele amava costurava meias para ele. ou apenas sentia bastante frio nos pés e por  isso as meias grossas, anti-comerciais, com denúncia de apego doméstico pela imperfeição. imperfeição digna da intimidade.

perguntei se ele conhecia elisa. sim é claro. aquele era o apartamento dela. pela forma que ele entrou na sala entendi que nada ali era surpresa. já sabia de cor a disposição dos móveis. já conhecia elisa o suficiente para saber que a disposição dos móveis sempre mudava e não adiantava tentar se surpreender com isso. eram chegados de alguma forma.

"estou esperando elisa chegar. ela disse que estaria por aqui nesse horário"

ele era galante no jeito de escapar as palavras. parecia que as coreografava na boca, no vai e vem da língua e céu da boca, antes de deixá-las obter liberdade. pensei melhor e entendi que isso significava nervosismo.

sabia o motivo daquela forca sísmica se rindo pelo estômago desse sujeito. ele não era bobo. já tinha entendido algumas coisas do tipo. elisa e eu éramos amantes. eu conhecia o salto de seus mamilos. aquela poltrona onde ele estava sentado, provavelmente já havíamos transado ali. e outra: assim como ele eu estava a esperado. sabíamos muito bem o que esperar queria dizer nessas circunstâncias.

a partir daquele momento o meu papel era o de tornar aquela situação o mais agradável possível. a mais habitual. confortável.

bebemos chá. fui para a cozinha, fiz uma bagunça. tinha prometido uma cerveja. mas só tinha chá. não fiz nenhuma pergunta que pudesse fazer as bochechas dele saltarem. não perguntei da onde a conhecia. o que eram um do outro. já estava bastante clara a situação ate aquele momento.

então porque eu só sei beber chá fazendo muito barulho na borda da xícara, para não aumentar o grau de estranheza, liguei a televisão. poderia estar passando futebol. mas não estava. a televisão acabou ficando no mundo porque começamos a conversar.

descobri que ele era gerente de uma empresa de produção. que fazia sapatos. que adorava sapatos. que uma vez foi casado mas que a mulher se tornou estupidamente religiosa depois do incêndio de roterdam. que começou a ver sexo só para reprodução e foi ali que ele descobriu que não queria filhos. se separaram.

"e você o que esta fazendo aqui?"

"eu preciso muito a dizer uma coisa"

"elisa disse para encontrar ela aqui hoje. mas creio que esqueceu. ou vai ver esqueceu onde morava mesmo. das duas uma."

ele riu. só nos dois parecíamos saber o quanto elisa era perdida. o quanto nenhum nome de rua era possível de ser decorado. como sua capacidade de ser confusa tinha um predileção especifica por espaços geográficos.

aquilo era gostoso. era bom ter alguém para dividir esse tipo de assunto. alguém que também a entendia como eu a entendia. que a conhecia o suficiente para não decidir contar nada importante a ela depois das dez horas da noite. a incompreensão era pontual em elisa.

naquele dia dormimos lá. ficamos dos dois em casa sem nenhuma notícia de dela. nenhum telefonema. ou e-mail. nada. e assim foram nas próximas semanas. de elisa só tínhamos o sumiço.

no entanto, eu e ele, mantínhamos assíduo contato. nos atualizávamos sobre o desaparecimento dela. nos revezávamos para cuidar do gato que ela deixou para trás. aproveitávamos a tv 40 polegadas que ela não estava usando.

foi quando eu comecei a entender que estava freqüentando mais diariamente a casa de elisa. só que ela não estava lá e isso me deixou confuso. mas não o suficiente para me incomodar no sentido de me fazer nascer coceiras na fronteira dos ombros com o ar. a verdade era que a cada dia que passava parecia que ela não existia. e estava bom do jeito que as coisas estavam. o fato é que eu não estava sozinho.

para as pessoas eu dizia.

"estou saindo para ir à casa de elisa"

"há dias que espero o retorno de elisa"

eu e ele nos sentávamos no sofá dela, tomávamos cerveja direto no bico e pensávamos: como é bom não esperar alguém sozinho. sei que ele também pensava isso porque antes de trocar alguma frase nossos olhos se miravam e quando isso acontece no escuro é quando duas pessoas estão pensando a mesma coisa.

então aconteceu um dia de estar na padaria e ver uma moça de cabelos na altura das orelhas que usava uma echarpe roxa. pensei que era ela e na hora engoli uma atmosfera nuclear. porém era apenas uma menina qualquer e isso me deixou profundamente feliz. logo comprei pão italiano. cheguei em casa e ele estava fazendo panquecas. rimos por não termos nos comunicado da fome. mas por termos muita fome. 

foi dessa vez, enquanto comíamos sentados no tapete assistindo a qualquer partida de futebol da divisão B que ele disparou a concentração em mim e disse

"mas afinal o que faziam você e elisa para passar o tempo?"

