Essa é uma das coisas que eu gostaria de te dizer mas o
tempo sempre decide que um dos dois precisa sair para comprar coisas. Sapatos.
Lençóis novos. Cordas de violão. Munhequeiras de tênis (esse último inventei
porque sempre quis que você jogasse tênis que eu considero uma elegância
exagerada se esquecermos a parte da combinação usual saia e meias). Na penúltima vez que
nos vimos quase que contei toda história. Mas então tive que sair para comprar comida para o gato, um gato que tive só pelo momento que contei isso. A última vez que nos encontramos quase que escapou tudo. Mas quando fui abrir a
boca, quando eu finalmente ia deixar desfilar tudo aquilo, estender a roupa
molhada de sal da máquina, sem querer pensei “cachoeiras” e me veio uma
terrível vontade de ir ao banheiro. Foi assim:
Você está espremendo os olhos.
É para eles funcionarem mais.
Se você continuar a espremê-los assim eles vão é parar de
funcionar. Quando você faz isso normalmente está querendo me dizer alguma
coisa.
Isso não é verdade. A maioria das vezes que precisei te
dizer algo muito importante estávamos no escuro. Eu só consigo ser importante
no escuro.
Quando me mudei para Porto Alegre você lembra? Aquela
hora em que fomos escolher uma mala que fosse vermelha para que eu não a
perdesse de vista na esteira do aeroporto. Da rodoviária. Aquela hora em que
você disse para a vendedora
Eu não entendo porque vocês não tem nenhuma mala colorida,
não faz sentido uma mala querer ser discreta, uma mala nunca é discreta.
Aquele momento que você me ensinou que o dia em que
inventaram a loja de departamentos foi também o mesmo que as pupilas das
pessoas começaram a diminuir. Você me puxou para o lado e depois você deu uma
risada tão longa que dava para servir uma toalha de mesa e chamar toda uma
família para sentar. Ali você me abraçou. E quando seus braços deram a volta no
meu pescoço de uma forma tão natural me deu vontade de tirar tudo que tava ali
pertinho, ali do lado, na garganta. Na mesma hora. Ali eu quase te disse. Mas
então fomos assistir o jogo do Botafogo que era um time para o qual acabei
descobrindo que não torcíamos mas alguém que você achava interessante sim.
Teve outra vez também. Comíamos cenoura fingindo que era
batata-frita porque estava chovendo e nós dois estávamos com preguiça de
ficarmos molhados em pró da fritura, sair e ir comprar um saco que sempre promete um número absurdamente menor de
batatas. Ou talvez porque era só traindo as batatas que conseguíamos comer
legumes, vai saber. Eu lembro que jogávamos videogame e você perdeu, mas você
nunca perdia a não ser que quisesse levantar minha autoestima (principalmente em
relação ao meu pouco desenvolvimento em educação física). Seus olhos tinham
saído da televisão e levitado até um porta-retratos onde uma mulher sorria por
ter a estranha característica de deixar invisíveis as câmeras fotográficas em
seu entorno. Ela era aparentemente alguém que você amou muito porque lembro de
ouvir algo confuso do tipo
Um dia talvez você saberá o que é gostar tanto de alguém a ponto de colocá-la numa moldura de um porta-retratos mas você precisará de outro dia para descobrir o que é realmente gostar tanto de alguém a ponto de nunca conseguir livrá-la de uma moldura num porta-retratos.
E quando você fica confuso está falando
de amor (ou tentando lembrar de como realmente funciona o horário de verão –
mas isso é claro, não conta).
Nesse momento eu senti uma afinidade muito grande entre nós
dois como se você tivesse em entregado uma intimidade enorme do tipo: um saco
cheio de coisas que você guarda durante o dia mas abre só a noite para tentar
dormir. Pensei que você estava me dando uma maçaneta para qualquer lugar seu e
que eu poderia entrar quando quisesse, senti que se colocasse meu olho no seu
ouvido eu iria enxergar todas aquelas coisas que você fez quando era mais jovem
mas esqueceu aonde guardou. Que se eu colocasse essa maçaneta no seu peito no na coxa direita eles abririam facilmente. Eu corri para o seu colo e deixei minha cabeça
virar o topo de sua barriga eu estava tão próxima de você naquele momento que
quase te confundi com um eu no futuro e te falei tudo. Mas infelizmente eu
tinha oito anos, usava pijamas com pequenos dragões e acreditava sinceramente
que os dragões estavam extintos. E não na condição de nunca existidos.
A grande verdade é que sempre que faltava luz, ou quando
íamos acampar no interior de Westphalen, eu sempre achava que ia finalmente te
dizer. Mas nunca estava escuro suficientemente.
Achava que se viesse de alguém sem rosto seria mais
tranquilo para você.
