domingo, 21 de abril de 2013

a escultora que não se escondia

“tem a pele pelada” havia me dito Rita.

“ora, não é todo mundo que é assim?’”

“não”, me disse ela.

confesso que não entendi o que aquilo gostaria de significar.
mas também, arrancar sentidos de Rita é como tentar escovar uma floresta com suspiros.
quando enfim conheci sua amiga, tive impressão que deveria vestir camisas GG. não sabia onde colocar minha surpresa, não havia como me esconder. fiquei pasmo, atropelado por um bando de pássaros que esnobaram o pouso em meu rosto. mas porque haveria de ficar assim? ficou claro minha ineficácia em lidar com sinceridades de perto.

sua pele era transparente. não era feita para esconder. podíamos enxergar tudo. ainda por cima, estava de regata, braços a mostra apesar de tudo. parecia estar confortável com sua situação. a primeira coisa que vi foram as veias grossas. eu podia observar  as artérias trabalhando. sem cessar, pulavam e descansavam num segundo. era como um relógio nu. a cumprimentei com um aperto de mão. não foi fácil. mas se negasse, seria correria o risco de a dar uma mágoa. eu ruía. sem muita força segurei seus dedos. podia ver exatamente onde estava tocando. engoli  um susto. mas foi um assombro quente. apesar de tudo, sua pele, era quente.

sentamos numa mesa, no lado de fora do café. ela, eu, Rita e França. ela pediu um suco de laranja. a medida que o bebia, eu acompanhava o curso do líquido laranja correndo pelo seu corpo. por algum tempo, ela era uma mulher com um risco laranja atravessado. aquilo preencheu os próximos quatro anos meus de pura fascinação. tive vergonha de me prender por muito em seu destino. tropeçar no peito, cair nas bochechas. França tomou o papel de provocar assuntos na mesa. a elogiava. ao que entendi, era escultora. “das boas”, pincelava Rita. ela era um quadro vivo. uma expedição aberta. me pus a rastejar em seus detalhes quando estava imersa em distrações. o enlace dos músculos do pescoço me fascinava. a cartilagem no nariz, um tímido mas de personalidade, me ensinava a entender mais as árvores. o mais incrível era esse contraste: os olhos. os olhos eram a única parte de seu corpo que era opaca. não conseguia me dedicar a eles sem ganhar um arrepio a parasitar minha coluna.

Rita insistia de a tratar como sua nova descoberta. assim como França, a abraçava, arquitetava bons comentários, a protegia de qualquer males exteriores. eles já haviam decidido adotá-la. de fato, a primeira vista, parecia um tanto frágil pela sua condição. mas isso me parecia um engano pronto. Rita fazia propaganda de mim para a mulher. “você precisa vê-lo tocando. Heitor é músico, você sabia?”

a mulher só sorria. quando sorria era como se continentes rígidos abrissem grandes fendas na rapidez da viagem da luz. ou como se o tempo fosse um grão, passível de ser aspirado ou levado por qualqueer direção de impulso de ar. tudo parecia possível. ela dizia pouco. mas nem precisava buscar muito as palavras. sem perceber falava de corpo inteiro.

depois da passagem, do choque, e talvez uma ponte aguda de repulsa, a mulher começou a me dar penteados novos. comecei a imaginar meus dias com sua presença. me vi bonito. de fato, gostaria de tocar algo para ela. a colocar perto de meu piano, com pouca roupa, e observar como seu corpo reagia ao som de Schubert, quem sabe. como será que a música fazia em seu peito, observar a velocidade do sangue em seus túneis submersos, verdadeiras coreografias da pele, talvez ter a sorte de olhar seu coração desvairar em uma dança solo, enquanto Lazarus está sendo tocado por mim. poderia ver o que eu faço com seu corpo.

mas mais ainda. enquanto França fazia piadinhas recheadas de notas biográficas, e explicava como aquela mulher fora parar em nossa cidade, em nossa mesa, em nossa memória hemorrágica, enquanto Rita pedira um sorvete de creme, e a mulher comia devagar um sanduíche de cogumelos (eu podia ver os cogumelos viajando pelo seu esôfago, algo que qualquer outra mulher cobriria com lenços e interruptores de escuro), me batera em cheio uma vontade devastadora de dormir com essa mulher.

não consegui parar de pensar nisso. não consegui me concentrar nos assuntos da mesa, ficava calado tentando me despersuadir dessa manifestação que já se denunciava obsessiva. eu precisava fazer amor com ela. observar, filmar, as mudanças de seu corpo, os músculos se enriquecendo enquanto eu amaciaria seus ossos, observar seu pulmão trabalhando rápido enquanto eu adentraria dentro dela devagar e cada vez mais forte, cada vez mais pulmão, balões de desta. visitá-la  por dentro e completa, morder, colocar na minha boca literalmente seu estômago, seu coração. observar a trajetória do grito em seus segredos. queria assistir ela no seu acento mais agudo.

como deve ser viver com uma mulher assim? naquele momento me descobri muitos. hoje posso dizer. já fui louco. já fui quase assassino. já fui apaixonado. e principalmente, covarde.

me avermelhava cada tanto um tanto mais. em meio ao nosso banho de sol, puxei um casaco da mochila - o vesti. indecente? talvez. éramos muito diferentes.

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