quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Chá de São Telmo

Antônio observa a chaleira a esquentar com certa inveja do seu calor.Nota a água quente descolando-se e inundando o ar, pasmo. Conhecia a sensação de ser deixado, assim, aos poucos.E se muito conhecera dos números, não deu conta de suas somas, que o amor de dois é feito de mais encontros que desencontros, que de Maria tem é mais promessas e memórias, do que olhos de confronto e sorrires de conforto.
Parece que tudo que os restou foi aquele chá. É pela manhã, na hora do chá preto, e pela noitinha, hora do chá de camomila que ele tem a oportunidade de visitar o rosto de sua mulher, sempre tão atarefada que só ela. O pobre seu-homem apressa o dia a passar mais rápido, antecipa os relatórios no serviço, encharca as flores além da conta e sempre trás uma lembrancinha da Confeitaria da Rua Independência para Maria que muito corre e pouco vê.”O nosso amor é pequenas doses” – pensa Antônio e recorda da aversão doce que o chá de sua mulher tem.Não sabia desvendar há que época ficaram tão distantes .Ou até que época fingiam se entender de perto.As paredes altas de arquitetura extinta, os rodapés rendidos a poeira e os azulejos extensos por entre os cômodos, sempre tiveram o vazio que somente agora se apresenta.Talvez ele fosse para ela como um móvel apenas, naquela sala envernizada com tapetes indígenas, um vagabundo com fala alexandrina que adotou por falta de estupidez.Mas a amava.A prova eram os olhares esguios e inertes alimentando-se das voltas movimentadas de seu crespo, que para os apenas observadores ,era sinal de falta de capricho e que para ele, era a felicidade a passear por perto.Precisava abraçá-la em ossos, esconde-la do tempo por kilometros, vê-la nua ensopando-se da sua pele.Ou não.Só olhá-la até a convencer de ser ela seu mirante.Por que Antônio é desses homens que amam uma vês porque é apenas um amor – dizem, tal como a vida – que se pode ter.Era disposto a ceder seus cabelos bicolor, sua barba mediana, os olhos enrugados de sentidos, todos os confortos de seu singelo corpo, a um que o encorpasse de vez.
Não pode-se culpar o governo por tudo, e em São Telmo, ninguém culpa.”A Branca” além do branco da neve incessante e das nuvens em conflito, tinha também a cidade, a cor da pacificidade.As segundas feiras de manhã, Antônio comprava ração para pássaros, as “única beldades compreensivas”, na Avenida Metrópole.Era o mais longe que tinha que se movimentar dentro da cidade.Odiava o Ato número 19, e ainda mais aqueles que nada fizeram para impedir a sua vida-ganha.Viu cadeados sendo postos em cada ladrilho de sua infância e beco, parte da adolêcencia que não se gosta de lembrar, mas gosta de saber que ocorreu;homens cheirando a gula de fábrica criando enormes portões onde ele criava significância (de vida, talvez). Deslocarva-se quatro bairros para ir atrás da tal loja especializada, imagine.Passava por São Vicente, Cardone, Bela Terra e Iugo.E quando perdia o passe certo, tinha de voltar em casa e pegá-lo.Lembrava de quando as ruas eram abertas a todos, sem tanto controle .Por isso, informava com antecedência o seu destino para o controle de pedestres de São Telmo, domadores astutos em sua tarefa de fazer o circo circular, para evitar desconfortos com as autoridades.Em outros tempos, ele e Maria caminhavam por toda a cidade, passavam na feirinha de Clemente, tomavam um sorvete na praça e liam os franceses sem empatia, apenas por expressão.Agora com as ruas da cidade bloqueadas com esses grandes portões-de-aço-tudo-que-é-ruim- continua, fica difícil.Não fazia parte daquele homem de pequenos feitos mas grandes imaginários, essa distância tão aguda que o fazia desconfiar da humanidade.
A casa antiga era o que restou de material da líquida vida do pai de Antônio.Na corrida de cavalos, perdeu a companhia de uma esposa e o respeito de seu filho, que só por respeito aos desconhecidos, olhou em seu rosto até a última tomada de consciência, a espera de um pedido de desculpas que veio através de um testamento magro, que deu a morada em que vivem.Na sala retangular havia junto a espera, uma estante de livros esquecidos e uma TV sem antena.A cozinha americana Lembranças de bons momentos, e seguindo-se o corredor ausente de retratos não perturbadores, estavam os três quartos, o último no qual dormiam.Sua-mulher andava tratando a casa com desdém.A cidade de São Telmo a atrasava em muito,já que andar naquelas ruas bloqueadas por enormes fechaduras era o mesmo que desperdiçar respiradas dentro d´água;depois ainda tinha de abrir e fechar todas as portas corretamente em sua própria casa.Enquanto isso, Antônio andava pelas peças a procura do incontrolável, da realidade que vivia sem poderes maiores.Contava os azulejos com passo lesado e olhos apontados ao relógio de madeira ao lado da TV, ansioso por um som que dignasse um molho de chaves sendo carregado, com a missão de trazer ela sua-mulher até ele.Já que não vivia diariamente perto dos conflitos dos pneus em asfalto e dos zumzumzuns das próximas reviradas industriais, pois trabalha em casa, era o cansaço do silêncio o que mais o cansava.
Na última segunda-feira a noite, Antônio pôs-se a fazer o chá.Os pássaros não estavam com fome como imaginara, podia ser que eles não queriam comer – estavam tristes.Ficara triste ao perceber que o conforto propiciado por ele, não os atendia.Esquentou a água na chaleira prata, que reluzia o vazio que ele disfarçava.Sua-mulher já tinha chegado antes dele e estava no quarto.No telefone haviam se falado antes, ela disse não se sentir bem.Preocupava-se, e por isso, adicionou a torta de nozes “a preferida das preferidas” ao chá daquele inicio de noite.Sua-Mulher tossia alto, escutava-se da cozinha.Equilibrou os aperitivos sobre um longo prato segurando-o com apenas uma mão, para deixar a outra livre para as chaves.O ato 19 não bloqueava apenas as ruas, como impedia os cidadãos de livre circulação em suas casas.Depois de abrir três portas, Antônio encontrou sua-mulher a dormir, ainda em roupa de dia que se foi, com olhos a esconder-se de agora, alongados em cima de uma coberta a trocar.Deixou-a assim, não era a primeira vez que não ganharam a sorte da coincidência de seus tempos.