"sexo, apenas sexo"

por um tempo escutei a sua mudez latejando. ele meteu um pedaço de recheio de salame na boca e respondeu

"sabe que faz um tempão que eu não trepo?"

nisso lembrei do episódio da quarta-feira. foi quando pegamos no sono dividindo as mesmas almofadas, a mesma falta de espaço do acolchoado. num quando que acordei no meio da noite com o pau duro. num duro pressionado contra as costas dele. aquele pareceu o melhor lugar do mundo para meu pau estar e foi tão bom. a nossa falta de espaço parecia todo lugar no mundo. e foi nesse lugar que uma parte específica minha roçou pela noite adentro, sem eu perceber.

então senti o gosto do salame. depois de entrar na sua boca, abrir as pernas foi fácil. por três dias ainda não sabia ao certo se tinha saído dela lá.

no quarto entendi que não. porque voltei a casa como quem vai tirar os pontos de um machucado. e no caso os pontos eram tirados com os dentes. os dele. estava sendo operado. aos poucos. meu corpo melhor.

praticamente morávamos naquele endereço. um endereço que não era nem de um nem de outro. ele chegava e já tirava a roupa. eu ficava o observando, aquelas bolas por exemplo. bem que poderiam ser as minhas que por descuido por ali ficaram. nada as diferenciava. achava engraçado. engraçado porque nunca tinha perdido tempo olhando para as minhas. mas as dele eram inacreditavelmente divertidas. talvez fosse o balanço. havia uma ginga natural ali. era notável. eu olhava e ele já sentia cócegas. tão fácil.


teve um dia. ensinei ele a comer pistaches. ele colocou tudo na língua, ignorou a casca. o corrigi é claro.

"você tem que colocar os dedos na fresta de dentro e abrir os dois lados. abrir até quebrar. viu?"

ele tentou. mas ao invés de tentar de verdade me deu um golpe.

"o que você precisava tanto falar para Elisa?"

elisa não voltava a meses. não entendi a importância daquilo naquela hora. ela não tinha mais nenhuma relevância.

"eu precisava dizer que a amava."

ele consentiu comendo a minha novidade, a parte de dentro e correta do pistache, sem obrigação como quem busca mesmo a vontade. não apenas agradar.

amávamos muito elisa. primeiro pelo seu surgimento, e depois, pelo seu desaparecimento. e misteriosamente entender isso facilitava o desafio de comer frutas secas. o que tornava viver muito mais simples.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

La Mer

ela era dessas pessoas. não acreditou quando contei que não era uma música, mas sim, uma memória do mar. não gostava de Debussy. mas gostava de música. nós costumávamos colecionar folhas secas. conversávamos por horas enquanto enchíamos cada uma grandes mochilas com restos arbóreos.


íamos ao parque todas as quinta-feiras à tarde que era o dia de minha folga do trabalho. eu a buscava. uma casa de repouso onde por mais incrível que pareça era difícil conseguir lugar para estacionar. ela nunca lembrava que eu ia a buscar para nossos passeios. era sempre uma surpresa. e eu segurava meus olhos como se eles pudessem escapar junto com um bocejo.

no parque me contava sobre as plantas. ela era dessas pessoas. não sabia nada de plantas. mas no passado houve um tempo que desejou saber. por isso no futuro mentia. mentia o nome delas. inventava características. "essa é a alechos vegetaum", seu maior inimigo é a fuinha. era uma senhora engraçada. falava muito devagar quando estava mentindo. olhava para o canto direito como quem busca decifrar uma palavra presa num galho de árvore a milhas de distância. mas eu tinha toda paciência do mundo. "as figueiras tem esse nome porque o nome ladeira ainda não tinha sido inventado". e eu ria. ria. um tipo de riso moeda de troca para a calma no próximo sono.

