domingo, 28 de abril de 2013

fita 3 - no centro

a senhora aleatória hoje me perguntou
"como faço para sair da cidade?"

o que eu deveria dizer a ela
"senhora, olhe para seu braço
não vê a mancha preta no local do cotovelo?
é o asfalto recém posto"

ou então

"a cidade nunca sai de nós
mesmo com o suor das cachoeiras
há um ruído de motor em cada palavra nossa
acredite, já tentei alvejante"

a senhora aleatória tremia
enquanto aguardava uma resposta
uma direção

eu sabia que ela deveria estar muito doente
ter um corpo nos cansa
o corpo é uma grande pergunta

o que ela queria dizer afinal?
desejava sumir dali? ou "sair" da cidade
é o nome de alguma linha de ônibus?

perguntei a ela se gostaria de saber
onde ficava a rodoviária
"Não."
"o aeroporto?"
"Não"
"o rio?"
"Não"

a  senhora aleatória e suas setas girando
tinham pouco tempo.
eu precisava ser rápida
ajudar é doar velocidade

"é que hoje eu não lembro como sair da cidade
nunca sei se tenho que ir para direita ou esquerda"
ela me explica

eu que já não aguentava mais respondi
"Aaaa, sair da cidade você diz? É fácil, só pegar a direita"

ela abriu um sorriso e me agradeçou profundamente
enquanto ia embora, parou, e me disse

"boa sorte"

não que ela acreditou que havia uma saída
no fundo acho que estava tentando é me dizer alguma coisa.

domingo, 21 de abril de 2013

a escultora que não se escondia

“tem a pele pelada” havia me dito Rita.

“ora, não é todo mundo que é assim?’”

“não”, me disse ela.

confesso que não entendi o que aquilo gostaria de significar.
mas também, arrancar sentidos de Rita é como tentar escovar uma floresta com suspiros.
quando enfim conheci sua amiga, tive impressão que deveria vestir camisas GG. não sabia onde colocar minha surpresa, não havia como me esconder. fiquei pasmo, atropelado por um bando de pássaros que esnobaram o pouso em meu rosto. mas porque haveria de ficar assim? ficou claro minha ineficácia em lidar com sinceridades de perto.

sua pele era transparente. não era feita para esconder. podíamos enxergar tudo. ainda por cima, estava de regata, braços a mostra apesar de tudo. parecia estar confortável com sua situação. a primeira coisa que vi foram as veias grossas. eu podia observar  as artérias trabalhando. sem cessar, pulavam e descansavam num segundo. era como um relógio nu. a cumprimentei com um aperto de mão. não foi fácil. mas se negasse, seria correria o risco de a dar uma mágoa. eu ruía. sem muita força segurei seus dedos. podia ver exatamente onde estava tocando. engoli  um susto. mas foi um assombro quente. apesar de tudo, sua pele, era quente.

sentamos numa mesa, no lado de fora do café. ela, eu, Rita e França. ela pediu um suco de laranja. a medida que o bebia, eu acompanhava o curso do líquido laranja correndo pelo seu corpo. por algum tempo, ela era uma mulher com um risco laranja atravessado. aquilo preencheu os próximos quatro anos meus de pura fascinação. tive vergonha de me prender por muito em seu destino. tropeçar no peito, cair nas bochechas. França tomou o papel de provocar assuntos na mesa. a elogiava. ao que entendi, era escultora. “das boas”, pincelava Rita. ela era um quadro vivo. uma expedição aberta. me pus a rastejar em seus detalhes quando estava imersa em distrações. o enlace dos músculos do pescoço me fascinava. a cartilagem no nariz, um tímido mas de personalidade, me ensinava a entender mais as árvores. o mais incrível era esse contraste: os olhos. os olhos eram a única parte de seu corpo que era opaca. não conseguia me dedicar a eles sem ganhar um arrepio a parasitar minha coluna.

