terça-feira, 28 de janeiro de 2014

primeiro é preciso chegar

Essa é uma das coisas que eu gostaria de te dizer mas o tempo sempre decide que um dos dois precisa sair para comprar coisas. Sapatos. Lençóis novos. Cordas de violão. Munhequeiras de tênis (esse último inventei porque sempre quis que você jogasse tênis que eu considero uma elegância exagerada se esquecermos a parte da combinação usual saia e meias). Na penúltima vez que nos vimos quase que contei toda história. Mas então tive que sair para comprar comida para o gato, um gato que tive só pelo momento que contei isso. A última vez que nos encontramos quase que escapou tudo. Mas quando fui abrir a boca, quando eu finalmente ia deixar desfilar tudo aquilo, estender a roupa molhada de sal da máquina, sem querer pensei “cachoeiras” e me veio uma terrível vontade de ir ao banheiro. Foi assim:

Você está espremendo os olhos.

É para eles funcionarem mais.

Se você continuar a espremê-los assim eles vão é parar de funcionar. Quando você faz isso normalmente está querendo me dizer alguma coisa.

Isso não é verdade. A maioria das vezes que precisei te dizer algo muito importante estávamos no escuro. Eu só consigo ser importante no escuro.

Quando me mudei para Porto Alegre você lembra? Aquela hora em que fomos escolher uma mala que fosse vermelha para que eu não a perdesse de vista na esteira do aeroporto. Da rodoviária. Aquela hora em que você disse para a vendedora

Eu não entendo porque vocês não tem nenhuma mala colorida, não faz sentido uma mala querer ser discreta, uma mala nunca é discreta.

Aquele momento que você me ensinou que o dia em que inventaram a loja de departamentos foi também o mesmo que as pupilas das pessoas começaram a diminuir. Você me puxou para o lado e depois você deu uma risada tão longa que dava para servir uma toalha de mesa e chamar toda uma família para sentar. Ali você me abraçou. E quando seus braços deram a volta no meu pescoço de uma forma tão natural me deu vontade de tirar tudo que tava ali pertinho, ali do lado, na garganta. Na mesma hora. Ali eu quase te disse. Mas então fomos assistir o jogo do Botafogo que era um time para o qual acabei descobrindo que não torcíamos mas alguém que você achava interessante sim.

Teve outra vez também. Comíamos cenoura fingindo que era batata-frita porque estava chovendo e nós dois estávamos com preguiça de ficarmos molhados em pró da fritura, sair e ir comprar um saco que sempre promete um número absurdamente menor de batatas. Ou talvez porque era só traindo as batatas que conseguíamos comer legumes, vai saber. Eu lembro que jogávamos videogame e você perdeu, mas você nunca perdia a não ser que quisesse levantar minha autoestima (principalmente em relação ao meu pouco desenvolvimento em educação física). Seus olhos tinham saído da televisão e levitado até um porta-retratos onde uma mulher sorria por ter a estranha característica de deixar invisíveis as câmeras fotográficas em seu entorno. Ela era aparentemente alguém que você amou muito porque lembro de ouvir algo confuso do tipo

Um dia talvez você saberá o que é gostar tanto de alguém a ponto de colocá-la numa moldura de um porta-retratos mas você precisará de outro dia para descobrir o que é realmente gostar tanto de alguém a ponto de nunca conseguir livrá-la de uma moldura num porta-retratos.

E quando você fica confuso está falando de amor (ou tentando lembrar de como realmente funciona o horário de verão – mas isso é claro, não conta).

Nesse momento eu senti uma afinidade muito grande entre nós dois como se você tivesse em entregado uma intimidade enorme do tipo: um saco cheio de coisas que você guarda durante o dia mas abre só a noite para tentar dormir. Pensei que você estava me dando uma maçaneta para qualquer lugar seu e que eu poderia entrar quando quisesse, senti que se colocasse meu olho no seu ouvido eu iria enxergar todas aquelas coisas que você fez quando era mais jovem mas esqueceu aonde guardou. Que se eu colocasse essa maçaneta no seu peito no na coxa direita eles abririam facilmente. Eu corri para o seu colo e deixei minha cabeça virar o topo de sua barriga eu estava tão próxima de você naquele momento que quase te confundi com um eu no futuro e te falei tudo. Mas infelizmente eu tinha oito anos, usava pijamas com pequenos dragões e acreditava sinceramente que os dragões estavam extintos. E não na condição de nunca existidos.

A grande verdade é que sempre que faltava luz, ou quando íamos acampar no interior de Westphalen, eu sempre achava que ia finalmente te dizer. Mas nunca estava escuro suficientemente.

Achava que se viesse de alguém sem rosto seria mais tranquilo para você.