o estado das costas e de outras partes do corpo

você pode descer mais para a esquerda?
assim?
só que mais forte. pode pressionar.
melhorou?
bastante.
nossa estou sentindo agora. e esse é dos grandes. espera tem mais. vários. você tem que parar de ir dirigindo para o trabalho é muito estressante.
sim.
a propósito, lembrei de algo. sua tia te deixou uma coisa.

esse era o exato estado das minhas costas quando eu cheguei a Nova Hartz. quando ela me contou essas palavras. sua tia te deixou uma coisa.

a coisa em questão era uma caixa. subimos as escadas. os degraus eram daquele tipo que faz um barulho agudo e lento, base de inspiração para os primeiros filmes de suspense. quando você passa por uma escada assim já está um pouco preparado. sabe que o ponto de chegada pode te entregar um susto ou uma confusão. por isso naquele momento eu troquei meus olhos por um pé de açafrão. li que ajuda.

o quarta da irmã da minha avó tinha gosto de chuva guardada. é interessante como perto de tantas coisas velhas até mesmo os objetos da última tectologia parecem antigos. eu olhei para aquela tevê de plasma 32 polegadas e foi fácil imaginar que dentro dela faziam 30 anos que seus ouvidos escutavam personagens novelescos de manoel de carlos tagarelar. por isso quando entrei naquele cômodo fiquei imediatamente 10 anos mais velha. e a idade começou a se infiltrar em mim pela perna direita. pisei em falso ao ultrapassar a porta. quase caí. há 3 segundos meus tornozelos já não eram mais os mesmos.

você sabe o que sua tia dizia sobre você? que quando crescesse você provavelmente seria uma engenheira de computação. porque assim não teria que sair muito de casa. sua tia achava que você seria o futuro do mercado de drive true. ela tinha muito senso de humor.

ela errou. sou o futuro do mercado de tira manchas. ela não falou nada sobre eu trabalhar numa lavanderia?

não.

eu parei em frente a cama. o que será que fazem com os colchões das pessoas mortas? de certa forma um colchão é um lugar para morrermos de forma parcelada. mas nunca definitiva. seu cabelo era loiro. e alguns fios foram deixados para trás, presos pelo algodão da colcha. será que eles caíram de uma pessoa viva ou ela já tinha se ido no momento? me veio uma vontade de pegar aqueles fios e guardar na bolsa. de guardar aquela dúvida na bolsa e levar para casa. mas minha mãe ainda estava lá. teria que esperar ela sair para poder ser estranha. foi por isso que só comecei a dançar aos 20 anos. foi quando sai de casa.

ela abriu um armário e tirou um pacote. um pacote com meu nome. eu me assustei ao saber que no mundo meu nome vivia por aí escrito, a não ser quanto tempo, sem a minha ciência. imaginei ele em diversas ocasiões das quais não fui informada. como talhado em uma caixa de lixo orgânico em Serramadeira, ou então fazendo parte de um abajur na casa de um anônimo, feito com uma série de papéis antigos entre eles uma conta de luz minha que provavelmente não paguei. 

e foi por isso que não o abri naquela hora.
além disso gostava dos olhos da minha mãe quando imersos numa combustão mista de curiosidade e impossibilidade. na volta da íris, ficava magenta.

na mesma noite fui embora. dirigindo na autoestrada pensava em como é difícil ter costas. se dar bem com ela. sacrifícios teriam de ser feitos. parar de dirigir por exemplo. não que eu gostasse da direção. não gostava. mas o barulho do motor me lembrava alguma coisa que não sabia o que era. sempre que girava a chave pensava que iria finalmente descobrir.

talvez seja particularmente daí essa dor nas costas finalmente conclui.

de volta a cidade descongelei um risoto de ervilhas. comendo com uma mão e abrindo a caixa com a outra mão, era assim que eu achava que meus neurônios voltavam. rasguei meu nome do pacote e senti um leve alívio e o abri.



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

estar errada três vezes seguidas

CAIXA POSTAL

quando alguém me pegunta onde ele mora eu começo a falar do tempo. como está quente. como está frio. como chove muito. como não chove nada. embora seja muito entediante falar do tempo, devido seus poucas variantes, costumo também tentar desviar o assunto dando um espirro. provavelmente esse é o motivo das pessoas sempre me darem tantos lenços de papel como presente, ou não me chamarem para fazer coisas, sair nas sextas-feiras ou comer uma torta de maracujá. 

de qualquer forma é melhor acharem que sou muito doente do que ter que dizer onde é que ele mora.

pai às vezes eu preferia que você não existisse ou estivesse morto do que não saber onde você mora. porque afinal não me conta? recebo esses seus telefonemas, e-mails e a única coisa que eu entendo é de como era bom viver no século XIX. de como era bom mandar cartas. ficar horas olhando aquele endereço no papel. e talvez sorrindo.