Rita insistia de a tratar como sua nova descoberta. assim como França, a abraçava, arquitetava bons comentários, a protegia de qualquer males exteriores. eles já haviam decidido adotá-la. de fato, a primeira vista, parecia um tanto frágil pela sua condição. mas isso me parecia um engano pronto. Rita fazia propaganda de mim para a mulher. “você precisa vê-lo tocando. Heitor é músico, você sabia?”

a mulher só sorria. quando sorria era como se continentes rígidos abrissem grandes fendas na rapidez da viagem da luz. ou como se o tempo fosse um grão, passível de ser aspirado ou levado por qualqueer direção de impulso de ar. tudo parecia possível. ela dizia pouco. mas nem precisava buscar muito as palavras. sem perceber falava de corpo inteiro.

depois da passagem, do choque, e talvez uma ponte aguda de repulsa, a mulher começou a me dar penteados novos. comecei a imaginar meus dias com sua presença. me vi bonito. de fato, gostaria de tocar algo para ela. a colocar perto de meu piano, com pouca roupa, e observar como seu corpo reagia ao som de Schubert, quem sabe. como será que a música fazia em seu peito, observar a velocidade do sangue em seus túneis submersos, verdadeiras coreografias da pele, talvez ter a sorte de olhar seu coração desvairar em uma dança solo, enquanto Lazarus está sendo tocado por mim. poderia ver o que eu faço com seu corpo.

mas mais ainda. enquanto França fazia piadinhas recheadas de notas biográficas, e explicava como aquela mulher fora parar em nossa cidade, em nossa mesa, em nossa memória hemorrágica, enquanto Rita pedira um sorvete de creme, e a mulher comia devagar um sanduíche de cogumelos (eu podia ver os cogumelos viajando pelo seu esôfago, algo que qualquer outra mulher cobriria com lenços e interruptores de escuro), me batera em cheio uma vontade devastadora de dormir com essa mulher.

não consegui parar de pensar nisso. não consegui me concentrar nos assuntos da mesa, ficava calado tentando me despersuadir dessa manifestação que já se denunciava obsessiva. eu precisava fazer amor com ela. observar, filmar, as mudanças de seu corpo, os músculos se enriquecendo enquanto eu amaciaria seus ossos, observar seu pulmão trabalhando rápido enquanto eu adentraria dentro dela devagar e cada vez mais forte, cada vez mais pulmão, balões de desta. visitá-la  por dentro e completa, morder, colocar na minha boca literalmente seu estômago, seu coração. observar a trajetória do grito em seus segredos. queria assistir ela no seu acento mais agudo.

como deve ser viver com uma mulher assim? naquele momento me descobri muitos. hoje posso dizer. já fui louco. já fui quase assassino. já fui apaixonado. e principalmente, covarde.

me avermelhava cada tanto um tanto mais. em meio ao nosso banho de sol, puxei um casaco da mochila - o vesti. indecente? talvez. éramos muito diferentes.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

tecelagem

às vezes encontro um homem. saímos de um cochicho direto para um sorriso.

ele me conta coisas que não me interessa dizer. ele me conta coisas que ninguém que me interessa conta. por isso escutá-lo é tão precioso. por isso já possuo a experiência de expecionar minas.

ele sabe falar com as mãos. portanto é poliglota, um dos maiores. às vezes, cubro seu rosto com apostas. ele espirra, e perco tudo.

dependendo da previsão do tempo diz que me ama. já me amou: num rio congelado. numa insolação esfarelada.  numa poça de água vazante.

mas na maioria do tempo, nem recorda de mim. passa dias sem telefonemas. sem e-mails. cartas ou coices. e mais. nunca me deu desculpas. nem de presente. nem de.

mas daí, de repente, começa a me ver em palmeiras. pias. toalhas de mesa, pompons de cotovelos. me presenteia com um guarda-sol e me dá um parque.

diz  "nunca mais vá embora". eu respondo que nem possuo a chave da porta.

tem dias que nos fantasiamos. eu sou o silêncio. ele o grito. de vez em quando dividimos balanços. nos escondemos atrás da frase incompleta. somos incapazes em respostas. por isso nos beijamos tanto. beijar é perguntar.

em casa quando tempo transborda, para salvar os papeis das paredes, invento algo. antes, pintava tabuleiros nos intervalos. hoje é isso. fico a desfiar suas palavras.

puxo todo o fio, até desmancharem. depois uso o que resta. começo a bordar. é assim que faço cobertas. meias. luvas e casacos.

fazem anos que só há calor. o mais longo verão riscam especialistas.

tomara que amanhã esfrie.

sábado, 13 de abril de 2013

nós que ainda moramos depois da língua de Afonso Ferrara

o que será que mastigava Afonso Ferrara no exato momento em que meu olhar escorria de seu bigode, depois de navegar entre suas pontas, molhando tudo, e criando uma pequena poça no chão, onde quem sabe com alguma falta de atenção ou surpresa, ele poderia usar para resvalar ou provocar acidentes. ali, na frente de todo mundo, meu rio exposto.