Mas então eu esqueci tudo isso. Eu esqueci tudo isso até o dia que fiquei sem grana e tive que trabalhar num açougue. Tudo que eu tinha era um diploma de filosofia e uma conta de aluguel para pagar e meu site que vendia amuletos de desconhecidos para outras pessoas não estava dando dinheiro como era de se imaginar. Toda semana eu te ligava e inventava nomes de pessoas que seriam meus colegas de apartamento, de festa, meus colegas de trabalho para você achar que eu estava bem. Que eu estava muito ocupada. Mas na verdade eu tinha todo o tempo do mundo. Eu inventava os nomes deles, as vidas deles das quais eu contava até altas horas da madrugada para soar fiel, e depois esquecia, de tal forma que quando você me ligou porque estava com dor nas costas e perguntou qual era o nome de Juan Luca o massoterapeuta, eu tive que o matar ali mesmo e nós choramos a noite toda não porque meu amigo imaginário tinha falecido mas sim porque a vida era frágil (principalmente para os usuários de rollers nas grandes avenidas).

Eu morava tão longe do centro que todos meus amigos eram meus vizinhos porque era muito caro pegar quatro ônibus para manter um relacionamento com alguém da  minha idade ou faixa de interesse. Era como viver no interior, só que com o lado ruim de morar na cidade. A maioria dos meus vizinhos tinham animais, mas não eram dos tipos normais. Os deles também serviam de despertador porque eles tinham galos e galinhas e isso me perturbava porque eu acabava levantando cedo demais. Um dia dona Gena apareceu na minha janela porque uma galinha dela tinha fugido e estava no meu quintal (na verdade ele não fugiu porque eles nunca estavam presos e eu até achava interessante eles ali na rua, no meu pátio de um lado para o outro, quando não tinha o que fazer os dava nomes e inventava vidas maravilhosas para nós só que quando eles morriam, mesmo que para alimentar uma família de oito pessoas, eu me sentia muito triste). Ela falou que iam abrir um açougue ali por perto e me deu um chá de uma erva estranha com um nome proparoxítona que agora esqueci.

Como o único trabalho no qual eu poderia chegar a pé era esse foi ali mesmo onde fui parar. Na entrevista de emprego eu acho que fui bem porque não contei que era vegetariana até dois meses atrás quando vi Jaime Oliver cozinhar uma costela no sol na TV à cabo. Ele, o homem que me entrevistava, elogiou meus braços e eu pensei que o trabalho deveria envolver fazer força então comecei a malhar.

Todo dia eu acordava cedo junto com o galo (que atendia só pelo nome de galo porque assim ele era imortal). Tomava o chá proparoxítona da dona Gena e lia sobre fenomenologia para dizer a mim mesmo que alguma parte do meu dia estava seguindo meus planos do passado. Depois eu malhava. Comecei com barras, uma em cada mão, 2 kg cada, ao mesmo tempo. Meu objetivo era tentar levantar pelomenos por cinco segundos qualquer objeto da casa (incluindo a porta da garagem emperrada há anos por falta de uso). Um dia eu consegui levantar a geladeira e fiquei muito feliz.

Mas não o suficiente. Acontece que o meu trabalho era incrivelmente entediante. Era os homens que faziam o trabalho pesado, levar as carnes pro freezer, cortar em pedaços, moer. Eu ficava no caixa, tentando afastar as moscas e não errar o troco dos poucos clientes. O dia inteiro era aquilo. Olhando para as bistecas de um falecido porco, a paleta de um bode, o peito de um gado.

Foi então que um dia, olhando para aqueles conjuntos de órgãos juntos porém despedaçados, o fígado de um, o intestino de outro em lembrei. Talvez pela frieza do ar-condicionado, a memória do sangue ou a proximidade eminente da morte no reflexo de uma vitrine que te por único objetivo proteger um salsichão. Não sei. O fato foi que lembrei que eu tinha essa história e que eu precisa te contar o mais rápido possível porque no fundo não tê-la te contado antes pode ter me trazido exatamente para esta situação de ir para casa fedendo a desodorante de sangue de bicho.

É claro que eu fiquei com medo. Eu tinha 21 anos e a minha relação mais próxima era com meu pai, só que eu descobri que ele não sabia absurdamente nada sobre mim. E isso me deixou muito triste. Muito confusa. Tão confusa que no mesmo dia aquela pessoa que tinha elogiado meus braços passou e elogiou minhas pernas. Então lembrei que ele já tinha elogiado meus olhos, meus cabelos e até mesmo minhas costas que é um lugar que todo mundo vê bastante mas ninguém nunca elogia. Então depois disso a gente transou. Foi dentro de um gelador. O que é estranho porque estava bem quente eu estava quente. Ele veio atrás de mim e em finalmente entendi aquele elogio das costas. Foi um relâmpago e eu só queria que tudo fosse assim, rápido e fácil. Eu queria que falar com você assim só que com menos lambança. Quando saímos de lá o homem poderia ter dito

Foi ótimo.

