Eu não tinha realmente mais nada com o que me preocupar.
Antes eu passava a maioria dos meus dias desenhando meus próprios seios, imersa em um loop de olhares entre eles e o espelho de aumento que sempre acabavam com qualquer pista do que poderia haver de errado comigo. Na minha cabeça meus seios eram a velha borra de café. Sabiam de tudo inclusive mais pra frente. Costumava deixar o carro para lavar umas duas vezes por semana com uma pretensão minúscula de organizar as estantes quebradas da minha vida. Às vezes pedia dinheiro as crianças nos parques em uma estranha inversão de papéis que servia apenas para gerar um comichão, um riso, como se eu realmente representasse qualquer tipo de ameaça a ordem do tempo, das coisas.
Mas agora isto tudo não é mais tão tudo assim. As coisas ficaram simplesmente mais fáceis no dia em que resolvi parar de falar. Nadis. Nadic de nada.
Meu primeiro pensamento após esta resolução foi escrever algumas cartas aos meus amigos no ímpeto de buscar alguma garantia para o caso de ficarem zangados ao ponto de fazem meu rosto um tutorial de auto-defesa, trazerem seus cachorros para fazer coco em meu pátio, esse tipo de coisa. Então compreendi de verdade onde estava me levando. A idéia toda de não precisar falar também consistia em não ter que dar explicações como essa. Nenhuminha.
Se não há nada mais tedioso do que não ter ninguém para conversar, ter e não falar soava uma forma certeira de alívio e excitação.
Nos primeiros dias não foi tão fácil. Nos restaurantes e cafés, havia vezes que as pessoas me tratavam mal quando não respondia suas perguntavas, apenas apontava o pedido no cardápio. No caso de tropeçar em alguma alma viva sem querer, na iminência da obrigação do pedido e desculpas eu apresentava uma expressão gosmenta com os olhos, a mesma expressão que sempre imaginei que as freiras usavam quando assistiam o jornal local ou tinham que orientar uma jovem grávida, sozinha ou sem muito dinheiro. Algumas pessoas me xingavam, outras se assustavam com as nuvens do meu rosto, fugiam, deviam achar que era transmissível.
Havia vezes em que saia para beber em algum bar apenas para manter o costume, algum homem seu aproximava, e era mágico vê-los falando sozinho, o que de fato entendi que gostam e muito. Por um dia ouve esse baixinho, com um problema na perna, que me dizia que tinha atropelado a si mesmo, coisa que não entendi muito bem. Falou muito sobre uma de suas avôs, me disse que eu lembrava muito ela, não sei se pelo fato de ouvir ou não falar nada já que os mortos não falam, depois me agradeçou com um abraço e foi embora para aqueles lados dos quais nunca mais vi.
Claro que havia também outros que muito irritados ameaçavam estourar os copos do balcão apenas com uma promessa, mas logo o bartender os dizia, “esta aí tem um problema, esta aí é muda” e eles mudavam o olhar para um celeiro de piedade, seus rostos eram um feno fofo, ficavam os cabeças cheias e tiravam seus chapéus logo em seguida.
Há pessoas que param de falar por traumas. Histórias nefastas, de morte e dor. Seria como um acidente de carro, perder uma perna, um acidente de trabalho, perder um braço. Assim é a voz, nosso complemento de corpo invisível e gozado. E também há pessoas como eu. Que fazem disso uma escolha por simples tédio.
Então teve um dia que eu tinha que dar uma palestra. Uma aula na universidade.
Uma vez a cada seis meses eu sou convidada por uma amiga para conversar com os alunos de sua classe, que recém adentraram na academia. Não sei por que – além do fato dela gostar de mim – o qual o motivo teria de alguma penca de jovens ficarem me ouvindo falar por uma hora com seus rostos esfolados pela não escolha e pura piedade. Normalmente, eu os mostrava fotos do tempo em que trabalhei com Figaro Valério, um conhecido escultor de perucas, isto ainda na minha adolescência. Houve um tempo em que tentei de todo modo me tornar uma artista, um tempo no qual Figaro fez parte, minha amiga fez, meu ex-marido, e até meu último cachorro.