havia o piano de duras teclas costurando um clima de flores pra longe dos precipícios, havia nossos anos, nossos melhores doces anos, agonizando na pura espera, no sufoco em forma de bar, aquele gigante recepção de início ou fim, onde esperamos a janela nos recrutar para a verdadeira vida lá fora, onde homens como nós íamos por impossibilidade de visitar nossa própria coragem.

bom seria descobrir que Afonso Ferrara tinha um pedaço de sonho atravessado nos caninos direitos. bom seria descobrir que debaixo da sua língua ainda resta um pedaço das nossas tardes em Bacía del Toro, onde trocávamos palavras como quem devolve a respiração ao mundo. onde batiamos as cabeças no mesmo teto de céu.

os dias não respingavam mais grandes novidades em nós, não nos machucava com seus tufões de rotina a cidade de Lúmina Pasca. este, o lugar que dizimou todos seu amantes com seus cumprimentos pequenos. seu tempo parado na palavra noite. para cá viemos trabalhar, nessa mínima mesa de mundo, usar nossas veias de cavalos jovens para algo que nos prometeram digno, o trabalho, que diziam sabe cavar nas crianças para achar homens. nós, que escolhemos voltar para as cavernas, para as minas de carvão natural onde nos reconhecemos em escuridão, abdicamos de nossas casas por algumas pratas e desejo de futuro.

e aqui em minha frente vejo Afonso. depois de tanto baralho do tempo ter sido jogado, apostado. reencontro tudo de novo em minha frente como se ontem fosse aquilo que vem depois das sobrancelhas. Afonso está acompanhado. Afonso está a descarrilhar sua língua descarada nas pálpebras de uma mulher, que o acompanha com leves doses de carícias na perna direita, enquanto ele fuma charutos e brinca com seu uísque pago com nosso puro suor adquirido em turnos intermináveis nas minas de San Jámon de los Ausentes.

será que ele não desconfia? quando eu disse que não mais estaria aqui, fiz com joelhos limpos, quando prometi que não voltaria quem na verdade havia falado por mim era um coração de puro concreto, que depois, a duras marretas tive a felicidade de estraçalhar, inclusive, com alguns olhares com os quais cruzei e bati de cara em minhas viagens, nomes que já se foram. é verdade que mudei, as dobras no meu mapa se confundiram com as ruas, meu cabelo pouco lembra as formas de árvore que adotava na brisa de nossa juventude, os crespos e duros pelos banhos de suor, sempre mergulhados em algo quente. hoje ganhei o costume de me olhar no espelho e checar constantemente a ordem de meu penteado, com a ajuda do pente de bolso dividido em canteiros a espera de qualquer tipo de atenção germinadora. olho para Afonso, quem diria que hoje estamos tão avessos? suas roupas continuam as mesmas daquele tempo, o algodão a embolotar os dias, fios do colete cada vez mais cumprindo, deixando rastros no chão que escova a terra dura com seu peso. quem diria que temos algum tipo de ligação? que vivemos? se ele soubesse, se ele soubesse por exemplo, que gastei quarenta pratas em uma loção pós-barba na Praça Verdi, ficaria a mostrar seus dentes de fera. a velha  rixa de Afonso com os detalhes sempre fora conhecida por todos.

coisas que me recordo sobre Afonso Ferrara:
1) quando estava chateado fabricava geleia de framboesa com canela, em nossa cozinha coletiva, às escondidas, enquanto todos estavam a dormir.
2) para entender que Afonso estava cansado quando ficava muito tempo a encarar uma rachadura na parede, e ao mesmo tempo, começava a contar histórias sobre quando foi uma estrela de Remo,na época de seu internato na infância. ou seja, começa a mentir.
3) para saber se Afonso estava irritado com algo bastava fixar o olhar em seus bolsos, se você começasse a enxergar um ou outro gafanhotos a praticar acrobacias por ali, aquele definitivamente não estava sendo um bom dia para ele.
4) Afonso gostava de acordar cedo para contar as estrelas que ainda não sumiram do céu. assim decidiria a sorte do dia. quando o conheci, ele sempre contava. tinha dormido demais no dia. o sol matou as estrelas.
5) quando estava apaixonado seu silêncio tinha cheiro de sândalo. além disso, precisava carregar sempre um lenço consigo, para secar constantemente as mãos desaforadas, um tipo de suor que faziam escorrer dos dedos, dentre outas coisas, os instrumentos pesados do trabalho, na sua maioria pontiagudos e à base de ferro, sósias de puro perigo-violência.