ERAM JOVENS

fazem 30 anos que meu marido me trai. eu sei disso porque é eu que o levo. meu marido não sabe dirigir. em outras famílias é o contrário mas na nossa é assim. eu fico com as chaves da velha chevrolet. todas as terças feiras o deixo em frente a mesma porta. às vezes eu o espero lá mesmo, leio uma revista. reorganizo meus recortes de jornal. tem dias que ele aparece na janela e diz

volte amanhã cedo

normalmente respondo dizendo para ele se cuidar, mas a minha resposta não entra na janela fechada.

terça-feira é meu dia favorito. dirijo a noite sozinha até cansar. se tenho vontade de olhar para alguém paro na estrada num bar que não costumo recordar o nome e olho para um uísque. depois vou embora e esqueço tudo.

meu marido nem desconfia. não há nada pior para ele do que não lembrar.

NA VERDADE NÃO É UM SOFÁ

minha mãe tinha 86 anos quando morreu. para meu irmão eu disse: pode ficar com tudo, só quero o sofá. ele tinha sete lugares e já teve mais de dez cores de estofamentos ao longo dos anos. foram naquelas almofadas que eu a contei

sabe o que, é eu transei
depois esclareci dizendo
na verdade foram só algumas mãos. prá lá, pra cá.

estou grávida
depois desmenti dizendo
na verdade foi apenas umazinha e com proteção.

nunca mais acharei que estou grávida
depois explique melhor dizendo
estou completamente apaixonada por Lúcia Consuelo.

eu não saberia dizer o que seria da nossa vida sem aquele sofá. era lá e apenas lá onde nós nos dávamos bem. falávamos de tudo. se eu precisava falar algo urgentemente íamos para o sofá. já tínhamos tentado em outros lugares mas a experiência do do hall das terríveis. foi ali também que estabelecemos um tipo estranho de compensação. e assim eu ia a conhecendo melhor, como assim

sabe o que, é eu transei
na verdade conheci seu pai numa suruba e foi assim que tive certeza.

estou grávida
seu tio avô Geraldo na verdade era uma mulher.

nunca mais acharei que estou grávida
foi assim que eu comecei a achar que nunca iria conhecer você.

tenho pena de meu irmão por ter passado tanto tempo fora de casa. ele achava que ela era apenas uma senhora quando na verdade nossa mão parou de usar roupa de baixo quando entrou na faculdade. pessoas assim nunca viram senhoras. o sofá está aqui em casa, no centro da sala. imagino coisas. imagino que ao compartilhar um segredo com o ar ela apareça no seu estofado e diga coisas do tipo na verdade maconha nunca me fez mal. mas mesmo assim é complicado.

uma pessoa quando morre deixa um sofá. e você não sabe o que fazer com ele. é assim que as coisas são. com todo mundo é assim. mas eu, eu penso que bom que restou um sofá pelo menos. então olho em volta e meu apartamento tem 30m². as pessoas entram em minha sala, o olham e desejam sentar e é tão difícil. porque eu não sei o que poderia acontecer. e é claro que isso é um problema. não é qualquer pessoa que pode sentar no meu sofá. é preciso tempo. intimidade. eu tenho receio. receio de trazer alguém aqui. receio de quem ninguém sente tão bem no sofá como minha mãe.

existem algumas coisas que você não sabe sobre mim.

fim

tinha essa cidade que é verdade era muito bonita (mais bonita para os turistas é claro) mas que no final  das contas como todas cidades tinha uma péssima questão de cheiro. chegou uma hora que todo mundo ficou cansado daquilo, da cidade, do cheiro. o prefeito gostava muito da ideia de viver no campo e não fazer nada, já tinha conseguido o que queria que era ser prefeito, então ele tentou passar o cargo para o vice-prefeito mas esse em questão disse que ia viajar. viajar ele quis dizer era do tipo "façam de conta que eu morri". o chefe da câmara dos vereadores também recusou, e assim sucessivamente, porque sim todos estavam cansados e descobriram o prazer do sono e do sexo caseiro. e sim havia aquele cheiro. então o prefeito abriu um edital.  logo depois ele pegou o microfone de uma jovem moça repórter enquanto ela o entrevistava para saber o resultado e ele disse: "que tal você, já pensou em ser prefeita?" mas o que ele realmente disse foi "sabe o que é? ninguém se escreveu no edital". sim todos estavam cansados, até mesmo os não políticos, até mesmo eles como o padeiro ou o dono do jornal. e sim havia aquele cheiro. já que a repórter não aceitou o cargo, o dono do restaurante não aceitou o cargo, o morador de rua não aceitou o cargo o prefeito convocou uma coletiva de imprensa e disse: "ninguém mais a quer. estamos fechando a cidade".

