sábado, 13 de abril de 2013

nós que ainda moramos depois da língua de Afonso Ferrara

o que será que mastigava Afonso Ferrara no exato momento em que meu olhar escorria de seu bigode, depois de navegar entre suas pontas, molhando tudo, e criando uma pequena poça no chão, onde quem sabe com alguma falta de atenção ou surpresa, ele poderia usar para resvalar ou provocar acidentes. ali, na frente de todo mundo, meu rio exposto.

havia o piano de duras teclas costurando um clima de flores pra longe dos precipícios, havia nossos anos, nossos melhores doces anos, agonizando na pura espera, no sufoco em forma de bar, aquele gigante recepção de início ou fim, onde esperamos a janela nos recrutar para a verdadeira vida lá fora, onde homens como nós íamos por impossibilidade de visitar nossa própria coragem.

bom seria descobrir que Afonso Ferrara tinha um pedaço de sonho atravessado nos caninos direitos. bom seria descobrir que debaixo da sua língua ainda resta um pedaço das nossas tardes em Bacía del Toro, onde trocávamos palavras como quem devolve a respiração ao mundo. onde batiamos as cabeças no mesmo teto de céu.

os dias não respingavam mais grandes novidades em nós, não nos machucava com seus tufões de rotina a cidade de Lúmina Pasca. este, o lugar que dizimou todos seu amantes com seus cumprimentos pequenos. seu tempo parado na palavra noite. para cá viemos trabalhar, nessa mínima mesa de mundo, usar nossas veias de cavalos jovens para algo que nos prometeram digno, o trabalho, que diziam sabe cavar nas crianças para achar homens. nós, que escolhemos voltar para as cavernas, para as minas de carvão natural onde nos reconhecemos em escuridão, abdicamos de nossas casas por algumas pratas e desejo de futuro.

e aqui em minha frente vejo Afonso. depois de tanto baralho do tempo ter sido jogado, apostado. reencontro tudo de novo em minha frente como se ontem fosse aquilo que vem depois das sobrancelhas. Afonso está acompanhado. Afonso está a descarrilhar sua língua descarada nas pálpebras de uma mulher, que o acompanha com leves doses de carícias na perna direita, enquanto ele fuma charutos e brinca com seu uísque pago com nosso puro suor adquirido em turnos intermináveis nas minas de San Jámon de los Ausentes.

será que ele não desconfia? quando eu disse que não mais estaria aqui, fiz com joelhos limpos, quando prometi que não voltaria quem na verdade havia falado por mim era um coração de puro concreto, que depois, a duras marretas tive a felicidade de estraçalhar, inclusive, com alguns olhares com os quais cruzei e bati de cara em minhas viagens, nomes que já se foram. é verdade que mudei, as dobras no meu mapa se confundiram com as ruas, meu cabelo pouco lembra as formas de árvore que adotava na brisa de nossa juventude, os crespos e duros pelos banhos de suor, sempre mergulhados em algo quente. hoje ganhei o costume de me olhar no espelho e checar constantemente a ordem de meu penteado, com a ajuda do pente de bolso dividido em canteiros a espera de qualquer tipo de atenção germinadora. olho para Afonso, quem diria que hoje estamos tão avessos? suas roupas continuam as mesmas daquele tempo, o algodão a embolotar os dias, fios do colete cada vez mais cumprindo, deixando rastros no chão que escova a terra dura com seu peso. quem diria que temos algum tipo de ligação? que vivemos? se ele soubesse, se ele soubesse por exemplo, que gastei quarenta pratas em uma loção pós-barba na Praça Verdi, ficaria a mostrar seus dentes de fera. a velha  rixa de Afonso com os detalhes sempre fora conhecida por todos.

coisas que me recordo sobre Afonso Ferrara:
1) quando estava chateado fabricava geleia de framboesa com canela, em nossa cozinha coletiva, às escondidas, enquanto todos estavam a dormir.
2) para entender que Afonso estava cansado quando ficava muito tempo a encarar uma rachadura na parede, e ao mesmo tempo, começava a contar histórias sobre quando foi uma estrela de Remo,na época de seu internato na infância. ou seja, começa a mentir.
3) para saber se Afonso estava irritado com algo bastava fixar o olhar em seus bolsos, se você começasse a enxergar um ou outro gafanhotos a praticar acrobacias por ali, aquele definitivamente não estava sendo um bom dia para ele.
4) Afonso gostava de acordar cedo para contar as estrelas que ainda não sumiram do céu. assim decidiria a sorte do dia. quando o conheci, ele sempre contava. tinha dormido demais no dia. o sol matou as estrelas.
5) quando estava apaixonado seu silêncio tinha cheiro de sândalo. além disso, precisava carregar sempre um lenço consigo, para secar constantemente as mãos desaforadas, um tipo de suor que faziam escorrer dos dedos, dentre outas coisas, os instrumentos pesados do trabalho, na sua maioria pontiagudos e à base de ferro, sósias de puro perigo-violência.

Afonso sabia fazer cortinas artesanais como ninguém. quando o dia não o afeiçoava fechava os olhos com sua favorita: pálpebra de crochê verde-capim.

lembro de uma vez, depois de mais de dez horas recolhendo pedras e respirando pedras, Afonso veio a este mesmo bar e se decidiu por vodca. acabou arranjando confusões com Nicolai, um pequeno astuto que vivia de desembolsar desejos de viúvas, e o deu uma surra que quase tornou argila todos ossos de seu pobre corpo. na volta para casa, o encontrei chorando desesperadamente no seu quarto. tentei intervir, abrir a porta, arrancar-lhe as tristezas. mas ele bradava para não me aproximar. esbanjava vergonha, seu cheiro mais detestado. ficou a noite inteira assim, no amanhecer, seu choro já chorinho ainda bradava, concorria com os pássaros a anunciar a manhã do outro lado da rua. na hora do café já havia reaprendido a ser rude novamente. assim era o homem Afonso.

ficaria decepcionado comigo ao saber que voltei. Afonso, voltei por ti. Afonso, o que sabes essa mulher que te mira nos lugares tão errados, no vazio dos teus cabelos por exemplo? será que ela te ama e sua pele apita e confunde o tráfego quando te avista de raspão? será que ela te segura na cama, para que não caia e se perca em seu próprio sono? porque confunde essa cidade com seu próprio caixão? Afonso, estou te olhando agora, faz mais de uma hora. o salão está todo alagado, todos me culpam pela deselegância, até seu Sanchez, o garçom ítalo-marroquino, derrapou umas tantas vezes no quanto te olho, no quanto. mudo o foco, olho fixamente para sua mão,  para o bolso de seu terno remendado, do lado esquerdo do corpo. se ali estiver vazio, estou salvo.

em frente desta sua convidada de pernas grossas e perfume de mulher, inclusive, em corpo de mulher, se você não erguer aquele conhecido lenço de seda marrom: estou salvo e tudo fará sentido.
cruzo os dedos e desenlaço com o pensamento a corrente de nossa antiga âncora de pescar.

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