Te ligo mais tarde.

Quer jantar comigo e ouvir como meu ex-namorado é um maluco e só me atraio por pessoas parecidas com ele?

Você tem uma bunda muito gostosa.

Mas não disse. Ele provavelmente deveria ter dito alguma coisa porque as pessoas sempre falam ou uma mentira ou uma besteira que transcende uma mentira depois de um sexo casual, ainda mais quando realizado no horário de trabalho de um açougue. Eu não lembro o que ele falou. Porque aquele era o momento que eu estava começando a ser determinada. Nesses momentos eu fico surda um pouco mas depois volta. Por isso não tenho carro. Seria uma péssima ideia resolver ser determinada na autoestrada. Eu tinha que te encontrar.

Na manhã seguinte conversei com o gerente e convenci ele a não pagar metade do meu salário em carne. Depois disso peguei o dinheiro e me demiti. Eu tinha dinheiro suficiente para convencer um ônibus a me deixar perto da sua casa. Para comprar receitas médicas se necessário.

Na viagem eu olhava as montanhas passando rápido enquanto pensava o quanto estranho era sentir tesão com as formas de uma paisagem montanhosa. Eu pensava nisso e em outra coisa. Como seria te encontrar. O que eu diria. Então que me veio. A ideia. Escrevi absolutamente tudo em um caderno que encontrei perdido dentro daquele mesmo ônibus. Em alguns momentos eu colocava parênteses no meio das frases e fazia sinalizações do tipo “levantar as sobrancelhas no final dessa pontuação” ou “fale isso devagar porque você tem aquele problema de chiado” ou “não coloque a mão no cabelo para não soar desesperado embora seja isso mesmo”.

Tentei treinar respostas para várias de suas réplicas como:

Preferia que você fosse prostituta.
Eu nunca tive aquela bolsa de estudos.

Foi por isso que você nunca me apresentou alguém?
Talvez. Ou talvez porque não tivesse ninguém mesmo.

Então aquela vez que você faltou no colégio uma semana...
Sim nunca existiu um surto de uma gripe da malásia.

Então aqueles absorventes íntimos no seu quarto...
Não existiu uma namorada.

Seria assim: eu entraria. Você ficaria surpreso. Sentaríamos no sofá, aquele com muitas almofadas para caso você não segurasse o equilíbrio. Depois você que quase não me reconheceu porque eu estava tão diferente e responderia falando que era culpa da malhação mesmo que no mais nada de diferente. Então você suspiraria ao mesmo tempo que ergueria o começo de um sorriso: e nesse momento que aconteceria.

Ficou evidente para mim que eu não conseguiria lembrar tudo na hora. Eram muitas as coisas e muito também o pó acumulado. É por isso que quando cheguei na sua casa hoje, peguei a chave embaixo da fonte e entrei, a primeira coisa que vi foi sua lixeira nova. Coloquei fora tudo que escrevi. Acho que é melhor assim.

Agora estou no sofá, o grande aquele, catando o maior número de almofadas possíveis espalhadas pelos cômodos. E pensando. Pensando como é estranho pegar um ônibus só para informar para alguém quem se é realmente. Como quem entrega um relatório ou doa uma enciclopédia íntima do que existe por trás dos olhos. Em breve você vai chegar do trabalho, talvez cansado, talvez com energia, me encontrará aqui sentada. Você poderia sentar ao meu lado e juntos soletrar substantivos no alemão, rir e tomarmos um exótico chá sem nome que eu trouxe de uma curandeira do meu bairro. Ou talvez ficar perto da porta. Perto da fuga. Você poderia fazer uma de suas inúteis constatações tal como

Você é jovem demais para ficar tanto tempo sentado.

E eu demonstraria que a conversa não é brincadeira de bambolê ao falar:
Tem um motivo especial para eu estar sentada há tanto tempo.

O dia está laranja e em dias com cor de fruta sempre me julgo com sorte. Quando estou com sorte minhas olheras desaparecem. Me sentindo um pouco menos feia, porém ainda não exatamente bonita, ignoro tudo que não está aqui.

Não sei. O fato é que você chegará. O fato é que as coisas chegam. O fato é que não posso mais esperar uma queda de luz para te falar a verdade. O fato é que você tem razão pai: malas nunca são discretas.

Lembro do teu sotaque, de como confunde a letra P com a B sempre que está apressado. Rio. Te espero passando um lábio em cima do outro, como quem beija cada segundo que vai embora, como quem beija a vontade de não voltar. Rio de novo.

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