Afonso sabia fazer cortinas artesanais como ninguém. quando o dia não o afeiçoava fechava os olhos com sua favorita: pálpebra de crochê verde-capim.

lembro de uma vez, depois de mais de dez horas recolhendo pedras e respirando pedras, Afonso veio a este mesmo bar e se decidiu por vodca. acabou arranjando confusões com Nicolai, um pequeno astuto que vivia de desembolsar desejos de viúvas, e o deu uma surra que quase tornou argila todos ossos de seu pobre corpo. na volta para casa, o encontrei chorando desesperadamente no seu quarto. tentei intervir, abrir a porta, arrancar-lhe as tristezas. mas ele bradava para não me aproximar. esbanjava vergonha, seu cheiro mais detestado. ficou a noite inteira assim, no amanhecer, seu choro já chorinho ainda bradava, concorria com os pássaros a anunciar a manhã do outro lado da rua. na hora do café já havia reaprendido a ser rude novamente. assim era o homem Afonso.

ficaria decepcionado comigo ao saber que voltei. Afonso, voltei por ti. Afonso, o que sabes essa mulher que te mira nos lugares tão errados, no vazio dos teus cabelos por exemplo? será que ela te ama e sua pele apita e confunde o tráfego quando te avista de raspão? será que ela te segura na cama, para que não caia e se perca em seu próprio sono? porque confunde essa cidade com seu próprio caixão? Afonso, estou te olhando agora, faz mais de uma hora. o salão está todo alagado, todos me culpam pela deselegância, até seu Sanchez, o garçom ítalo-marroquino, derrapou umas tantas vezes no quanto te olho, no quanto. mudo o foco, olho fixamente para sua mão,  para o bolso de seu terno remendado, do lado esquerdo do corpo. se ali estiver vazio, estou salvo.

em frente desta sua convidada de pernas grossas e perfume de mulher, inclusive, em corpo de mulher, se você não erguer aquele conhecido lenço de seda marrom: estou salvo e tudo fará sentido.
cruzo os dedos e desenlaço com o pensamento a corrente de nossa antiga âncora de pescar.

fita 2 - o cobrador

eu quero
torradas que rejuvenesçam
um café com olhos
acordar cedo para espiar a vida
sentada

sem soslaio, ponto ou corte
de ruptura

exportar agosto em forma de sorrisos

roda treinando em frente
a minha própria plantação.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

incrível deshistória de Juan Fusco e Augustina Marcos

a vida havia prometido a Augustina a visita de um amor.
e por verões, longos e curtos, invernos, fechados e lentos, esperou em casa o convidado,
ficou completamente em casa,
pedindo tele-entregas, praticando costura nas horas, lendo apenas o que caia no capacho da porta.
esqueceu-se Augustina de que para entrar algo tem que sair
de que, já que Augustina era ansiosamente gorda, gorda, dona de um temperamento gordo demais
pouco espaço restava na casa.
Juan Fusco, ao analisar o caso mais tarde, atestou como principal hipótese em seu relatório:
"esqueceu-se Augustina de que o amor só entra quando não há ninguém em casa,
que o amor
só nos visita onde nós não estamos".
Augustina e Juan Fusco , até mesmo eles, poderiam ter se conhecido, quem sabe, ter sido felizes,
mas não era uma mas maiores facilidades para Juan conseguir identificar portas e Augustina, infelizmente, estava atrás de uma.

fita 1 - no ônibus

a mulher senta-se com a neta na parte da frente do ônibus. acentos preferências. elas dividem uma sacola. frágil, dando por si, estressada. a mulher penteia as pálpebras com a própria mão como se procurasse dentro dos olhos alguma coisa. nada. não encontrada nada pois a inquietação dos dedos salienta isso. a criança exala silêncio. raro para a idade. ela atravessa o vidro do ônibus com os olhos. nos raspões de velocidade deve haver algo que a conforta. o que será que sente a mulher que leva a família no ônibus, com seus olhos desgastados e tinta por sair? cada uma segura a alça da mesma sacola. dentro dela, uma velha televisão de tubo. quem será que estragou ali? qual é a culpa do silêncio? no ônibus nunca sabemos se algo está chegando ou indo embora.