então teve um dia que foi marcado no calendário, lá por setembro ou dezembro
a cidade acabou.

todos foram dormir.

nesse dia as luzes dos postes foram desligados
a água parou seu movimento embaixo da terra
semáforos desbotaram
ficaram os ônibus descartados
ficaram as placas inutilizadas 

e o que ainda era cidade não se saberia cidade se não fosse o cheiro.

os telegramas passam bem obrigada

1.

amanhã já não é mais tão ontem assim e ainda: de você, nenhuma resposta. por favor, mande seu endereço para que eu possa te enviar esse bilhete. p-o-r-fa-v-o-r (lido pausadamente, cada letra sendo usada para irritar por um dente diferente, na esperança de uma nova afta). onde você mora? você morreu? ainda respeita as sobrancelhas dos outros? conseguiu comprar uma casa com um quarto secreto que só ira descobrir aos 76? você já tem 76? descobri que há um mês-relâmpago entre setembro & outubro e o apelidei de Barcunkie. se quiser conhecê-lo é só chegar. tem um jardim. eu desligo a chuva. acampamos, quem sabe, faíscas e tal & tal.

2.

por vezes gostaria de saber seu rosto ajuda na hora de contar uma história. se você fosse jovem talvez me deixasse confuso. a confusão aqui é a curiosidade de saber o som do cheiro de suas axilas. se você fosse mais velho, do tipo muito velho, talvez eu o confundisse com meu avô (que morreu sem ter me conhecido) e por não falar com os mortos eu me calasse. também trabalho com a hipótese de que você seja uma mulher. nesse caso seríamos aquele tipo de amizade que troca as chaves mas mantém as saudações no nível respeitável. o importante é que você não seja eu: um tipo muito bonito mas pouco falante que sempre erra a hora de ir embora.

3.

preciso urgentemente saber se você já existiu na minha rua caso contrário não me desejo mais

4.

meu terapeuta recomenda ferrenhamente que eu aceite conselhos de desconhecidos. foi por isso que pensei em você. sempre lembro da última coisa que você me disse quando tomo banho e o sabonete desaparece misteriosamente:

- não sei quem você é.

existem alguns problemas que me perturbam, nunca sei se meu carro é meu mesmo ou roubado. tenho a autoestima baixa por isso por vezes acho coisas bobas do tipo que meus pais me deram esse nome por terem perdido uma aposta.  mas nenhum desses me prejudica tanto quanto um em especial:

o que se fazer nas quintas-feiras?

5.

devia existir uma maneira rápida de aprender a cozinhar deveria ser parecido com saber escrever vcoe vvoc oce vece voce ou lydia davis mas sempre erro

6.

contar um segredo para alguém pela primeira vez na vida faz bem dizem então lá vai
quando eu era pequeno havia esse garoto que se gabava porque sabia amarrar os tênis, todo mundo tinha tênis e só ele sabia amarrar, na verdade outros sabiam também mas ninguém os amarrava como ele

hoje ele só usa sapatos e os tira apenas para descansá-los em uma bacia grande de água quente na hora de chegar em casa e ele sempre precisa de uma hora certa para chegar em casa

e eu gostava dele gostava muito dele
era um amor desses proibido

embora nunca tivesse me ficado claro se eu gostava dele por saber amarrar bem os tênis
ou porque de alguma forma eu sabia que dali um tempo
amarrar os tênis não ia servir pra nada

7.

existe uma hora na vida de uma pessoa que a pornografia do mundo não é mais interessante do que uma fechadura contra a parede, que pagar para fazer sexo as três da manhã com as costas de alguém não faz disparar o grande arco que rasga a cortina por trás dos olhos

mas existe você doce remetente

a quem todo envio é fálico aonde mora meu pau nesse momento em que a gravidade dele
está em suas mãos.