Mas então eu esqueci tudo isso. Eu esqueci tudo isso até o
dia que fiquei sem grana e tive que trabalhar num açougue. Tudo que eu tinha
era um diploma de filosofia e uma conta de aluguel para pagar e meu site que
vendia amuletos de desconhecidos para outras pessoas não estava dando dinheiro
como era de se imaginar. Toda semana eu te ligava e inventava nomes de pessoas
que seriam meus colegas de apartamento, de festa, meus colegas de trabalho para
você achar que eu estava bem. Que eu estava muito ocupada. Mas na verdade eu
tinha todo o tempo do mundo. Eu inventava os nomes deles, as vidas deles das
quais eu contava até altas horas da madrugada para soar fiel, e depois
esquecia, de tal forma que quando você me ligou porque estava com dor nas
costas e perguntou qual era o nome de Juan Luca o massoterapeuta, eu tive que o
matar ali mesmo e nós choramos a noite toda não porque meu amigo imaginário
tinha falecido mas sim porque a vida era frágil (principalmente para os
usuários de rollers nas grandes avenidas).
Eu morava tão longe do centro que todos meus amigos eram
meus vizinhos porque era muito caro pegar quatro ônibus para manter um
relacionamento com alguém da minha
idade ou faixa de interesse. Era como viver no interior, só que com o lado ruim de morar na cidade. A maioria dos meus vizinhos tinham animais, mas não eram dos tipos
normais. Os deles também serviam de despertador porque eles tinham galos e
galinhas e isso me perturbava porque eu acabava levantando cedo demais. Um dia
dona Gena apareceu na minha janela porque uma galinha dela tinha fugido e
estava no meu quintal (na verdade ele não fugiu porque eles nunca estavam
presos e eu até achava interessante eles ali na rua, no meu pátio de um lado
para o outro, quando não tinha o que fazer os dava nomes e inventava vidas maravilhosas
para nós só que quando eles morriam, mesmo que para alimentar uma família de
oito pessoas, eu me sentia muito triste). Ela falou que iam abrir um açougue ali por perto e
me deu um chá de uma erva estranha com um nome proparoxítona que agora esqueci.
Como o único trabalho no qual eu poderia chegar a pé era
esse foi ali mesmo onde fui parar. Na entrevista de emprego eu acho que fui bem
porque não contei que era vegetariana até dois meses atrás quando vi Jaime
Oliver cozinhar uma costela no sol na TV à cabo. Ele, o homem que me entrevistava, elogiou meus braços e eu
pensei que o trabalho deveria envolver fazer força então comecei a malhar.
Todo dia eu acordava cedo junto com o galo (que atendia só
pelo nome de galo porque assim ele era imortal). Tomava o chá proparoxítona da
dona Gena e lia sobre fenomenologia para dizer a mim mesmo que alguma
parte do meu dia estava seguindo meus planos do passado. Depois eu malhava.
Comecei com barras, uma em cada mão, 2 kg cada, ao mesmo tempo. Meu objetivo
era tentar levantar pelomenos por cinco segundos qualquer objeto da casa
(incluindo a porta da garagem emperrada há anos por falta de uso). Um dia eu
consegui levantar a geladeira e fiquei muito feliz.
Mas não o suficiente. Acontece que o meu trabalho era
incrivelmente entediante. Era os homens que faziam o trabalho pesado, levar as
carnes pro freezer, cortar em pedaços, moer. Eu ficava no caixa, tentando
afastar as moscas e não errar o troco dos poucos clientes. O dia inteiro era
aquilo. Olhando para as bistecas de um falecido porco, a paleta de um bode, o
peito de um gado.
Foi então que um dia, olhando para aqueles conjuntos de
órgãos juntos porém despedaçados, o fígado de um, o intestino de outro em
lembrei. Talvez pela frieza do ar-condicionado, a memória do sangue ou a
proximidade eminente da morte no reflexo de uma vitrine que te por único objetivo proteger um salsichão. Não sei.
O fato foi que lembrei que eu tinha essa história e que eu precisa te contar o
mais rápido possível porque no fundo não tê-la te contado antes pode ter me
trazido exatamente para esta situação de ir para casa fedendo a desodorante de
sangue de bicho.
É claro que eu fiquei com medo. Eu tinha 21 anos e a minha
relação mais próxima era com meu pai, só que eu descobri que ele não sabia
absurdamente nada sobre mim. E isso me deixou muito triste. Muito confusa. Tão
confusa que no mesmo dia aquela pessoa que tinha elogiado meus braços passou e
elogiou minhas pernas. Então lembrei que ele já tinha elogiado meus olhos, meus
cabelos e até mesmo minhas costas que é um lugar que todo mundo vê bastante mas
ninguém nunca elogia. Então depois disso a gente transou. Foi dentro de um
gelador. O que é estranho porque estava bem quente eu estava quente. Ele veio
atrás de mim e em finalmente entendi aquele elogio das costas. Foi um relâmpago
e eu só queria que tudo fosse assim, rápido e fácil. Eu queria que falar com
você assim só que com menos lambança. Quando saímos de lá o homem poderia ter
dito
Foi ótimo.