penélope depois do acidente

preferia ter ficado deprê em casa
sem ter ninguém para calçar meus sapatos
meter a colher no chuveiro da lua
mastigar aflita uma felpa de horas
do que saber

você

seu sinal de perigo
sua placa favorita em pista rápida
seu novo namorado
velho cúmplice de colar tijolos
colar manhãs e ferros quentes

você

que rabiscou os planos de vida
nos casco de uma árvore
que o tempo já levou
que sempre esbanjou futuro
mas nunca conseguiu decidir nosso jantar

eu acreditei na imagem dessintonizada
guardei para mais tarde os tickets para o estádio

você e suas quatro namoradas
com as quais tinha que dividir você
na luta santa sangre sempre me restava
um ou outro braço seu
sempre cansado demais para dividir
a mesma velocidade
sempre saudável demais para erguer
um adeus

ficarei em casa
cavocando a própria pegada
talvez assim você não a reconheça na rua
ou não se atente em fazer chover só para
despistar meu próprio retorno.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

história de família

quando eu tinha uns sete anos
achava meus tios um máximo
eu lembro de admirá-los e um dos
principais motivos era que
eles podiam comer ovos de chocolate
antes da páscoa
para mim isso resumia o que significava
enfim crescer

eu chegava no apartamento deles
e tava lá a embalagem rosa de sonho de valsa
reluzindo  naquela bagunça toda
de gente jovem reunida
os cobertores morando no chão da sala
expulsos da cama pelo que entendi era amor

meus tios moravam na frente de um hipódromo
eu subia numa banqueta na janela
e ficava vendo os cavalos correndo
pensava em como eu era muito sortuda
e embora não tivesse idade para apostar
tinha a visão mais privilegiada

mas as embalagens dos ovos de páscoa
sempre estavam vazias
meus tios comiam muito chocolate nessa época
a hora que bem entendiam
comiam muito rápido
eu pensava que aquilo talvez quisesse dizer paixão

lembro de ver meus pais se beijando
aquele encontro rápido de rostos
o que é normal eu imaginava

mas era ao ver meus tios rindo
meus tios tinham uma facilidade grande em sorrir um para o outro
é que eu abastecia a vontade de peneirar
e talvez encontrar essa felicidade nas minas do futuro

meus tios nunca chegaram a assinar nenhum papel
nunca disseram sim para um juiz ou homem de lei
apenas arriscavam tudo um no outro
em silêncio concordado

hoje o hipódromo está fechado
e meus tios já não estão mais juntos

eu bem que tenho idade para forrar o tempo
fazer apostas altas
e perder tudo em um suspiro
evito comer doces temendo pelo pior da saúde.

meu tio quando vem me visitar
carrega culturas rígidas
eu sei que ele gostaria de sorrir mais
mas não é algo que depende dele

o sorriso são como as plantas
precisam ser assistidas na medida certa

caso contrário deixam de existir.

receitas de amanhãs

gostaria que nossos filhos
sempre nos perguntassem as horas.

mesmo na posse de seus calendários
nos perguntassem se fará frio à noite
quando estarão a viver suas próprias vidas.

gostaria que nossos filhos
nos pedissem para colocar no correio suas cartas
mesmo que não tivessem coragem de escrevê-las.

depois de terem manchado o choro
com um rosto em especial
encasacassem o corações por
puro desespero de o vê-lo tremer demais.

que nossos filhos nos ajudassem a vestir
nosso verdadeiro tamanho
já que os dias não nos cabem mais
perdemos os botões como quem inventa o pó

domingo, 7 de abril de 2013

só usar roupas frouxas para que não saiba onde os olhos se fecham
inverti a lógica e todo dia é um sucesso

só que faz calor

quinta-feira, 4 de abril de 2013

pretéritos

cena dois

eu poderia trepar com ele agora mesmo
trancar os dentes e amar o tempo presente
por caber nos braços finos de minhas horas

eu poderia trepar com ele para sempre
só com ele, em prédios nascendo, em rios discursando,
no tempo descartado do almoço do cansaço
eu treparia com ele nas cabines de embarque dos sonhos pesados
em cima dos bosques, dos vidros temperados

eu cuidaria da minha saúde e olharia para minha bunda
como quem olha para a bunda de quem ele vai trepar
eu prestaria atenção e mimaria minha pele toda
porque é só com a toda que eu treparia com ele

eu treparia com ele para acordar
eu treparia com ela para dormir
eu treparia com ele para tomar banho
eu treparia com ele para  conseguir ficar sozinha
apenas comigo mesma

só que se eu trapasse com ele agora mesmo
e todos os dias todos os dias o mesmo
eu ia gostar demais
e se ele trapasse comigo todo dia iria saber
como eu tenho problemas com o demais.