Minha amiga insistiu para eu ir e eu fui. Depois de dois dias na casa dela descobri que nunca parar de falar pode ser considerado um ato egoísta. Matilda falava sem parar da sua vida, do amante armeno que fazia um barulho sexual de máquina industrial (da revolução a vapor), as fofocas dos colegas em crise de meia idade com nudes circulando entre iphones de alunas, do fato da filha não falar mais com ela depois que votou do Partido Liberal. Era uma mulher pelo menos, diz minha amiga, tu sabe muito bem que nos outros ano eu votava em quem era bonito. Na dúvida, todos os navios no bonitão! Este era meu lema, lembra? Nunca comi tanto escondidinho na vida com tipos de soja diferente isso posso dizer. Na hora de dormir lutava para encontrar minha própria voz na minha própria cabeça. O agudo cortante deminha amiga vinha com tudo nos olhos fechados e se misturava com o timbre do garçom falando de como as laranjas vieram do oriente-médio, misturava-se com meu porteiro desabafando com o genro e a síndica gritando sobre os pingos dos ares condicionados em sua voz cavernosa. Fiquei levemente agoniada, pois me dei conta que não só havia parado de falar mas também parado de pensar estar falando. Parado de pensar em mim na primeiríssima pessoa.
A palestra foi sem dúvida inesquecível. Minha amiga fez questão no inicio de dizer que eu estava fazendo um experimento artístico, sendo em uma artista que me entregava de corpo e alma para o trbalho prático e teórico, já estava no nono mês de minha investigação, uma vez que não me considero uma artista, mas não poderia falar nada porque não falava mesmo. A aula magna era sobre jornalismo e não tinha nada a ver com arte era isso que eu queria dizer se pudess jornalismo não tem nada a ver com arte, então, mostrei algumas sessões de imagens que eu mesma tirei durante meus anos trabalhando em redações. Eram de meus colegas de trabalho em seu local típico, mortos de cansaço, corroídos pela rotina, dormindo em cima das mesas, com olheiras, devastados por café, cigarros e péssimas noções de estilo. Numa das fotos meu colega Barney o correspondente de Washignton que usava nossa sala emprestado pela filial comia um hamburguês com uma mão enquanto segurava o telefone na outra e em sua camisa o katchup e a mostarda se encontravam. Ao fundo havia o calendário escrito 31 de dezembro e um relógio marcando 00h23, uma redação vazia e escura. No ultimo slide eu botei uma frase bem besta escrito “me contem essa história, me falem de vocês” pela motivo maior da preguiça de ter que desenvolver algo sem poder falar.
Mas logo logo entendi onde me meti. Minha amiga me usou para sua rinha de alunos ansiosos e ambiciosos, aqui está meus caros, treinem suas táticas. Como entrevistar alguém que diz nada? Alguém que se recusa a falar? Aumentem suas técnicas! E os alunos não paravam com novas táticas de persuasão que vinham desde elogios estendidos como adorei como você trouxe o jornalista como o personagem da noticia e tratou do tom pessoal e subjetivo como necessário para a atribuição de sentido e autentificacao da verdade na era da pos-verdade, ou criticas ao capital humano explorador das grandes fabricas de noticia, ou, também, como alguns tentavam me fazer abrir a boca com insultos e jogos psicológicos, citando historias escabrosas que encontraram de mim na internet e todos meus relacionamentos falhados para me tirar do eixo. Ninguém falou de si como pedi, mas duas semanas depois, minha amiga confessou que 4 largaram o curso.
Voltei para casa irritada e com menos vontade ainda de abrir o bico.
Algumas semanas se passaram e a vontade de falar não era mais uma decisão mas falta ed vontade mesmo. Cada vez mais as palavras não vinham e eu parecia estar loge de mim e longe ate mesmo do vocabulário do silencio. Eu estava em lugar algum. Podia passar dias vendo os carros da minha janela e olhando as nuvens do céu sem nenhum pensamento sequer na cabeça eu nem saberia dizer se seria capaz de emitir um som novamente, se minha voz seria a mesma. Eu já não escutava mais nada, apesar dos barulhos, das pessoas me dizendo coisas. E eu estava com medo, cada vez mais medo do que poderia sair de minha garganta, do que finalmente poderia sair, se fosse grande, entalar, no meio do pescoço uma palavra no meio do caminho.
E foi esse o dia em que resolvi aprender a falar italiano e fazer o que todos nós fazemos inconscientemente mas não consicentemente como eu, isto é, desviar a atenção colocando a cupa de algo em um objeto que não tinha nada a ver, isto é, o português, a nossa língua. Com a ajuda de um tutor, muito chá de capim e sorvvete de pistache depois, meditação, ajuda médica e técnicas de resiração depois, consegui falar pela primeira vez depois de um ano e meio. Qué facho Pascole, eu disse a meu tutor, que me olhou incrédulo como se eu o tivesse agora roubado sua voz.
2017-2021.
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