Te ligo mais tarde.
Quer jantar comigo e ouvir como meu ex-namorado é um maluco
e só me atraio por pessoas parecidas com ele?
Você tem uma bunda muito gostosa.
Mas não disse. Ele provavelmente deveria ter dito alguma
coisa porque as pessoas sempre falam ou uma mentira ou uma besteira que
transcende uma mentira depois de um sexo casual, ainda mais quando realizado no
horário de trabalho de um açougue. Eu não lembro o que ele falou. Porque aquele
era o momento que eu estava começando a ser determinada. Nesses momentos eu
fico surda um pouco mas depois volta. Por isso não tenho carro. Seria uma
péssima ideia resolver ser determinada na autoestrada. Eu tinha que te
encontrar.
Na manhã seguinte conversei com o gerente e convenci ele a
não pagar metade do meu salário em carne. Depois disso peguei o dinheiro e me
demiti. Eu tinha dinheiro suficiente para convencer um ônibus a me deixar perto
da sua casa. Para comprar receitas médicas se necessário.
Na viagem eu olhava as montanhas passando rápido enquanto
pensava o quanto estranho era sentir tesão com as formas de uma paisagem
montanhosa. Eu pensava nisso e em outra coisa. Como seria te encontrar. O que
eu diria. Então que me veio. A ideia. Escrevi absolutamente tudo em um caderno
que encontrei perdido dentro daquele mesmo ônibus. Em alguns momentos eu
colocava parênteses no meio das frases e fazia sinalizações do tipo “levantar as
sobrancelhas no final dessa pontuação” ou “fale isso devagar porque você tem
aquele problema de chiado” ou “não coloque a mão no cabelo para não soar
desesperado embora seja isso mesmo”.
Tentei treinar respostas para várias de suas réplicas como:
Preferia que você fosse prostituta.
Eu nunca tive aquela bolsa de estudos.
Foi por isso que você nunca me apresentou alguém?
Talvez. Ou talvez porque não tivesse ninguém mesmo.
Então aquela vez que você faltou no colégio uma semana...
Sim nunca existiu um surto de uma gripe da malásia.
Então aqueles absorventes íntimos no seu quarto...
Não existiu uma namorada.
Seria assim: eu entraria. Você ficaria surpreso. Sentaríamos
no sofá, aquele com muitas almofadas para caso você não segurasse o equilíbrio.
Depois você que quase não me reconheceu porque eu estava tão diferente e
responderia falando que era culpa da malhação mesmo que no mais nada de
diferente. Então você suspiraria ao mesmo tempo que ergueria o começo de um
sorriso: e nesse momento que aconteceria.
Ficou evidente para mim que eu não conseguiria lembrar tudo
na hora. Eram muitas as coisas e muito também o pó acumulado. É por isso que
quando cheguei na sua casa hoje, peguei a chave embaixo da fonte e entrei, a primeira coisa que vi foi sua lixeira nova. Coloquei fora tudo que escrevi.
Acho que é melhor assim.
Agora estou no sofá, o grande aquele, catando o maior número
de almofadas possíveis espalhadas pelos cômodos. E pensando. Pensando como é
estranho pegar um ônibus só para informar para alguém quem se é realmente. Como
quem entrega um relatório ou doa uma enciclopédia íntima do que existe por trás
dos olhos. Em breve você vai chegar do trabalho, talvez cansado, talvez com
energia, me encontrará aqui sentada. Você poderia sentar ao meu lado e juntos soletrar
substantivos no alemão, rir e tomarmos um exótico chá sem nome que eu trouxe de
uma curandeira do meu bairro. Ou talvez ficar perto da porta. Perto da fuga.
Você poderia fazer uma de suas inúteis constatações tal como
Você é jovem demais para ficar tanto tempo sentado.
E eu demonstraria que a conversa não é brincadeira de
bambolê ao falar:
Tem um motivo especial para eu estar sentada há tanto tempo.
O dia está laranja e em dias com cor de fruta sempre me
julgo com sorte. Quando estou com sorte minhas olheras desaparecem. Me sentindo
um pouco menos feia, porém ainda não exatamente bonita, ignoro tudo que não
está aqui.
Não sei. O fato é que você chegará. O fato é que as coisas chegam. O fato é que não posso mais esperar uma queda de luz para te falar a verdade. O fato é que você tem razão pai: malas nunca são discretas.
Lembro do teu sotaque, de como confunde a letra P com a B sempre que está apressado. Rio. Te espero passando um lábio em cima do outro, como quem beija cada
segundo que vai embora, como quem beija a vontade de não voltar. Rio de novo.
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