Assim eram todas as semanas.Quando Antônio acordava tarde, quando chegava na cozinha o chá já estava pronto e ela já havia partido.Quando a procurava na cozinha,a distância de três portas, ela já estava no quarto mergulhada em sono.A noite, ele ansioso, perdia as chaves no seu casaco extenso de inverno, e a distância exata de cinco portas a serem abertas e fechadas, sua-mulher já despedia-se do dia em sono.Na cama ele preenchia-se com as pernas e os seios sem resposta e incomunicáveis,embora naqueles momentos fossem seus em realidade, não era bem essa realidade que desejava.Será que ela toparia uma viagem a vila Madalena no final de semana?Não poderia fazer a pergunta naquele momento.Não podia privar alguém desse objeto tão em falta.Sua-mulher parecia cansada, seu sono alongava e tinha crises fortes de tosse.Numa noite, Antônio acordou com o dia um pretume lá fora.A tosse de sua-mulher aumentava consideravelmente.Ele próprio não sabia lidar com altura que chegava os ventos sonoros de sua garganta.Apertou-a, vendo nisso a coisa certa a fazer.O telefone para emergência estava na sala, distância de três portas.Pegou suas chaves e deixou-a a dormir.
Levantou-se, decidiu preparar uma chaleira. Já na cozinha, ouviu as tosses em aumentativo. Desesperou-se.Onde botara as chaves?Não estava no roupão, nem dentro dos armários. Chutou a porta, duas , três vezes.Mas eram rígidas feitas com material semelhante as que guardavam as ruas. Silêncio. Sentiu o estomago empacotar-se em volta de si próprio, a espinha separar-se dos ossos, só o medo de solução.Não encontrava saída, e Maria talvez estivesse desmaiada e a porta lacrada.As três portas lacradas, não encontrava as chaves e Maria talvez estivesse em perigo.Maria estava desmaida (será), não havia portas e muito menos suas chaves.Girando em volta de si mesmo,ele não caiu no chão.A Janela,janela aquela no décimo andar, em frente aos potes de bolachas salgadas,ao lado do frigobar reformado, não precisava do velho molho de chaves.Querendo ir, sem saber para onde correr, por lá foi socorrer Maria e informá-la, de sua nova descoberta.

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